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Procº nº 62/96.
2ª Secção. Relator:- BRAVO SERRA.
I
1. Após a realização do cabido inquérito, deduziu o Licº A..., que se constituiu assistente nos autos, acusação particular - no que foi acompanhado pelo Ministério Público - e pedido de indemnização contra V..., imputando-lhe o cometimento de factos que subsumiu à autoria de um crime de difamação cometido através de meios de comunicação social.
Depois de realizados a instrução e o debate instrutório, veio o arguido a ser pronunciado 'como autor material de um crime p. e p. pelo artº 164, nº 1, 167º, nº 2 do C. Penal e 26º, nº 1 alínea a) do Dec. Lei
85-C/75, de 26/2'.
2. Tendo, por sentença proferida em 15 de Maio de 1995 no 5º Juízo Criminal de Lisboa, sido o arguido absolvido e sido declarado improcedente o formulado pedido de indemnização, da mesma recorreu para o Tribunal da Relação de Lisboa o Licº A..., o qual, nas conclusões da respectiva motivação, inter alia, referiu:-
'............................................. H - As expressões usadas na direcção do assistente no editorial junto aos autos, são em si mesmas, do ponto de vista objectivo e subjectivo, insultuosas. As ideias são insepa- ráveis do homem, e como tal o termo ideológico aplicável só no § 1º. atinge também a pessoa. As ideias constituem representações intelecti- vas da realidade. Abrangem a essência das coisas e não os seus carácteres individualizantes. I) - As expressões utilizadas pelo arguido atingiram, necessariamente a honra, dignidade e identidade do ofendido - ... J) - O círculo dos leitores da notícia em questão dotados de cultura média, em Portugal, ficaram com a ideia de que o assistente é anti-semita, fascista, grotesco, boçal e alarve. L) - Levando em conta o plano pessoal, profis- sional e social do assistente, é apodítico concluir que a ideia da personagem é objecti- vamente adequada para lesar a sua pretensão ao bom nome, consideração e respeito social. M) - Mesmo na área política, cuja predilecção o arguido não esconde, o seu escrito inscreve- -se sempre na função pública da Imprensa. N) - Para tanto, sempre terá de informar e formar a opinião. O) - Há erro grave e notório, ao aceitar, como faz a sentença, que se trata de
área marginal, onde os excessos se auto-regulam. P) - Ora, a protecção jurídico-penal da honra conserva o seu significado perante expressões e afirmações como as que o arguido debitou àcerca do ofendido. Q) - O direito ao bom nome, reputação e iden- tidade sobrepõe-se ao direito de informação e crítica da Imprensa, na rota de colisão que se operou com a publicação deste editorial da responsabilidade do arguido. R) - A douta sentença recorrida, violou o disposto nos artºs. 379º. e 410º., alíneas a) a c), do Cód. Proc. Penal e por erro de inter- pretação e aplicação o disposto nos artºs. 164º. e 167º., nº. 2, do C. Penal e artº. 26º. do DL
85-C/75, de 26.2 e artºs. 70º., 483º., 484º. e 496º., nº. 3, do C. Civil.
.............................................'
3. Na resposta à motivação, o arguido, a dado passo, discreteou do seguinte modo:-
'.............................................
47. O exercício da liberdade de expressão e da liberdade de informação pelo recorrido não teve sequer a potencialidade de colidir com o direito ao bom nome e reputação do recorrente, pelo que não haveria sequer de introduzir na avaliação da matéria dos autos, questões como as da 'ponderação de interesses' ou da 'con- cordância prática dos direitos fundamentais'.
48. No entanto, por mera cautela e no caso de se entender que de alguma forma houve tal colisão, não pode deixar de se referir que o recorrente labora em grave erro ao pretender como válida a afirmação de que 'Os direitos ao bom nome e reputação sobrepõem-se ao direito de informação e crítica da Imprensa'.
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52. E é por isso que, mesmo que se admitisse que de alguma forma estaria em causa a honra do recorrente, o que só, por dever de patrocínio se admite, então sempre estaria excluída a ilicitude do acto, por se estar no exercício, não de um mas de vários direitos e liberdades: liberdade de expressão e de opinião, direito de informar, liberdade de imprensa e direito de participação na vida pública.
