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Proc.nº 68/96
2ª Secção Relator: Cons. Sousa e Brito
I RELATÓRIO
1.No desenvolvimento de acção ordinária intentada por A., visando exercer um direito de preferência na compra de um imóvel, contra o B. e outros veio a ser proferido pelo Supremo Tribunal de Justiça (STJ) Acórdão, datado de 17 de Março de 1993 (certificado a fls. 11/18), negando a revista promovida por esta agremiação, na sequência de decisões desfavoráveis da 1.ª e
2.ª Instâncias.
Desta decisão decorreu, no essencial, para a referida A. o reconhecimento do direito de preferência na venda do imóvel em causa; a adjudicação deste em substituição do aqui recorrente B.; a atribuição a este
último da quantia depositada, relativa ao exercício da preferência.
Veio então o B. (na peça certificada a fls.16) interpor recurso para o Tribunal Pleno, nos termos dos artigos 763º e seguintes do Código do Processo Civil (CPC), alegando :
'... manifesta oposição, no domínio da mesma legislação (parágrafo 1º do artº
1566º do Código Civil de 1867 e o nº 1 do artº 1410º do actual Código Civil já que não são relevantes as alterações de redacção) sobre a mesma questão fundamental de Direito, ou seja, (saber se a expressão preço, utilizada naquelas disposições refere-se apenas ao valor pago pela compra e venda ou se inclui também as demais despesas de sisa e escritura) com anterior Acórdão do STJ, com trânsito em julgado e proferido em processo diferente:
- de 20 de Fevereiro de 1970, publicado no BMJ nº194,p.202.'
Admitido o recurso, produziu o recorrente a alegação referida no nº 3 do artigo 765º do CPC, tendo o Pleno da Secção Cível do STJ decidido, através de Acórdão de 5 de Maio de 1994 (fls. 51/54), pela diversidade da questão fundamental de direito resolvida em ambos os arestos, considerando, assim, o recurso findo.
1.1. Reagiu o recorrente B., interpondo novo recurso para o Pleno, nos seguintes termos :
'... porquanto o mesmo Acórdão (refere-se ao de 5/5/94 de fls.51/54) está em manifesta oposição, no domínio da mesma legislação (artº 763º do CPC) sobre a mesma questão fundamental de Direito, que é exactamente a definição do que seja oposição de acórdãos sobre a mesma questão fundamental de Direito, com anterior Acórdão deste STJ, com trânsito em julgado e proferido em processo diferente:
- de 18 de Dezembro de 1962, publicado no BMJ nº 122, p. 517.'
Não admitido este recurso, por despacho do Relator (fls.64/65), veio o recorrente suscitar, nos termos do artigo 700 nº 3 do CPC, a prolação de Acórdão pela Conferência, o qual confirmou o entendimento do Relator. Ou seja, o de que a referência do nº 1 do artigo 767º do CPC a que, decidindo-se pela inexistência de oposição 'o recurso considera-se findo', significa que de tal decisão não há recurso, designadamente para o Pleno, nos termos do artigo 763º do mesmo diploma (Acórdão de 14 de Dezembro de 1994 a fls. 86/88).
Veio, então, o recorrente recorrer novamente para o Pleno, alegando estar este último Acórdão :
'...em manifesta oposição no domínio da mesma legislação (nº 1 do artº 767º do CPC), sobre a mesma questão fundamental de Direito que é exactamente a de saber se o nº 1 do artº 767º do CPC impede, ou não, que do acórdão da secção se recorra para o Pleno desde que se invoque fundamento de harmonia com o disposto no artº 763º do mesmo Código, oposição que ocorre relativamente ao decidido, em Acórdão anterior deste Supremo Tribunal de Justiça, com trânsito em julgado, e proferido em processo diferente :
- Acórdão de 12 de Outubro de 1988 publicado no BMJ nº 380, p.428. E acrescentou :
'Pode-se considerar estranho que tendo-se entendido no acórdão recorrido que não era admissível recurso nos termos agora colocados, se venha interpor novo recurso. Porém, trata-se de uma contradição de julgados do STJ, que, não deve deixar de poder ser ultrapassada por via de assento, em benefício da ordem jurídica, do Direito e da Justiça, sob pena de se ofender os princípios constitucionais do acesso à justiça e ao direito e de se cair em verdadeira denegação de justiça. Entende-se mesmo que uma interpretação restritiva do nº 1 do artº 767º do CPC conduz à sua inconstitucionalidade.'
