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Proc. nº 697/95
1ª Secção
Rel: Cons. Ribeiro Mendes
Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional:
I
1. A., subinspector da Polícia Judiciária, casado, com os sinais dos autos, interpôs na Secção de Contencioso Administrativo do Supremo Tribunal Administrativo, em 12 de Outubro de 1990, recurso contencioso de anulação do despacho de 19 de Julho de 1990 do Ministro de Justiça que, na decisão de recurso hierárquico, lhe aplicou a pena disciplinar de inactividade durante o período de um ano.
Em alegações complementares - na sequência de informações prestadas pelo recorrente e pela autoridade recorrida, tendo em consideração o apuramento de datas relevantes nos processos de inquérito e disciplinar, para efeitos da eventual aplicação de uma amnistia e de completamento do prazo prescricional do procedimento disciplinar - o recorrente suscitou a questão de inconstitucionalidade da Lei nº 10/83, de 13 de Agosto, lei de autorização legislativa do diploma que aprovou o Estatuto Disciplinar dos Funcionários e Agentes da Administração Central, Regional e Local, por violação do art. 57º, nº
2, alínea a), da Constituição, na versão resultante da primeira revisão constitucional (a fls. 120 vº e 121 dos autos). Da inconstitucionalidade da lei autorizadora decorreria a inconstitucionalidade do diploma delegado, sendo o acto impugnado nulo por força dessa inconstitucionalidade.
No parecer complementar do Ministério Público, a propósito da questão de constitucionalidade suscitada, considerou-se que tal alegação era improcedente, por ter havido audição das associações sindicais na elaboração do Decreto-Lei nº 24/84, de 16 de Janeiro (a fls. 131 dos autos).
Através de acórdão de 13 de Maio de 1993, foi negado provimento ao recurso, considerando-se que tinha havido audição das associações sindicais na fase de elaboração do diploma autorizado, o que seria constitucionalmente suficiente (cfr. fls. 134 a 146 dos autos).
Inconformado com este acórdão, dele interpôs o recorrente recurso para o pleno da Secção de Contencioso Administrativo, o qual foi admitido. Nas alegações apresentadas neste recurso, o recorrente desenvolveu a tese da inconstitucionalidade formal originária da Lei nº 10/83, de 13 de Agosto, continuando a sustentar a nulidade do acto administrativo impugnado. Sustentou igualmente que os termos da lei de autorização legislativa eram vagos e imprecisos, mostrando-se violado o nº 2 do art. 168º da Constituição.
Por acórdão de 13 de Julho de 1995 foi negado provimento ao recurso jurisdicional. Nesse acórdão considerou-se que o recorrente limitara, no recurso jurisdicional, a sua discordância relativamente ao acórdão recorrido às questões de constitucionalidade suscitadas, considerando-se as mesmas improcedentes, de harmonia com jurisprudência constante do Supremo Tribunal Administrativo. Pode ler-se nesse acórdão, quanto à primeira questão de constitucionalidade:
' Nos termos do Art. 57º nº 2 al. a) da CRP, na versão de 82 (actualmente Art.
56º nº 2 al. a)), constituem direitos das associações sindicais «participar na elaboração da legislação do trabalho [»].
O Art. 1º da Lei nº 10/83 estabeleceu, na parte que interessa ao caso:
«1- O Governo é autorizado a legislar:
a)...
b) Em matéria de regime disciplinar da função pública.
2- ...
3- O regime a instituir nos termos da alínea b) do nº 1 visa introduzir alterações ao Decreto-Lei nº 191-D/79, de 25 de Junho, por forma a redefinir os factos ilícitos ou a definir novas formas de ilícito de corrupção passíveis de sanção disciplinar, a corrigir a dosimetria das penas em vigor e ainda a ultrapassar dificuldades de execução e a integrar lacunas do Estatuto Disciplinar.»
Não se suscitam dúvidas sérias de que o regime disciplinar da função pública é matéria que concerne à legislação do trabalho.
Por outro lado, vem sendo aceite pela doutrina e jurisprudência que no mesmo conceito de legislação do trabalho se deve incluir todo o diploma que contenha decisões de nível legislativo ou equiparado, abarcando também as «autorizações legislativas» (cfr. Acs. do TC de 88/06/21 in BMJ nº 377 pág. 155 e de 91/04/04
- Pº 91-0117 e G. Canotilho e V. Moreira in «Constituição da República Anotada», págs. 295/296 e 306).
Por último, não constando da aludida lei autorizante a audição das associações sindicais representativas dos trabalhadores, de presumir é que essa audição de facto se não verificou.