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55. Por último e em resumo, sempre se dirá que a ter acolhimento o entendimento propugnado pelo recorrente quanto à interpretação do artº. 164.º do Código Penal com que pretende a condenação do recorrido no caso em apreço, se estaria a violar o disposto nos art.ºs 18.º, 37.º n.ºs 1 e 2, 38.º n.ºs 1 e 2 a) e 48.º n.º 1 da C.R.P. e o art.º 10.º n.º 1 e 2 da C.E.D.H. por se sobrepor de forma intolerável, porque não proporcional, um pretenso direito à honra aos direitos fundamentais referenciados, esmagando a liberdade de expressão e de opinião de uma forma injustificada.
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4. O Tribunal da Relação de Lisboa, por acórdão prolatado em 29 de Novembro de 1995, concedeu provimento ao recurso e, em consequência, condenou o arguido - como autor material de um crime, 'então p. e p. pelos artºs 164º, nº 1, e 167º, nº 2, ambos do C.P. 1982, e artº 26º, nº
1-a), da Lei de Imprensa' e, 'actualmente, p. e p. pelos artºs 180º, nº 1, e
183º, nº 2 do C.P. Revisto (1995) e citado artº 26º, nº 1-a) da Lei de Imprensa', e porque este último regime seria o mais favorável em termos de sancionamento - na pena de multa de Esc. 150.000$00 e no pagamento ao assistente da indemnização, por danos não patrimoniais, de Esc. 250.000$00.
Para alcançar uma tal decisão, disse-se, por entre o mais, naquele aresto:
'.............................................
Na verdade, e como resulta do texto, ainda que o arguido o ponha sob a capa do ataque «ideológico» - ... - ou «político» - ... - o que é certo é que tais expressões ultrapassam o «nec plus ultra» que consubstan- cia o limite onde termina a liberdade de expressão e começa o insulto pessoal, a ofensa à integridade moral.
Na verdade, o arguido ultrapassa o mero debate ou ataque político para pessoalizar tal ataque ao apodar o assistente de pessoa «grotesca»,
«boçal», «alarve», «ridícula» e «beata» (falso crente). E tenta «justificar» tais epítetos pelo facto de o assistente ter defendido publicamente ideias políticas que o arguido considera «fascistas», «reaccionárias» e «anti-semitas».
Ora, num Estado de direito democrático, como o consagrado na nossa Constituição, como vimos, a liberdade de expressão é fundamental, tal como o direito de informar e de ser infor- mado, mas exactamente por se tratar do exercí- cio de um direito fundamental em democracia é que não se pode perder de vista a sua necessi- dade, proporção e adequação ao fim que se propõe (artºs 18º e 37º e 38º da Constituição) - o da formação da opinião pública, o assegurar o
«debate de ideias e pensamentos».
Não se trata, assim, de decidir se as ideias de uns devem prevalecer sobre as de outros.
Trata-se, acima de tudo, de assegurar o debate de ideias e pensamentos - esta é a es- sência da liberdade de expressão, que, como é óbvio, não permite que se «calem» certas ideias, porque delas se discorda, ou mesmo porque já foram «derrotadas».
Assim, é evidente que a liberdade de expressão só termina onde - passe a tautologia - deixou de haver expressão de ideia ou pensa- mento para haver ameaça, insulto, invectiva pessoal.
2. No caso concreto:
Em suma, no presente caso, o arguido ultrapassou o meio adequado e razoável de cum- primento da função pública da imprensa - cfr. artº 164º, nº
2-a) do C. Penal (1982).
O arguido ultrapassou - ainda que sob a capa do exercício dos direitos de crítica, de expressão e de opinião - aquele nec plus ultra, aquele limite de «continência» (a que os autores italianos se referem), para afectar desnecessária e inadequadamente a honra e consideração do assistente - ao invectivá-lo de «alarve», «boçal», «ridículo» e «beato».