Através do Acórdão de 26 de Abril de 1995 (fls.113/115) decidiu a Secção existir oposição relevante para o prosseguimento do recurso entre os dois invocados Acórdãos do STJ seguindo-se as alegações sobre o objecto do recurso (artigo 767º nº 2 do CPC).
Nestas o recorrente pugnou pela formulação de assento com o seguinte teor :
'O disposto no nº 1 do artº 767º do CPC não impede que do Acórdão da Secção se recorra para o Pleno, desde que se invoque fundamento, de harmonia com o disposto no artº 663º do mesmo Código.'
O Ministério Público, contrariamente, propôs a formulação inversa:
'O disposto no nº 1 do artigo 767º do CPC impede que de acórdão da Secção Civil do STJ, reunida em conferência, que decidiu não existir oposição de acórdãos e considerou findo o recurso, se recorra de novo para o Tribunal Pleno, mesmo que se invoque fundamento de harmonia com o disposto no artigo 763º do mesmo diploma.'
1.2. Decidindo lavrou o STJ, em 22 de Novembro de 1995, o Acórdão de fls. 191/204, do qual se transcreve a seguinte passagem :
'--------------------------------------------
4 - O artigo 2º do Código Civil veio declarar os assentos fonte mediata de direito, depois de eliminado o nº 2 do artigo 769º do CPC na sua última redacção. Por acórdão do Tribunal Constitucional, de 7 de Dezembro de 1993, foi julgada inconstitucional a norma desse artigo 2º do Código Civil, na parte em que atribui aos Tribunais competência para fixar doutrina com força obrigatória geral, por violação do disposto no artigo 115º da Constituição da República portuguesa.
Essa inconstitucionalidade foi declarada sem força obrigatória geral.
Acabou, porém, a chamada 'função legislativa' dos assentos, passando as decisões do Tribunal Pleno a ter apenas a finalidade de uniformizar a jurisprudência, numa interpretação obrigatória para os Tribunais Judiciais inferiores e para o próprio Supremo Tribunal que proferiu o acórdão.
VI - É neste contexto que tem de se decidir quanto à questão posta de se saber se pode haver recurso para o Tribunal Pleno com o fundamento na oposição entre o acórdão da secção que julgou findo o recurso e um outro acórdão anterior.
Como já vimos na decisão da questão preliminar, o acórdão fundamento de
12 de Outubro de 1988 louvou-se sobretudo na doutrina do Prof. Alberto dos Reis sobre o conceito de 'oposição' extraído do artigo 763º do CPC de 1939.
No CPC de 1962, a oposição é a que existe entre dois acórdãos (o recorrido e o fundamento) e, por isso, só pode invocar-se um acórdão fundamento dito em oposição com o recorrido. Só quando há mais do que uma questão fundamental de direito decidida em sentido oposto, é que se pode invocar mais de um acórdão fundamento (tantos, quantas as decisões em oposição sobre questões fundamentais de direito).
No caso concreto, a questão fundamental era só a de saber o que se entendia por 'preço devido' para o exercício do direito de preferência.
Portanto, apenas se invocou um acórdão dito em oposição com o Acórdão recorrido, oposição essa que, como vimos se decidiu não existir e, por isso, o recurso foi julgado findo.
(...) A oposição deve verificar-se entre dois acórdãos e, admitir-se o recurso do acórdão da secção seria admitir a oposição entre mais de dois acórdãos sobre a mesma questão fundamental de direito, pelo facto do recorrente não ter seleccionado inicialmente bem o acórdão fundamento em oposição com o acórdão recorrido.