Sendo pois, por um lado, legislação do trabalho a legislação sobre o regime disciplinar da função pública e estando o legislador da Lei nº 10/83 obrigado à audição das associações sindicais representativas dos trabalhadores da função pública e, por outro, assente que essa audição se não verificou, imporiam estas premissas a conclusão de que se verifica a invocada inconstitucionalidade formal.
Mas não é assim como lapidarmente se demonstrou no citado AC. de 93/10/12 [do S.T.A.].
[...] «(...) a omissão de convocação [das associações sindicais] só será relevante se a autorização legislativa contiver, ela mesma, normas cuja elaboração tivesse requerido, para seu aperfeiçoamento, a sua participação.
Se a lei da autorização não contém qualquer disposição que concretamente interfira no regime geral ou especial da função pública, permitindo, apenas, ao Governo a produção de normas desse tipo, óbvias razões de racionalidade e de economia de meios justificam a interpretação de que o legislador constitucional não exigiria, por mero fetichismo formal, a inútil convocação das associações sindicais para elaboração das normas da lei de autorização.
Com efeito, nessas circunstâncias, o direito das associações sindicais de participação na elaboração da legislação laboral só terá efeito útil e cumprirá o motivo e o fim por e para que foi consagrado como direito fundamental se ocorrer no desenvolvimento do processo de elaboração da lei autorizadora, pois só aí poderão ser efectivamente influentes as contribuições que possam dar para aperfeiçoamento da legislação a adoptar.»
Ora, a verdade é que não se encontra na disposição do nº 3 do Art. 1º da lei nº
10/83 quaisquer normas que exigissem para o seu aperfeiçoamento a participação das associações; elas existem, sim, mas no diploma autorizado que, tal como se relata no preâmbulo, foi precedido da audição das associações sindicais representativas dos trabalhadores da função pública' (a fls. 184 a 188).
Relativamente à segunda questão suscitada - violação pelo texto da lei de autorização legislativa do disposto no nº 2 do art. 168º da Constituição - considerou o acórdão em causa que do nº 3 do art. 1º da Lei nº 10/83 constava com suficiente precisão 'a directiva de redefinição dos factos disciplinarmente relevantes e a necessidade de definir novas formas de ilícito de corrupção, de corrigir a dosimetria das penas e a necessidade de adoptar melhorias de execução e de integração de lacunas' (a fls. 189). De harmonia com os critérios da jurisprudência administrativa e constitucional (nomeadamente o acórdão nº 285/92 do Tribunal Constitucional), essa directiva ao legislador autorizado cumpria os mínimos de definição do programa normativo que era dirigido a este último.
Ainda inconformado, interpôs o recorrente recurso para o Tribunal Constitucional, nos termos da alínea b) do nº 1 do art. 70º da Lei do Tribunal Constitucional, confinando o seu objecto à questão da 'inconstitucionalidade originária, quer por vício de procedimento [não respeito do art. 57º, nº 2, a) da Constituição na versão que releva], quer por colisão com o art. 168º, nº 2, da Constituição, do art. 1º, nºs. 1 e 3, da Lei nº 10/83, de 13 de Agosto - de que deriva a inconstitucionalidade («consequente») do Decreto-Lei nº 24/84, de
16 de Janeiro [...]' (a fls. 194). O recurso foi admitido por despacho de 6 de Outubro de 1995 (a fls. 195).
2. Subiram os autos ao Tribunal Constitucional.
O recorrente apresentou alegações, onde formulou as seguintes conclusões pedindo que fosse julgado procedente o seu recurso:
'1- O regime disciplinar faz parte integrante da noção de legislação do trabalho, e de harmonia com o artº 57º, nº 2, a), da Constituição (na versão que para os presentes efeitos releva, e que é a operada pela Lei Constitucional nº
1/82, de 30 de Setembro), constitui «direito» das associações sindicais participar na elaboração da legislação do trabalho.
2- As leis de autorização legislativa inserem-se no conceito de legislação do trabalho.
3- Na elaboração da Lei nº 10/83, de 13 de Agosto, não foi permitida/assegurada a participação das associações sindicais representativas dos trabalhadores dela destinatários.
4- Deste modo, por vício de procedimento, a Lei nº 10/83, de 13 de Agosto, está ferida de inconstitucionalidade formal, originária, e, assim, resultou afectado, de modo constitucional irremissível, o procedimento legislativo que produziu o Decreto-Lei nº 24/84, de 16 de Janeiro (que aprovou como sua parte integrante o Estatuto disciplinar).
5- É certo que «as associações sindicais que representam interesses dos trabalhadores da Administração Pública participaram na elaboração do projecto que esteve na base» do Decreto-Lei nº 24/84, de 16 de Janeiro.