É que o arguido não se limita a adjectivar as ideias do assistente de
«fascistas», «reaccionárias» e até «anti- -semitas» (o que até se entenderia face aos extractos de textos ali publicados e outros artigos do assistente em que publicamente assume o elogio de Salazar, do «regime anterior» ao '25 de Abril', do nacionalismo de Le Pen, até à injúria ao Primeiro Ministro francês da altura, apelidando-o de «calvo judeu»). O arguido, como se disse, admite - dolo eventual - que tais expressões de «alarve», «grotesco», «boçal», «ridículo» e
«beato», atinjam a imagem pessoal do assisten- te, denegrindo-a, mas, ainda assim, escreveu- -as, aceitando tal resultado, e, contudo, sabe ser tal conduta ilícita.
.............................................'
5. Do acórdão de que uma parte acima se encontra transcrita recorreu o arguido para o Tribunal Constitucional, vindo, na sequência de convite formulado pelo relator, dizer que 'a concreta dimensão normativa do art.º 164.º do Código Penal que se pretende ver apreciada é a que determina a condenação por crime de difamação, existindo mero dolo eventual, em confronto com o exercício conjunto, por parte do arguido, da liberdade de expressão (art.º 37.º n.º 1), de imprensa (art.º 38.º n.º 1 e 2) e o direito de participação política (art.º 48.º n.º 1 e 2)'.
Produziram alegações o recorrente, o assistente e o Ministério Público.
6. O primeiro rematou a sua com as seguintes conclusões:
'I - O entendimento de que o preenchimento do tipo no crime de difamação. previsto no art. 164.º n.º 1 actual 180,º n.º 1, do Código Penal, se basta com o dolo eventual do agente, no caso em que este esteja no exercício da liberdade de expressão e de informação - art.º 37.º n.º 1, de imprensa - art.º 38.º n.ºs 1 e
2) e o direito de participação política - art.º 48 n.ºs 1 e 2, todos da C.R.P, viola o disposto no art.º 18.º n.ºs 2 e 3 da C.R.P. em conjugação com os referidos artigos e o art.º 27.º n.º a. II - Na verdade, o considerar-se que a mera hipótese de uma eventual lesão ao bom nome e reputação, implica a criminalização de uma conduta praticada no exercício da liberdade de expressão e de opinião, no âmbito da participação na vida política, configura uma restrição desproporcionada, desmedida, excessiva violando o princípio da proibição do excesso consagrado no art.º 18.º n.º 2 da C.R.P. III - Situando-se o debate político no âmago da liberdade e de opinião, tal entendimento põe em causa os núcleos essenciais de tais liberdades violando o princípio da salvaguarda do núcleo essencial consagrado no art.º 18.º n.º 3 da C.R.P. IV - Termos em que deverá ser declarada a inconstitucionalidade do referido entendimento da norma em causa'.
O assistente, de seu lado, concluiu a sua alegação do seguinte jeito:
'1ª - A dignidade do assistente foi afectada e tocada pelo recorrente nos escritos produzidos e constantes dos autos.
2ª - Não foi crítica e rigorosa mas afirmações excessivas que o recorrente conscientemente quis, ridicularizando e afectando a honra do assistente.
3ª - Foram expressões subjectivas e objectivamente ofensivas, que atingiram as ideias e a pessoa do assistente.
4ª - A protecção jurídico-penal da honra, reputação e consideração, sobrepõe-se ao direito de informação e crítica da Imprensa, na rota da colisão que se operou com a publicação do editorial da responsabilidade do recorrente.
5ª - A Constituição Política da República para ser cumprida na sua verdadeira essência, assegurará sempre o sagrado direito nuclear que assenta jurisgeneticamente na honra e dignidade humanas.
6ª - Cometeu o recorrente o crime de abuso de liberdade de imprensa, previsto e punido nos artºs. 164º., nº. 1, 167º., nº. 2, do Cód. Penal e 26º., nº. 1, alínea a) da Lei de Imprensa - D.L. 85-C/75.
7ª - Inexiste qualquer inconstitucionalidade na douta decisão recorrida que fez o pleno e correcto entendimento da caso sub-judice e, negando a pretensão do recorrente se fará, como sempre,
JUSTIÇA'.
O Ministério Público, por seu turno, formulou, na sua alegação, na qual propugna por se dever negar provimento ao recurso, a conclusão segundo a qual a 'interpretação acolhida no acórdão recorrido de que o artigo
164º, nº 1, do Código Penal de 1982, admite o dolo eventual como elemento subjectivo suficiente para preenchimento do tipo, quando o agente haja actuado no exercício da liberdade de expressão, de informação e de imprensa, não viola qualquer norma constitucional, designadamente as indicadas pelo recorrente'.