Por outro lado, admitir o novo recurso do acórdão da secção em oposição com um outro acórdão anterior, seria admitir uma cadeia de recursos sucessivos, o que frontalmente contraria o nosso sistema de impugnação das decisões judiciais.
E, quando no nº 1 do artigo 767º do CPC se diz que, nesse caso o mesmo se considera findo, quer significar-se que da decisão não há recurso.'
Em função destas considerações, lavrou o STJ o seguinte
«assento» :
'Tendo a secção julgado findo o recurso para o Tribunal Pleno, por não haver oposição entre os acórdãos, nos termos do nº 1 do artigo 767º do CPC, não há novo recurso para o mesmo Tribunal Pleno, com fundamento de haver oposição ente o acórdão da secção e um outro acórdão anterior.'
1.3. É nesta sequência que surge o recurso para este Tribunal por banda do B., assim interposto:
' a) Nos termos da alínea b) nº 1 do artº 70º da Lei nº 28/82, de 15/11 Conforme suscitou no seu requerimento de interposição de recurso para o Tribunal Pleno de fls., o recorrente adiantou que uma interpretação restritiva do nº 1 do artº 767 do CPC, como a que veio a ser adoptada no Acórdão recorrido conduziria
à sua inconstitucionalidade (violação dos artºs 13º, 20º, 205º, 207º e 208º da Constituição da República Portuguesa).
b) Nos termos da alínea a), nº 1 do artigo da Lei nº28/82, de 15/11 No acórdão sob recurso recusou-se a aplicação do disposto no artº 2º do C. Civil, com fundamento na sua inconstitucionalidade, solução com a que se não concorda nem aceita...'
(sublinhados no original)
Admitido o recurso atingiu-se a fase das alegações neste Tribunal.
1.3.1. O recorrente B. expressou o entendimento (quanto ao recurso que funda na alínea b) do nº 1 do artigo 70º da LTC) de que o Acórdão recorrido efectuou 'uma interpretação do nº 1 do artigo 767º (do CPC) que o inconstitucionaliza, na medida em que se opõe à possibilidade de uma qualquer parte interessada em decisão proferida nos termos daquela disposição, interpor recurso para o Pleno, nos termos do artigo 763º do CPC, mesmo que esse acórdão esteja em oposição com outro do STJ, que se tenha pronunciado sobre a mesma questão fundamental de direito'. Este entendimento expresso no Acórdão violaria, no essencial, o princípio da igualdade decorrente do artigo 13 da Constituição, traduzindo ainda uma 'denegação de Justiça', violadora do artigo 20º da Lei Fundamental.
No mais (no que concerne ao recurso fundado na alínea a) do nº
1 do artigo 70º da LTC) entende o recorrente como não violador do artigo 115º nº
5 do texto constitucional o disposto no artigo 2º do Código Civil.
1.3.2. A recorrida A., por seu lado, entende não ter o recorrente suscitado nas alegações que antecederam imediatamente a decisão recorrida a inconstitucionalidade do artigo 767º nº1 do CPC, não se verificando, em qualquer caso, as inconstitucionalidades referidas.
1.4. Colhida resposta do recorrente à questão de admissibilidade do recurso suscitada pela recorrida e colhidos também os vistos da Secção, cumpre, finalmente, decidir.
II FUNDAMENTAÇÃO
2. Apela o recorrente a dois fundamentos de recurso de constitucionalidade [recusa de norma fundada em inconstitucionalidade (alínea a) do nº 1 do artigo 70º da LTC) e aplicação de norma arguida de desconformidade constitucional (alínea b) do nº 1 do artigo 70º da LTC)] que importa apreciar separadamente.
2.1. Por facilidade de exposição iniciar-se-á a abordagem pela alegada recusa de aplicação do artigo 2º do Código Civil.
Anotaremos, preliminarmente, que o Acórdão recorrido,
datado de Novembro de 1995, é anterior à prolação (28 de Maio de 1996) e à publicação (18 de Julho de 1966) do Acórdão nº 743/96, deste Tribunal, o qual em sede de fiscalização abstracta, nos termos do artigo 281º nº3 da Constituição, declarou a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, da norma do artigo 2º do Código Civil, na parte em que atribui aos tribunais competência para fixar doutrina com força obrigatória geral, por violação do disposto no artigo 115º nº 5 da Constituição (DR, I Série-A de 18/7/96).