6- Porém, na nossa arquitectura constitucional toda a decisão legislativa (que, aqui, passa por um procedimento complexo, em dois graus) tem que ser participada activamente pelas organizações sindicais, e, pois, a cada passo da concretização da norma haverá que corresponder um momento participativo (ou, se assim melhor se preferir, dupla audição, a ser realizada directa e autonomamente perante cada um dos órgãos autores das normas).
7- O artº 1º, nº 3, da Lei nº 10/83, de 13 de Agosto, ao dispor como o faz, não satisfaz o «conteúdo mínimo exigivel» a uma lei de autorização: apresenta carácter extremamente vago, impreciso, genérico e indeterminado; por direitas linhas visto limitar-se a dispor sobre as matérias relativamente às quais fica o Governo autorizado a legislar, sem condicionar o sentido normativo em que tal autorização deva ser exercida.
8- Deste modo, o artº 1º, nº 3, da Lei nº 10/83, de 13 de Agosto, porque colidente com o artº 1º [68º], nº 2, da Constituição, enferma de inconstitucionalidade material, originária, que, derivada ou reflexa[men]te, inquina o Decreto-Lei nº 24/84 de 16 de Janeiro (que aprovou, como sua parte integrante, o Estatuto Disciplinar).
9- Assim, e salvo o merecido respeito, o douto acórdão recorrido quando não considerou verificadas as assacadas inconstitucionalidades /«formal» (por vício de procedimento) e «material» (por ofensa ao artº 168º, nº 2, da Constituição)/ não fez bom julgamento.
10- Por outro lado, o Decreto-Lei nº 24/84, de 16 de Janeiro, ao substituir integralmente o «bloco normativo» aprovado pelo Decreto-Lei nº 191-D/79 de Junho, por «outro bloco normativo» não tem credencial no artº 1º, nº 3, da Lei nº 10/87, de 13 de Agosto.
11- Assim, colide directamente com o artº 168º, nº 2, da Constituição, e pois, enferma de inconstitucionalidade orgânica, originária, o que, salvo o merecido respeito, cabe nos poderes de cognição do Venerando Tribunal' (a fls. 214 a
216).
Com as alegações juntou um despacho do Provedor de Justiça em que se analisavam questões de constitucionalidade relativas ao referido Estatuto Disciplinar, submetidas ao respectivo Serviço.
A Autoridade recorrida sustentou que devia ser confirmada a decisão impugnada, formulando as seguintes conclusões:
'1º- A Lei 10/83, de 13 de Agosto que autorizou o Governo a legislar em «matéria do regime disciplinar da função pública» não ofende o disposto no artº 57º, nº
2, alínea a) da C.R.P., pelo que não padece de inconstitucionalidade formal originária.
2º- Tendo sido assegurada a participação das organizações sindicais representativas dos trabalhadores da função pública na feitura do diploma que, à sua luz, foi publicado - o Decreto-Lei nº 24/84, de 16 de Janeiro.
3º- Não se tendo sequer alegado e, muito menos, demonstrado, qualquer eventual lesão ao nível dos interesses dos trabalhadores decorrente da falta de participação das suas organizações sindicais na elaboração daquela lei de autorização legislativa.
4º- Igualmente, não enferma o artigo 1º, nº 3 daquela Lei 10/83, de 13 de Agosto de inconstitucionalidade material, originária, por ofensa do artigo 168º, nº 2 da C.R.P..
5º- Não impondo esse comando constitucional a definição precisa e inequívoca do objecto, sentido e duração da autorização legislativa, tal como pretende o recorrente.
6º- Importando, antes, que da sua leitura seja possível e fique claro qual o sentido a conferir aos parâmetros nele fixados quanto a tais aspectos - nesse sentido o Ac. do Tribunal Constitucional nº 285/92, in Proc. 383/92.
7º- Do mesmo modo se não podendo assacar-lhe inconstitucionalidade orgânica, originária, por violar esse mesmo artº 168º, nº 2 da C.R.P..
8º- Invocação cujo conhecimento, por se tratar de questão nova não suscitada no recurso interposto para o Pleno da Secção do Supremo Tribunal Administrativo, se mostra vedado a esse venerando Tribunal' (a fls. 240-242 dos autos).
3. Foram corridos os vistos legais.
Importa, por isso, conhecer do presente recurso, começando por fixar o seu objecto.
II
4. O recorrente sustenta que as normas da Lei nº 10/83, de 13 de Agosto ('Autorização legislativa ao Governo quanto ao direito de negociação dos trabalhadores da Administração Pública e quanto ao regime disciplinar da função pública') que se referem ao regime disciplinar da função pública se acham afectadas de inconstitucionalidade, por violação de diferentes normas da Constituição, inconstitucionalidade que inquina, derivada ou reflexamente, o próprio decreto-lei autorizado, que é, por isso, organicamente inconstitucional.