Cumpre decidir.
II
1. Da posição assumida pelo recorrente no requerimento por intermédio do qual acedeu ao convite que lhe foi formulado, há que extrair que o mesmo, verdadeiramente, questiona agora a conformidade constitucional da interpretação conferida pelo aresto sob censura à norma constante do corpo do nº
1 do artº 164º do Código Penal aprovado pelo Decreto-Lei nº 400/82, de 29 de Setembro (ilícito que, segundo a decisão impugnada, após a revisão operada pelo Decreto-Lei nº 48/95, de 15 de Março, se encontra hoje previsto e punido no corpo do nº 1 do artº 180º), interpretação essa segundo a qual tal crime se verificará se tiver agido com dolo meramente eventual o agente da imputação de factos ou da formulação de juízos ofensivos da honra de outra pessoa, ainda que sob a forma de suspeita, imputação ou formulação essas cometidas por meio de imprensa.
Caberá, em primeira linha, sublinhar, por um lado, que, muito embora, antes da decisão ora sob censura, o recorrente não tivesse questionado a compatibilidade com a Lei Fundamental da aludida interpretação da norma do mencionado corpo do nº 1 do artº 164º, não deixa de ser certo que o mesmo, de todo o modo, questionou que, se a imputação de factos ou a efectivação de juízos ofensivos da honra de outrem fossem cometidos por meio de imprensa, visando exprimir um direito de opinião, informação e de participação na vida pública, então não poderia a conduta do agente ser passível de criminalização.
Sendo assim, haverá que concluir que, agora, dados os termos como coloca a questão no requerimento a que já se fez referência, o recorrente, bem vistas as coisas, o que faz é restringir o âmbito da questão de constitucionalidade anteriormente suscitada, ou seja, restringir a alegada desconformidade com o Diploma Básico a uma interpretação do normativo em causa que conduza à criminalização da conduta do agente quando este aja com dolo meramente eventual, ou seja, quando, embora admitindo de que as imputações ou formulações de juízos que levou a cabo sejam passíveis de ofender a honra de outra pessoa, se conformou com o resultado consistente numa ofensa efectivamente cometida.
2. Por outro lado, atentos os poderes cognitivos deste Tribunal, não poderá o mesmo deixar de dar por assentes os juízos que o Tribunal a quo efectuou no que concerne a ter entendido que determinadas expressões usadas pelo recorrente não constituíam somente expressão de ideias, de pensamentos, de debate ou de ataque político, mas sim constituíam ameaças, insultos e invectivas pessoais que atingiram a imagem pessoal do assistente, denegrindo-as, o que era admitido e aceite pelo recorrente.
A actividade que a este Tribunal, in casu, é pedida, unicamente se poderá circunscrever a aquilatar se é ou não passível de um juízo de desconformidade com a Constituição a interpretação normativa seguida na decisão impugnada e que acima se veio de expôr.
É isso que a seguir se fará.
III
1. As expressões «liberdade de imprensa» e «liberdade de expressão» têm, como sabido é, longínquas raízes históricas (cfr., sobre o tema, Leite Pinto, Liberdade de imprensa e vida privada, na Revista da Ordem dos Advogados, ano 54, Abril de 1994, 27 e segs.), surpreendendo-se na Constituição dos Estados Unidos da América o primeiro texto legal a referir-se claramente a essas «liberdades» [cfr. 1º Aditamento na Declaração de Direitos e Garantias
(Bill of Rights) para revisão da Constituição dos E.U.A., propostos pelo Congresso e Ratificados, nos termos do artº 5º daquela Constituição, pelos diversos Estados], sendo que, ainda no ano de 1789, é formalmente consagrada na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, emergente da Revolução francesa
(e que ainda hoje constitui a base dogmática da Constituição francesa), a 'livre comunicação dos pensamentos e das opiniões', conquanto aqui, desde logo, se previsse a responsabilização do cidadão pelos abusos da liberdade de falar, escrever e imprimir livremente.