Da mesma forma haverá que referir que, na sequência da reforma do Processo Civil decorrente do DL n.º 329-A/95 de 12 de Dezembro (com as alterações neste introduzidas pelo DL n.º 180/96, de 25 de Setembro), foi revogado o artigo 2º do Código Civil (artigo 4º n.º 2 do DL n.º 329-A/95) e quanto aos 'assentos já proferidos' passaram estes (artigo 17º nº2 do DL n.º
329-A/95) a ter 'o valor dos acórdãos proferidos nos termos dos artigos 732º-A e
732º-B' do CPC revisto [este entra em vigor no dia 1 de Janeiro de 1997 (artigo
16º do DL n.º 329-A/95) embora a revogação dos artigos 763º a 760º na redacção em causa neste processo seja, nas palavras do artigo 17º n.º 1 do DL n.º
329-A/95, 'imediatamente aplicável'].
Independentemente destes factos, sempre se poderia perguntar se, em rigor, a decisão recorrida, no trecho atrás transcrito, situado no ponto
4 de fls.195, contém uma recusa de aplicação do artigo 2º do Código Civil, ao afirmar, tão só, que 'Acabou (...) a chamada 'função legislativa' dos assentos, passando as decisões do Tribunal Pleno a ter apenas a finalidade de uniformizar a jurisprudência, numa interpretação obrigatória para os Tribunais Judiciais inferiores e para o Supremo Tribunal que proferiu o acórdão', acrescentando adiante, 'É neste contexto que tem de se decidir...'.
É certo que se poderá ver nesta afirmação uma recusa implícita do artigo 2º do Código Civil numa determinada dimensão interpretativa: aquela em que o Acórdão nº 810/93 deste Tribunal (DR, II Série de 2/3/94), expressamente citado pela decisão recorrida, entendeu inconstitucional esse artigo 2º. E certo
é, também, que uma recusa implícita desse tipo (a que aplica certa interpretação de uma norma por considerar a outra interpretação inconstitucional) não deixaria de abrir a via do recurso previsto na alínea a) do nº 1 do artigo 70º da LTC
(neste sentido v. Acórdãos nºs 266/92 e 41/95, respectivamente, no DR, II Série de 23/12/92 e 27/4/95). Porém, - e este aspecto é decisivo - não se pode esquecer essa «dupla personalidade» de um assento, tal qual o artigo 2º do Código Civil globalmente o desenha, consistente em resolver um caso concreto e, para além dele, projectar-se 'com força obrigatória geral' em casos futuros. Ora, neste caso - e trata-se aqui de fiscalização concreta, como tal indissociável da específica relação processual em que surge - essa 'força obrigatória geral', que o recorrente reinvindica, não se manifesta (neste processo a decisão recorrida tem eficácia, mas não constitui 'doutrina com força obrigatória geral', nas palavras do artigo 2º do Código Civil).
Significa isto que o recorrente obteve, neste processo, a decisão que lhe era possível obter, a decisão do seu recurso para o Pleno, e, se acaso essa mesma decisão contém uma recusa da projecção geral do «assento» para além do processo em que foi proferido [note-se que as declarações de voto dos Exm.ºs Conselheiros Oliveira Branquinho (a fls.199) e Martins da Costa (a fls.200) apontam no sentido de essa recusa existir], esse aspecto acaba por ser totalmente irrelevante para o recorrente; essa eventual recusa, enfim, acaba por não funcionar minimamente como ratio decidendi do que a decisão apresenta de relevante para o aqui recorrente, não comportando para ele - como aliás nunca poderia comportar - qualquer manifestação dessa 'função legislativa' dos assentos que o Acórdão recorrido diz ter acabado.