Tais normas têm a seguinte redacção:
' Artigo 1º
(Objecto, sentido e extensão)
1- O Governo é autorizado a legislar:
a) [...]
b) Em matéria de regime disciplinar da função pública.
2- [...]
3- O regime a instituir nos termos da alínea b) do nº 1 visa introduzir alterações ao Decreto-Lei nº 191-D/79, de 25 de Junho, por forma a redefinir os factos ilícitos ou a definir novas formas de ilícito de corrupção passíveis de sanção disciplinar, a corrigir a dosimetria das penas em vigor e ainda a ultrapassar dificuldades de execução e a integrar lacunas do Estatuto Disciplinar.'
5. Podem, assim, considerar-se como questões de constitucionalidade suscitadas pelo recorrente durante o processo as seguintes:
- a questão da inconstitucionalidade procedimental da Lei nº 10/83, de 13 de Agosto, por se presumir não ter havido audição das associações sindicais quanto
à matéria de regime disciplinar da função pública, matéria que constitui legislação de trabalho, com violação do art. 57º, nº 2,alínea a), da Constituição (versão em vigor ao tempo da edição da lei, ou seja, a resultante da primeira revisão constitucional, de 1982);
- a questão da inconstitucionalidade do nº 3 do art. 1º da mesma Lei nº 10/83, por violação do nº 2 do art. 168º da Constituição (falta de sentido preciso da autorização legislativa);
- por último, a questão da inconstitucionalidade derivada ou reflexa de todo o diploma autorizado, Decreto-Lei nº 24/84, de 16 de Janeiro.
São, pois, estas as questões de constitucionalidade que constituem objecto do recurso, não havendo dúvidas de que foram aplicadas normas do diploma autorizado e que convocam, em princípio, as normas da lei de autorização legislativa.
6. Considera-se que todas as questões de constitucionalidade suscitadas são susceptíveis de conhecimento pelo Tribunal Constitucional.
De facto, o recorrente impugnou todo o diploma autorizado com fundamento em vícios de inconstitucionalidade verificados, segundo ele, no diploma autorizador.
Não pode, pois, dizer-se que não integram o objecto do recurso as normas efectivamente aplicadas pela decisão recorrida, ao menos de forma implícita, ao ser negado provimento ao recurso jurisdicional com fundamento na improcedência das questões de constitucionalidade suscitadas quanto ao diploma autorizador. A situação é, assim, diversa da contemplada nos acórdãos nºs.
681/94, inédito, e 682/94 (publicado no Diário da República, II Série, nº 117, de 20 de Maio de 1995) onde, por maioria dos seus juízes, a 1ª Secção do Tribunal Constitucional não tomou conhecimento de recursos em que o recorrente restringira o respectivo objecto a questões de constitucionalidade atinentes à lei autorizadora, deixando de fora a impugnação do diploma autorizado.
III
7. Terá razão o recorrente quando considera que as normas atinentes ao regime disciplinar da função pública na lei autorizadora são procedimentalmente inconstitucionais por falta de audição das associações sindicais de trabalhadores da Função Pública?
8. Não foi posto em dúvida nos autos que a matéria de regime disciplinar laboral da Função Pública integra o conceito de legislação do trabalho a que se referem os arts. 54º, nº 5, alínea d), primeira parte, e 56º, nº 2, alínea a), da versão em vigor da Constituição.
Esse entendimento é igualmente partilhado pela jurisprudência constitucional, sem discrepâncias (vejam-se, entre outros, os acórdãos nºs.
31/84 e 15/88, in Acórdãos do Tribunal Constitucional, 2º vol., págs. 123 e segs., e 11º vol., págs. 153 e segs., respectivamente; e sobre essa jurisprudência em geral, cfr. Nadir Bicó, O Direito de Participação das Comissões de Trabalhadores e das Associações Sindicais na Legislação do Trabalho, in Estudos sobre a Jurisprudência do Tribunal Constitucional, págs.
197 e segs.).
É igualmente verdade que não consta do preâmbulo da Lei nº 10/83 qualquer referência ao facto de ter havido consulta às associações sindicais, do mesmo modo que consta do preâmbulo do diploma autorizado que 'as associações sindicais que representam interesses dos trabalhadores da Administração Pública participaram na elaboração do projecto que esteve na base do presente diploma, tendo emitido pareceres cujo conteúdo foi tomado parcialmente em consideração'
(nº 2).