Sabido é, também, que aquela Declaração constitui, no que concerne às liberdades de que curamos, a matriz ordenadora de diversos sistemas jurídicos, designadamente europeus (cfr., verbi gratia, o artº 5º da GG, o artº 21º da Constituição italiana, o artº 20º da Constituição Espanhola, e os artigos 37º e 38º da Constituição da República Portuguesa) e, bem assim, de documentos de direito internacional referentes aos denominados «direitos da pessoa humana» (cfr. a Declaração Universal dos Direitos do Homem - artº 19º -, a Convenção Europeia dos Direitos do Homem - artº 10º - e o Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos - artº 19º).
Porém, os textos que deram corpo à consagração formal daquelas «liberdades», não deixam, porventura na esteira da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de prever, se bem que em termos diferenciados, reservas às mesmas, o que o mesmo é dizer, não deixam de as consignar sob reserva de limites legalmente previstos e tendentes à repressão dos seus abusos, não se podendo passar em claro que nos dois primeiros textos a que já se fez alusão se perspectivam diferentes formas de encarar o binómio liberdade de expressão e de imprensa e os sancionamento dos respectivos abusos. Na verdade, não acarreta dificuldades de maior uma visualização segundo a qual na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão apresenta maior nitidez a consagração de limites pré-determinados - os limites legalmente estatuídos destinados à repressão dos abusos - à consignação da liberdade em causa, enquanto que no 1º Aditamento à Constituição dos E.U.A. o enfoque de maior grandeza é efectuado na liberdade em si, cuja existência - essa pré-determinada - vai impedir o próprio Congresso de legislar no sentido de a restringir.
De onde, e para além de outras considerações que sempre poderiam ser aduzidas, não serem de estranhar ocorrências tais como as da existência de cláusulas de limitação decorrentes das leis gerais, das normas legais de protecção à juventude e das normas legais de protecção do direito à honra a que se refere o nº 2 do artº 5º da GG, as referências aos bons costumes mencionados no artº 21º da Constituição Italiana, ao respeito dos demais direitos reconhecidos no título onde se insere o artº 20º da Constituição espanhola, designadamente o direito à honra, à intimidade, à imagem e à protecção da juventude e da infância, e à previsão da existência de infracções ao exercício dos direitos de liberdade de expressão e de informação no nº 3 do artigo 37º da nossa Lei Fundamental.
De igual modo, no nº 2 do artº 10º da C.E.D.H. se prevê que, justamente porque o exercício do direito à liberdade de expressão 'implica deveres e responsabilidades', ele pode ser submetido a 'sanções, previstas pela lei, que constituam providências necessárias, numa sociedade democrática, para a segurança nacional, a integridade territorial ou a segurança pública, a defesa da ordem e a prevenção do crime, a protecção da saúde e da moral, a protecção da honra ou dos direitos de outrem', dispondo-se na alínea a) do nº 3 do artº 19º do P.I.D.C.P. que o direito à liberdade de expressão (cujo conteúdo se poderá extrair do seu nº 1) pode ser submetido a certas restrições (que, de todo o modo, devem ser expressamente fixadas na lei) desde que se tornem necessárias
'ao respeito dos direitos ou da reputação de outrem'.
2. Na vigente Constituição proclama-se (artigo 37º, nº
1), sob a epígrafe «Liberdade de expressão e de informação» o direito, que a todos é conferido, 'de exprimir e divulgar livremente o seu pensamento pela palavra, pela imagem ou por qualquer outro meio, bem como o direito de informar, de se informar e de ser informado, sem impedimentos nem discriminações'.
Trata-se, no dizer de Gomes Canotilho e Vital Moreira
(Constituição da República Portuguesa Anotada, 3ª edição, 225), e na vertente do
«direito de expressão», de um direito que, enquanto direito negativo ou de defesa perante o poder público, implica 'o direito de não ser impedido de exprimir-se', inculcando ainda, na sua dimensão positiva, um direito 'de acesso aos meios de expressão' (cfr. afloramentos desta dimensão, segundo os citados autores, no nº 4 do artigo 37º e nos artigos 40º e 41º, nº 4); na vertente de
«direito de informação», o direito de informar 'consiste, desde logo, na liberdade de transmitir ou comunicar informações a outrem, de as difundir sem impedimentos', direito que, no seu actuar positivo, implicará o 'direito a meios para informar' (cfr., também sobre o ponto, Leite Pinto, ob. cit., 54).