Não existiu, assim, qualquer desaplicação, operante para efeitos do presente recurso, do artigo 2º do Código Civil, pelo que não se verifica o pressuposto de admissibilidade da alínea a) do nº 1 do artigo 70º do LTC.
Nesta conformidade, o Tribunal não tomará conhecimento do recurso, na parte em que ele - fundado na alínea a) do nº 1 do artigo 70º da LTC
- se refere ao artigo 2º do Código Civil.
2.2. Subsiste o recurso reportado à alínea b) do artigo 70º nº
1, por alegada aplicação do artigo 767º nº 1 do CPC numa interpretação arguida de inconstitucional.
Quanto a este, importará desde já apreciar a questão prévia suscitada pela recorrida, de saber se ocorreu uma invocação relevante, anterior
à decisão, da ilegitimidade constitucional que pretende declarada por este Tribunal.
2.2.1. No essencial entende a recorrida que a questão de constitucionalidade, tendo sido aflorada no requerimento de fls.91, foi abandonada nas posteriores alegações de fls.118/122.
A jurisprudência deste Tribunal, maioritariamente
(maioritariamente pois têm sido formulados votos de vencido quanto ao sentido dessas decisões), vem entendendo que uma questão de inconstitucionalidade normativa, uma vez suscitada num processo, carece de ser mantida ('recolocada') perante posteriores instâncias de recurso (v. neste sentido os Acórdãos nºs
36/91 no DR, II Série de 22/10/91; 368/94 inédito; 182/95 no DR, II Série de
21/6/95; 6/9/95, inédito; 747/96 no DR, II
Série de 4/9/96 - note-se, porém, que no Acórdão nº 232/92, publicado no DR, II Série de 4/11/92, a 1ª Secção deste Tribunal, entendeu não valer a doutrina do Acórdão nº 36/91 nos casos em que a parte que suscitara antes a questão de inconstitucionalidade, obteve ganho de causa e passou a ser recorrida numa instância de recurso diversa: aí, deixaria de ter o ónus de recolocar a questão).
Na situação que ora nos ocupa, mostra-se imprescindível ter presente o processamento do «Recurso para o Tribunal Pleno» previsto nos artigos
763º a 770º do CPC, situando nesse âmbito as peças processuais indicadas.
A interposição de recurso para o Pleno, invocando os fundamentos do artigo 763º do CPC, dá lugar a uma primeira decisão da Secção, em Conferência (que por não fazer caso julgado formal não é vinculativa, posteriormente, para o Pleno - artigo 766º nº 3 do CPC), incidindo sobre a existência, ou não, da «oposição» invocada como fundamento de recurso. Prosseguindo o processo (como no trecho processual aqui em causa sucedeu), com a prolação do acórdão afirmando a oposição entre as decisões pretexto e fundamento, segue-se uma fase em que as partes devem produzir alegações 'sobre o objecto de recurso', seguindo-se a estas um parecer do Ministério Público
(artigo 767º nº 2 do CPC). Finalmente, surge o acórdão julgando o conflito - o acórdão do Plenário - com intervenção de, 'pelo
menos, quatro quintos dos magistrados que compõem as secções do Tribunal'
(artigo 768º nº 1 do CPC).
Existem, assim, dois graus de julgamento do mesmo recurso dentro do mesmo Tribunal dirigidos, é certo, a formas diversas de funcionamento desse Tribunal: Conferência da Secção; Plenário (v. Armindo Ribeiro Mendes, Recursos em Processo Civil, 2ª ed., Lisboa 1994, pp.292 e ss.).
A alegação que neste processo se situa a fls.91 (onde se refere que 'uma interpretação restritiva do nº 1 do artigo 767º do CPC conduz à sua inconstitucionalidade') reporta-se à fase preliminar do recurso para o Pleno, a destinada a obter o reconhecimento da oposição de acórdãos. As alegações de fls.