9. Admitindo-se como hipótese que as referidas associações sindicais não participaram na elaboração da Lei nº 10/83, terá então de se concluir desse facto - que é aceite no acórdão recorrido - que a lei autorizadora está afectada de inconstitucionalidade procedimental e que, em consequência, o decreto-lei autorizado está igualmente afectado de inconstitucionalidade?
O pleno da Secção de Contencioso Administrativo negou que a lei autorizadora se pudesse considerar inconstitucional, mesmo admitindo a exigência da participação das associações sindicais na sua elaboração, como decorre da jurisprudência reiterada, embora não unânime, do Tribunal Constitucional, baseando-se na ideia de que as normas da lei autorizadora não continham normação de interesse para os trabalhadores e de que, por isso, não seria aceitável que, por mero 'fetichismo formal', se procedesse à 'inútil convocação das associações sindicais para elaboração' dessas normas.
10. Não se crê que tal posição seja de sufragar, à luz da citada jurisprudência do Tribunal Constitucional (acórdãos nºs 107/88 e 64/91, in Acórdãos do Tribunal Constitucional, 11º vol., págs. 7 e segs., e 18º vol. págs.
67 e segs.). Exigindo a Constituição que da lei autorizadora conste o sentido, o objecto e a extensão da autorização, passará a lei autorizadora a servir de parâmetro ao legislador governamental. Tem, por isso, pleno sentido, segundo essa jurisprudência marioritária impor que ocorra a audição das organizações de trabalhadores, de forma a que estes tenham 'a possibilidade de influenciarem, logo na fase parlamentar de apreciação da lei de autorização legislativa, os juízos políticos e a decisão jurídica da Assembleia da República sobre a futura legislação autorizada e, também, de opinarem sobre a vantagem de delegar no Governo a elaboração de tal legislação, sobre a oportunidade de autorização, sobre as directrizes, princípios ou orientações gerais da futura disciplina material e sobre a própria extensão da autorização, isto é, sobre a amplitude das inovações ou reformas a introduzir em matéria laboral' (formulações do acórdão nº 61/91, in Acórdãos, 18º vol., pág. 81).
No fundo, a posição do Supremo Tribunal Administrativo equivale a só exigir a audição, quanto ao diploma autorizador, todas as vezes que a lei de autorização contenha disciplina normativa primária que prescinda da sua reprodução no diploma autorizado, situação que será de verificação rara (só ocorrerá quando na lei de autorização legislativa surjam normas imediatamente aplicáveis aos cidadãos em geral, situação cuja correcção parece duvidosa).
11. Significará o que se deixa dito que a consequência inevitável
é a da procedência da tese da recorrente?
Responder-se-á negativamente à questão, transcrevendo-se o seguinte passo de um acórdão recente do Tribunal Constitucional, tirado em plenário, quando se averiguaram as consequências, relativamente a uma lei de autorização legislativa, de não ter ocorrido eventualmente a prévia audição das organizações dos trabalhadores, a qual ocorrera seguramente apenas quanto ao diploma autorizado, entretanto publicado. Estava em causa a Lei nº 107/88, de 17 de Setembro, a qual fora elaborada após a pronúncia pela inconstitucionalidade, em processo de fiscalização preventiva, quanto à anterior lei de autorização legislativa constante do já citado acórdão nº 107/88 do Tribunal Constitucional:
'1) Desde logo, não há inconstitucionalidade para quem empreende uma interpretação segundo a qual as leis de autorização legislativa são meras leis formais sobre a produção jurídica, não se fazendo a esse nível sentir o desiderato constitucional do exercício do direito de participação das organizações de trabalhadores.
2) Também não há inconstitucionalidade para quem, assentando no pressuposto contrário de que sobre as leis de autorização legislativa deve incidir aquele direito de participação, afirma que este direito se realiza com suficiência pela comunicação ao Parlamento dos debates e críticas efectuados aquando da elaboração da proposta de lei correspondente [...]
3) E ainda, numa outra interpretação como aquela que obteve vencimento no Acórdão nº 64/91, segundo a qual a consulta das organizações de trabalhadores deve ser realizada directa e autonomamente pela Assembleia da República, há-de ver-se que não há por que ter como ilegítimo o procedimento de elaboração da Lei nº 107/88 em face dos artigos 55º, alínea d), e 57º, nº 2, alínea a), da Constituição (redacção de 1982). É que, neste caso, a Assembleia da República cumpriu a exigência mínima que o Acórdão nº 107/88 do Tribunal Constitucional havia formulado em termos de alternativa. A legiferação tinha então como ponto de referência a jurisprudência desse mesmo acórdão, pelo que as regras de boa fé não permitem aqui um julgamento de inconstitucionalidade.