Se do nº 2 do artigo 37º se retira inequivocamente que a Constituição não permite que o exercício dos direitos de livre expressão e divulgação do seu pensamento pela palavra, pela imagem, ou por qualquer outro meio, seja, porque forma for, impedido ou limitado por qualquer tipo de censura, não se deverá, simplistamente, seguir um raciocínio que porventura aponte
(ponderando que no seu nº 1 também se faz alusão a que tais direitos se hão-de efectivar sem impedimentos ou discriminações) para que não possa haver limites a tal exercício.
Na verdade, facilmente se infere do que vem disposto no nº 3 daquele artigo que se admite que tais direitos não podem ser perspectivados como direitos cujo respectivo exercício não apresente limites, pois que, se assim fosse, não seria possível a previsão de infracções cometidas em tal exercício, infracções essas que até, segundo o comando constante daquela disposição, estão submetidas aos princípios gerais de direito criminal.
O que se não poderá, no caso de o falado exercício não exceder os limites pressupostos pela própria Lei Fundamental, é colocar obstáculos a ele (G. Canotilho e V. Moreira, ob., cit., 226).
2.1. Não se deverá, no presente aresto, ainda que perfunctoriamente, deixar de fazer referência a que, como tem sido reconhecido, atendendo às diversas vertentes do «direito de informação», possível é descortinar, distinguindo, a «liberdade de expressão» - 'direito matricial em relação quer à liberdade de informação, quer à liberdade de imprensa, na medida em que todo o regime constitucional do primeiro se projecta nos outros dois', nas palavras de Leite Pinto (idem, 54) - e o «direito de informação», tendo este
último por objecto o bem jurídico 'informação' (cfr., sobre esta diferenciação, Artur Rodrigues da Costa in A liberdade de imprensa e as limitações decorrentes da sua função, na Revista do Ministério Público, ano 10, 37, 15 e segs., o qual distingue o 'direito de crónica', afim do 'direito de informação', do 'direito de opinião e de crítica', como expressões desdobradas da 'liberdade de expressão').
A liberdade de imprensa, por seu turno expressamente consagrada no Diploma Básico, tem sido, de há muito, considerada como uma forma privilegiada, quer da liberdade de expressão, quer do direito de informação, este, por entre o mais, na dimensão de garantia constitucional de livremente formar a opinião pública (G. Canotilho e V. Moreira - ob. cit., 230, chamam-lhe um 'modo de ser qualificado' daqueles direito e liberdade; cfr., ainda, sobre a questão de saber se a liberdade de imprensa não haverá, a mais do que ser incluída nos direitos ou liberdades, nos direitos- -limite ou nos direitos de defesa, de ser tratada como um garantia institucional, Solobal Echevarria, Aspectos constitucionales de la libertad de expresión y el derecho a la información, na Revista Española de derecho Constitucional, ano 8, 23, 1988; cfr., também, Charles Debbasch em Il Conseil Constitutionnel - la legge 23 ottobre 1984 e la libertà di stampa, tradução de Michela Manetti na Documentazione e Cronaca Straniera, em Giurispridenza Constituzionali, Ano XXX,
1811).
Claro que, nestes contornos, desde logo se apresenta recheada de dificuldades a questão ligada à delineação do que seja a informação
(consubstanciadora do 'direito de crónica' onde avultará ou, se se quiser, haverá maior vinculação à verdade, à objectividade à fidelidade com a factologia e à neutralidade, sem embargo de aí se poderem incluir juízos valorativos - cfr. Nuno de Sousa, Liberdade de Imprensa, 137) e a opinião. Mas, se a liberdade de imprensa, como se viu, veicula qualificadamente (e utiliza-se este advérbio de modo já que se trata de uma publicitação por intermédio de um meio de comunicação de massa) a liberdade de expressão e o direito de informação (este em qualquer das suas vertentes e, assim, na de livremente formar a opinião pública, o que acarreta a emissão de juízos valorativos, críticas e opiniões pessoais), então poder-se-á, sem que a tal respeito se haja de admitir uma crítica inultrapassável, aceitar que o exercício da liberdade de imprensa - indo para além de um mero relato , porventura baseado 'numa crença fundada na verdade', (para se usar a expressão de Figueiredo Dias, in Direito de Informação e Tutela da Honra e Direito de Informação no Direito Penal da Imprensa Português, Revista de Legislação e Jurisprudência, ano 115º, números 3697, 3698 e 3699) -, venha a «tocar» ou «colidir» com outros direitos, mesmo os constitucionalmente consagrados e, de entre estes e para o que agora releva, o direito à honra de outrem a que a Lei Fundamental (artigo 26º, nº 1) designa de
«direito ao bom nome e reputação».