118/122 têm que ver com a segunda fase do recurso, as que directamente se devem referir à questão de fundo. Estamos, no entanto, em rigor, perante a mesma instância de recurso (embora perante formas diversas de funcionamento dessa instância) e dentro do mesmo recurso (embora em fases diferentes do processamento deste), em termos tais que há que ter por suscitada relevantemente perante o STJ, mesmo relativamente à fase do recurso em que ocorre a intervenção do Plenário, a questão de inconstitucionalidade na primitiva alegação, tendente a provocar o julgamento da questão preliminar, nos termos do artigo 766º nº1 do CPC.
Nesta conclusão convergem ainda duas outras razões.
Em primeiro lugar não é totalmente exacto que o recorrente nas alegações de fls.118/122 não tenha voltado a colocar a questão de constitucionalidade a que aludira anteriormente, na peça de fls.91. Com efeito, a fls. 118 vº, depois de sublinhar ser caso de fixação de jurisprudência quanto ao alcance do nº 1 do artigo 767º do CPC, escreveu :
'Está implicitamente ínsito no princípio do acesso ao direito e aos tribunais, não só a regra da maior amplitude no sentido da admissibilidade dos recursos, como também a da certeza do direito. Tais princípios militam e apontam para que este Supremo Tribunal de Justiça venha, em Tribunal Pleno, a proferir assento que fixe a interpretação do nº 1 do artigo 767 do CPC, em termos de não coarctar a possibilidade de se recorrer para O Pleno, por oposição de acórdãos, e relativamente aos acórdãos que tenham sido ali proferidos no âmbito de um recurso já baseado em oposição de acórdãos.'
Por outro lado a situação aqui em causa apresenta especificidades muito marcantes. Mais do que um recurso 'normal' para o Pleno, temos um recurso (para o Pleno) enxertado, como decorrência de determinada tramitação, num primitivo recurso que, destinado ele também a esse mesmo Pleno,
aí não chega em função de um Acórdão interlocutório inicial negando a verificação dos pressupostos indicados no artigo 763º do CPC (o Acórdão de
5/5/94, constante de fls. 51/54). Esta 'complicação', em que se ultrapassa a questão inicial de direito substantivo para se passar a discutir, sempre dentro do mesmo recurso para o Tribunal Pleno, a marcha deste tipo de recurso, induziu um processado menos comum onde se afigura aceitável que a questão de constitucionalidade, uma vez 'isolada', possa entender-se atempadamente suscitada quando o foi num momento que sendo anterior à decisão não seria o imediatamente anterior.
2.2.2. Ainda numa abordagem prévia à apreciação desta questão de fundo, ocorre sublinhar a relevância do problema de constitucionalidade que se coloca, face à decisão recorrida, na lógica do processo e da posição do recorrente.
Tudo começou com uma acção de preferência, julgada até ao STJ contra os interesses do aqui recorrente, em que o recurso para o Tribunal Pleno pretende a fixação, através de assento, de determinado sentido da expressão
'preço devido' para o efeito do disposto no artigo 1410 nº 1 do Código Civil. Negada inicialmente a verificação dos pressupostos do recurso para o Pleno, através do Acórdão de fls. 51/54, passa-se a
discutir o conceito de 'oposição' subjacente a esse Acórdão e, finalmente, face
à afirmação contida neste Acórdão de fls. 51/54 de que a referência do nº 1 do artigo 767º do CPC a que o recurso se considera findo (negando-se a existência de oposição) significa que dessa decisão não cabe recurso, passa-se a discutir
- e essa discussão acaba por chegar ao Pleno - se a expressão 'findo' significa se há ou não recurso dessa decisão para o mesmo Pleno, 'com fundamento de haver oposição entre o acórdão da secção e um outro acórdão anterior'.
A relevância para o recorrente desta última decisão (do assento aqui proferido) obtém-se através daquilo que, procurando uma imagem, poderíamos chamar de 'efeito dominó' em sentido inverso. Isto é: decidindo-se que do acórdão da secção julgando findo o recurso caberia recurso para o Pleno (na base de contradição com o anterior acórdão do STJ), discutir-se-ia, neste processo o conceito de 'oposição' subjacente ao Acórdão de fls.51/54 e, através dessa discussão, poder-se-ia chegar à discussão (inicial) de qual o conceito de 'preço devido', questão esta indiscutivelmente relevante para o aqui recorrente.