4) Finalmente, numa outra interpretação, e para quem as razões antes expendidas ainda não sejam decisivas, sublinha-se que, com esse fundamento, a inconstitucionalidade formal da Lei nº 107/88 não deve ter-se hoje já por relevante, pois que o Decreto-Lei nº 64-A/89, posteriormente emitido no uso dessa autorização, foi ele mesmo objecto da audição das organizações representativas de trabalhadores. Ora, como se afirmou no Acórdão nº 285/92
(Diário da República, 1ª Série-A, de 17 de Agosto de 1992), «assim sendo, e sem prejuízo do que o Tribunal tem afirmado quanto à audição pública referente a normas contidas em autorizações legislativas, tendo o diploma autorizado sido submetido a apreciação prévia pelas organizações sindicais, será de concluir que o desiderato substantivo do disposto nos artigos 54º, nº 5, alínea d), e 56º, nº
2, alínea a), da Constituição, no que à matéria em causa se refere, se encontra plenamente consumido pela audição promovida pelo Governo»' (acórdão nº 581/95, in Diário da República, I Série-A, nº 18, de 22 de Janeiro de 1996).
Importa acentuar que a situação apreciada pelo acórdão nº 581/95 era menos nítida do que a situação sub judicio: naquele acórdão, de facto, ponderou-se que a Assembleia da República - na sequência de uma pronúncia pela inconstitucionalidade formal de uma lei de autorização legislativa em matéria laboral, em fiscalização preventiva de constitucionalidade - procedera a uma forma de audição das organizações de trabalhadores, que se discutia se fora constitucionalmente adequada. Seja como for, são plenamente aplicáveis ao caso sub judicio as considerações feitas nesse acórdão, pois que, dando de barato que não tenha havido audição das organizações de trabalhadores relativamente à lei de autorização legislativa e que, por tal omissão, a mesma lei se acha afectada de inconstitucionalidade formal ou procedimental, daí não decorre que, após a publicação do diploma autorizado - único que pode dizer-se ter sido aplicado pelo acto administrativo impugnado e pela decisão recorrida - em que se verificou tal audição, se possa ainda relevantemente pôr em causa a constitucionalidade deste último diploma com fundamento numa inconstitucionalidade 'a montante'. Há-de, pois, concluir-se que a audição promovida pelo Governo consumiu a anterior audição ou mesmo a falta de audição quanto à lei autorizadora, não tendo sentido inquirir se ainda deve relevar o anterior vício de constitucionalidade desta última lei quando estão a ser aplicadas normas do diploma autorizado.
Nestes termos confirma-se o julgamento feito no acórdão recorrido quanto a esta questão de constitucionalidade, embora com base em diverso fundamento.
12. Cabe agora abordar a segunda questão de constitucionalidade suscitada pelo recorrente.
Recorda-se que o recorrente sustenta que o nº 3 do art. 1º da Lei nº
10/83, de 13 de Agosto, é inconstitucional por violação do nº 2 do art. 168º da Constituição, na medida em que o sentido dessa lei é extremamente vago ou impreciso, do seu ponto de vista.
Preliminarmente, chamar-se-á a atenção para que esta questão de constitucionalidade é suscitada num processo de fiscalização concreta, em que as normas aplicadas pelo autor do acto administrativo impugnado e pela decisão recorrida não pertencem à Lei nº 10/83, lei autorizadora, mas ao Estatuto Disciplinar, diploma autorizado. Verifica-se ainda que o recorrente não impugnou a constitucionalidade de normas específicas do decreto-lei autorizado, relativamente às quais teria pertinência verificar em concreto se o legislador autorizado ultrapassara o sentido da lei autorizadora.
Na verdade, como resulta do processo disciplinar apenso aos autos, foram imputados ao ora recorrente, na qualidade de arguido nesse processo disciplinar, condutas violadoras dos deveres de zelo e lealdade, revelando grave desinteresse pelo cumprimento dos deveres profissionais, podendo ler-se nos artigos de acusação que o mesmo havia cometido, 'em acumulação, duas infracções disciplinares, mas a censurar com uma única pena, nos termos do art. 14º, nº 1, do E.D., militando contra o mesmo a circunstância agravante especial do nº 1, al. b), do art. 31º do mesmo diploma' e não beneficiando de qualquer atenuante
(a fls. 122 do apenso).
No relatório final do instrutor, foram indicadas as normas que previam as infracções disciplinares dadas como provadas e a respectiva punição (a fls.