3. Não se entrando, porque porventura isso poderia ser entendido como despropositado, na tentativa de uma dilucidação do exacto conteúdo do direito à honra (vide, contudo, G.Canotilho e V. Moreira, ob. cit.,
180 e 181), não se vá sem, ao menos, sublinhar que o mesmo visa a protecção da pessoa em si mesma, é garantia, adentro de um direito geral de personalidade, do desenvolvimento desta (cfr. Diogo Leite de Campos, Lições de Direitos da Personalidade, 2ª edição, 1992, 11) e, como se viu, tem consagração constitucional.
Tem sido objecto de aprofundadas reflexões doutrinais a questão de saber como resolver situações em que, prima facie, se desenha um conflito (independentemente de se saber neste mesmo momento se se trata ou não de um conflito real ou aparente) entre vários direitos constitucionais ou entre direitos e outros bens constitucionais (para maiores desenvolvimentos, cfr. José Carlos Vieira de Andrade, Os direitos fundamentais na Constituição portuguesa de
1976, 220 e segs., e G. Canotilho, Direito Constitucional, 6ª edição, 641 e segs.), o que, obviamente, nos colocará em sede do denominado «direito constitucional de conflitos».
Aceitando, como se aceita, que a liberdade de imprensa pode, constitucionalmente, admitir limites (vide, a propósito, o que acima se deixou explanado e ainda o Acórdão nº 175 da Comissão Constitucional publicado no Boletim do Ministério da Justiça, nº 294, 157 e segs.), o mesmo sucedendo em relação ao direito ao bom nome e reputação, haver-se-á de iniciar o tratamento do ponto partindo, desde já, de uma concepção segundo a qual os limites à liberdade de imprensa são limites estabelecidos por lei mediante autorização constitucional (cfr. Leite Pinto, ob. cit.) e, desta arte, pondo de remissa uma outra concepção que assente numa hierarquização de direitos (os ora em conflito).
E isto sem que se deixe de anotar, de um lado, que, para os tribunais da «ordem judiciária comum», haveriam de relevar as circunstâncias do caso [em que avulta a situação de alguém - o assistente - que era tido (com maior ou menor veracidade, não interessa agora) como candidato partidário a um lugar de natureza política]; de outro, que se não deixa de sublinhar que se não ignoram posições que possam perfilhar o entendimento de que aqui se desenharia uma situação possivelmente tradutora de um mero conflito aparente (cfr. G. Canotilho, Direito Constitucional de Conflitos e Protecção de Direitos Fundamentais, 39 e segs. e exemplos aí dados); outras, que enfrentariam a questão de saber se os apelidados «limites imanentes» dos direitos fundamentais têm génese originária ou primitiva neles mesmos ou se só no próprio estabelecimento e consentimento constitucional (directamente ou por remissão constitucional para a lei ordinária); e, por fim, outras que defendem a inexistência de limites à liberdade de imprensa (cfr. Anthea Jeffrey, Free Speech and Press: An Absolute Right?, Humans Rights Quarterly, 8º vol., 1986,
225 e segs.) e dos que defendem o princípio de que nenhum direito é absoluto nem ilimitado, não constituindo a liberdade de expressão excepção a esse princípio
(cfr. Ruiz Vadillo, Los derechos fundamentales a la libertad de expresión, a informar e ser informado y su incidencia en el campo juridico-penal, Revista de la Facultad de derecho de la Universidad Complutense, 11, 1986, 602 e segs.).