2.3. E assim, chegamos finalmente, à questão de fundo: a de saber se a recomposição da norma constante do nº1 do artigo 767º do CPC, operada pelo assento aqui recorrido, viola normas ou princípios constitucionais.
Diz o assento :
'Tendo a secção julgado findo o recurso para o Tribunal Pleno, por não haver oposição entre os acórdãos, nos termos do nº 1 do artigo 767º do CPC, não há novo recurso para o mesmo Tribunal Pleno, com fundamento de haver oposição entre o acórdão da secção e um outro acórdão anterior'.
Esta norma, nesta interpretação, entende-a o recorrente (que a qualifica de interpretação restritiva) como violadora do princípio constitucional do acesso à justiça e ao direito.
Tal princípio, que subjaz ao artigo 20º da Constituição, relevaria, nesta situação concreta, numa leitura que dele fizesse emergir um
«direito ao recurso» (aqui seria um «direito ao recurso» para o Tribunal Pleno).
Ora, neste campo da sua concatenação do princípio constitucional do acesso à justiça com um direito ao recurso, em termos gerais, no específico domínio do processo civil, tem este Tribunal um vasto e consolidado património decisório (v.Armindo Ribeiro Mendes, ob.cit. pp.99 e ss.; Carlos Lopes do Rego, Acesso ao Direito e aos Tribunais, in «Estudos sobre a Jurisprudência do Tribunal Constitucional», Lisboa 1993, pp.80 e ss.; v. a título de exemplo, os Acórdãos nºs 287/90, publicado nos Acórdãos do Tribunal Constitucional, 17º Vol., p.159 e 377/96, ainda inédito).
O sentido básico deste património expressa-se no entendimento de que, fora as hipóteses de recurso em matéria penal (que haverá que ler à luz da garantia emergente do nº 1 do artigo 32º da Constituição), o direito ao recurso (nas suas diversas manifestações) é 'restringível pelo legislador ordinário', estando-lhe apenas 'vedada a abolição completa ou afectação substancial (entendida como redução intolerável ou arbitrária)' deste, sendo que o texto constitucional 'não garante, genericamente, o direito a um segundo grau de jurisdição e muito menos , a um terceiro grau' (citações extraídas do acórdão nº 287/90).
Estamos, na situação sub judice, perante um uso exuberante do direito de recorrer, cujo 'travar', em função da interpretação fixada na assento quanto ao artigo 767º nº 1 do CPC, não belisca minimamente o direito de acesso à justiça. Este, sempre terá de ser compaginado com a operatividade do sistema judiciário e esta sempre pressupõe mecanismos proporcionais de filtragem dos recursos. Para mais numa situação, como esta, em que a discussão das questões colocadas foi efectivamente assegurada amplamente em sucessivas instâncias e dentro da mesma instância.
2.3.1. Fala ainda o recorrente de violação do princípio da igualdade, pois - e citamos as alegações produzidas junto deste Tribunal -,
'partes haverá que face à contradição de julgados do STJ podem obter decisão uniformizadora da jurisprudência e outras haverá que, em idêntica situação, vêm-lhe vedada essa possibilidade' (fls.214). Porém, não se vê (e o recorrente não o demonstra minimamente) que partes, em idêntica situação à dele, obteriam a uniformização de jurisprudência que reclama ter-lhe sido negada pela decisão recorrida.
III DECISÃO
3. Pelo exposto decide-se:
a) Não tomar conhecimento do recurso quanto ao artigo 2º do Código Civil;
b) Não julgar inconstitucional a norma constante do artigo 767º nº 1 do Código de Processo Civil, na interpretação resultante do Assento constante da decisão recorrida, com a consequente confirmação da mesma, no que à questão de constitucionalidade respeita. Lisboa, 12 de Março de 1997 José de Sousa e Brito Messias Bento Guilherme da Fonseca Bravo Serra Luís Nunes de Almeida