169 vº a 170 do apenso). Na decisão sancionatória proferida pelo Director-Geral da Polícia Judiciária, considerou-se provada a prática de duas infracções consistentes na 'violação do dever de zelo, revelador de desinteresse pelo cumprimento dos deveres profissionais, com previsão nos arts. 3º, nºs. 1 e 4, alínea b), 11º, nº 1, alínea c), 12º, nº 4 e 23º, nº 1, alínea e) do Estatuto Disciplinar, relativamente à matéria dos artigos 1º a 10º da acusação' e na
'violação dos deveres de zelo e lealdade, procedimento que atenta gravemente contra a dignidade e prestígio do funcionário e da função, com previsão nos arts. 3º, nºs. 1 e 4, alínea b) e d), 11º, nº 1, alínea d), 12º, nº 5 e 25º, nº
1 do mesmo Estatuto', indicando-se que militavam duas circunstâncias agravantes das alíneas b) e g) do nº 1 do art. 31º do referido Estatuto Disciplinar (a fls.
173 vº a 176 do apenso). A pena aplicada veio a ser fixada no quadro do disposto nos arts. 12º, nº 5, 14º e 25º do Estatuto Disciplinar (pena de inactividade por um ano).
Ora, numa apreciação necessariamente perfunctória, vale a pena referir que, no anterior Estatuto Disciplinar de 1979 (Decreto-Lei nº 191-D/79, de 25 de Junho), a pena de inactividade já constava do elenco das penas disciplinares nele previstas (art. 11º, alínea e), por confronto com a alínea d) do mesmo artigo do Estatuto de 1984), que os limites temporais dessa pena eram idênticos aos que constam do Estatuto de 1984 (limite mínimo de 1 ano e limite maxímo de 2 anos - art. 12º, nº 6, do Decreto-Lei nº 191-D/79), que, tal como no Estatuto Disciplinar de 1984, no antecedente já se previa que tal pena seria 'aplicável nos casos de procedimento que atente gravemente contra a dignidade e prestígio do funcionário ou agente ou da função' (art. 24º, nº 1), e que não foi substancialmente inovador o Estatuto de 1984 ao estabelecer o princípio da aplicação de pena única em caso de pluralidade de infracções disciplinares cometidas pelo mesmo funcionário ou agente (cfr. arts. 14º, nº 1, dos Decretos-Leis nºs. 191-D/79 e 24/84). Por último, importa dizer que o Decreto-Lei nº 191-D/79 já qualificava como infracção disciplinar 'o facto culposo praticado pelo funcionário ou agente, com violação de algum dos deveres gerais ou especiais decorrentes da função que exerce (art. 3º), noção que foi mantida - com o esclarecimento de que a mera culpa era punida - pelo art. 3º do Decreto-Lei nº 24/84, preceito que, louvavelmente, incluiu um elenco dos deveres gerais dos funcionários e agentes da Administração Pública (nºs. 4 e 12).
13. Assim sendo, só haverá de perguntar neste recurso se o diploma autorizador confere uma autorização legislativa completamente desprovida de sentido. Só neste caso se verificaria uma inconstitucionalidade completa da norma autorizadora que haveria de ter reflexos no diploma autorizado, tornando inconstitucionais as normas nele contidas que integrem o 'regime geral de punição das infracções disciplinares' (cfr. art. 168º, nº 1, alínea d), primeira parte, da Constituição).
Da leitura da norma impugnada retira-se que o legislador parlamentar autorizou o legislador governamental a introduzir alterações ao diploma vigente em matéria de regime disciplinar dos funcionários públicos da Administração Central, Regional e Local (Decreto-Lei nº 191-D/79, de 25 de Junho), 'a redefinir os factos ilícitos ou a definir novas formas de ilícito de corrupção passíveis de sanção disciplinar, a corrigir a dosimetria das penas em vigor e ainda a ultrapassar dificuldades de execução e a integrar lacunas do Estatuto Disciplinar'.
Num plano abstracto - isto é, abstraindo da análise pormenorizada das soluções adoptadas pelo legislador governamental - não pode dizer-se que falta totalmente o sentido da lei autorizadora, contrariamente ao que pretende o recorrente.
14. O sentido de uma autorização legislativa constitui um limite interno dessa autorização, porque é 'essencial para a determinação das linhas de força, no plano substantivo, que nortearão o exercício dos poderes delegados', devendo considerar-se que tal sentido, 'sendo um dos elementos do «conteúdo mínimo exigível» da lei de autorização, só é efectivamente observado quando as indicações a esse título constantes da lei de autorização permitam um juízo seguro de conformidade material do conteúdo do acto delegado em relação ao da lei delegante, pelo que, se o «sentido» não tem que exprimir-se em abundantes princípios ou critérios directivos, deverá, pelo menos, ser suficientemente inteligível para que o seu conteúdo possa preencher a função paramétrica que a Constituição lhe confere' (formulações do acórdão nº 358/92, publicado no Diário da República, I Série-A, nº 21, de 26 de Janeiro de 1993, louvando-se no estudo de António Vitorino, As Autorizações Legislativas na Constituição Portuguesa, ed. policopiada, Lisboa, 1985, págs. 231 e seguintes).
No plano referido e tendo especialmente em conta o confronto das normas aplicadas na decisão disciplinar confirmada judicialmente com as correspondentes do Estatuto Disciplinar de 1979 que atrás se levou a cabo, há-de convir-se que o legislador parlamentar observou o disposto no nº 2 do art. 168º da Constituição, dando uma indicação 'suficientemente inteligível' ao legislador autorizado para rever o anterior Estatuto Disciplinar, ultrapassando algumas lacunas, nomeadamente a indicação dos deveres gerais dos funcionários e agentes públicos, cuja violação constitui acto ilícito disciplinar.
Não procede, assim, a tese sustentada pelo recorrente de que o legislador autorizado não podia publicar um novo diploma, devendo limitar-se a alterar o anterior. É manifesto que a opção de republicar integralmente o Estatuto Disciplinar anteriormente vigente é constitucionalmente admissível, sendo seguro que se trata de uma mera opção de técnica legislativa que tem a ver com um juízo de adequação sistemática que o legislador autorizado podia seguramente fazer. Pode, assim, dizer-se - repete-se, neste plano de generalidade - que a norma impugnada contém um 'pano de fundo orientador do Governo', 'permitindo [dar a conhecer] aos cidadãos, em termos públicos, qual a perspectiva genérica das transformações que vão ser introduzidas no ordenamento jurídico em função da outorga da autorização' (formulações de António Vitorino, acolhidas no citado acórdão nº 358/92) e permitindo também fornecer ao Governo
'os critérios de delimitação substancial indispensáveis à respectiva concretização legislativa', ainda que possa não constituir 'um exemplo paradigmático do modo como deve ser traduzido o sentido das autorizações legislativas' (formulações retiradas do acórdão nº 213/95 que visam a autorização legislativa conferida pela Lei nº 12/83, de 24 de Agosto, publicada no Diário da República, II Série, nº 145, de 26 de Junho de 1995).
15. Conclui-se, assim, que não é inconstitucional em globo a norma impugnada pelo recorrente, sem embargo de se admitir a eventualidade de, quanto a soluções concretas do diploma autorizado, diversas, porém, das aplicadas ao recorrente, se poder discutir a sua constitucionalidade por hipotética falta de sentido da autorização legislativa quanto a tais soluções concretas (veja-se, neste sentido, a título de exemplo, o recente acórdão nº
414/96, publicado no Diário da República, II, nº 163, de 16 de Julho de 1996, onde se reafirmou que, se o sentido de uma autorização legislativa 'não há-de corresponder a uma enunciação minuciosa de todos os aspectos a regulamentar, sob pena de conter em si próprio o texto legislativo em questão, não poderá, todavia, deixar de conter de forma clara uma enunciação que possa servir de parâmetro e medida aos actos delegados').
16. A conclusão agora obtida permite responder à terceira questão de constitucionalidade suscitada pelo recorrente, relativa à inconstitucionalidade derivada ou reflexa do Decreto-Lei nº 24/84, de 16 de Janeiro.
De facto, não sendo globalmente inconstitucional a norma autorizadora, norma cuja validade é pressuposto necessário do conjunto de normas que constituem o diploma autorizado, há-de necessariamente concluir-se que não são globalmente inconstitucionais as normas desse diploma autorizado, nomeadamente as aplicadas na decisão disciplinar confirmada judicialmente.
Esta afirmação - sublinhe-se - não implica que não possam considerar-se inconstitucionais certas soluções em concreto constantes do diploma autorizado. Simplesmente, o recorrente não apontou em concreto quais as normas aplicadas pela decisão recorrida que seriam inconstitucionais por invalidade constitucional da norma autorizadora, não tendo o Tribunal Constitucional, na análise perfunctória levada a cabo atrás, detectado qualquer inovação legislativa substancial nas normas do Estatuto Disciplinar de 1984 que foram aplicadas ao ora recorrente.
17. Impõe-se, assim, a conclusão de que não merece provimento o recurso em análise, quanto a todas as questões de constitucionalidade suscitadas.
IV
18. Nestes termos e pelas razões expostas, decide o Tribunal Constitucional negar provimento ao recurso, confirmando o acórdão recorrido quanto ao julgamento das questões de constitucionalidade suscitadas, ainda que parcialmente por fundamentos diversos.
Lisboa, 18 de Março de 1997 Armindo Ribeiro Mendes Alberto Tavares da Costa Maria da Assunção Esteves Vítor Nunes de Almeida Antero Alves Monteiro Diniz José Manuel Cardoso da Costa