3.1. Ora, dentro deste posicionamento que, de alguma forma, se afasta do do recorrente - ao menos com relação à posição assumida aquando do recurso decidido pelo acórdão impugnado -, não se irá sem dizer que alguma doutrina (Leite Pinto, ob. cit.) perfilha o entendimento de que, na hipótese de conflito entre os dois direitos, após se não encontrar uma optimização equilibrada e equalizante entre ambos, o que pressupõe a concreta ponderação de interesses em jogo, e após se concluir pela impossibilidade de uma concordância prática - critério que implica necessariamente o respeito pelo princípio da proporcionalidade em termos de se não dever diminuir a extensão e alcance do conteúdo daquele direito que eventualmente, nessa ponderação, venha a ser prevalecido -, é possível, em determinadas situações, concluir-se que a esfera de protecção de um desses direitos esteja, à partida, diminuída, como será o caso do direito à honra de figuras públicas, designadamente os titulares de cargos políticos, direito cuja amplitude deve ser tida por menos extensa em confronto com os demais cidadãos.
Figueiredo Dias (ob. cit.) assume que, gerando-se conflito entre o direito à honra e o direito de informação, tendo em conta o nº
3 do artigo 37º do Diploma Básico, que, afinal, é uma constituição centralmente preocupada com a defesa da dignidade humana e que invoca o direito penal (na actual versão) para esses casos, se é obrigado à imposição de limites àquele segundo direito, razão pela qual se poderá desenhar o cometimento de crimes de injúria ou de difamação; mas, para que, pela força da tutela jurídico-penal, não fique prejudicada de modo irremediável o cerne do liberdade de expressão e de informação e da própria liberdade de imprensa, cujos núcleos essenciais se devem salvaguardar, mister será encetar determinadas vias; não poderão elas, todavia, residir num aumento de exigência de 'no que toca à afirmação do elemento subjectivo' (v.g., exigir nos crimes contra a honra cometidos através da imprensa o dolo específico) nem numa outra regulamentação da prova da verdade dos factos narrados na imprensa.
Perante estes parâmetros, o citado Autor aponta para que o caminho de resolução desta questão há-de encontrar-se no próprio exercício do direito fundamental de informação, ou seja, o 'exercício do direito jurídico-constitucional de informação há-de valer como aquele exercício de um direito que o Código Penal considera que justifica o facto' [cfr. artº 31º, nº
2, alínea b) do dito Código]; por isso, deverá exigir-se que a imputação, consubstanciando a ofensa à honra, se revele como meio adequado e razoável e o menor danoso possível relativamente ao bom nome e consideração do ofendido, à função pública da imprensa (formar democrática e pluralistamente a opinião pública em matéria social, política, económica e social); que se prove 'o animus ou a intenção (ao menos imamente) de cumprir' aquela função pública ou, no mínimo, 'que não esteja excluído ter sido um tal cumprimento o motivo da sua actuação'; e que essa imputação corresponda à verdade (ou que o agente razoável e fundadamente assim tenha acreditado, o que implica o cumprimento do dever de esclarecimento), com o que se desenhará um 'elemento subjectivo da causa justificativa, que deverá considerar-se inexistente, pelo menos, sempre que se verifique ter presidido à conduta uma intenção de difamar ou de injuriar - a tanto se reduzindo o conteúdo útil que hoje poderá ainda atribuir-se à velha...e ultrapassada forma do «dolo específico» nos crimes contra a honra'; por fim, no que tange à denominada «prova da verdade», conclui o Autor cuja posição se tem vindo a expôr que a «verdade» é 'apenas um elemento, a par de outros, determinante da forma do exercício do direito de informação'.
Rodrigues da Costa (ob. cit.), de certa forma com influência de Figueiredo Dias (o que parece ser confessado - cfr. nota a págs.
14), no balanceamento que se posta no conflito entre a liberdade de imprensa e o direito à honra, assevera que se a imprensa não deve, na sua missão informativa e formativa, ter os direitos ilimitados que muitas vezes reclama, também a repressão da tutela da honra se não deve estender de molde a poder ficar aniquilada a mencionada liberdade. E, em consequência, aceitando situarem-se no mesmo plano aqueles direitos, defende que o direito à honra e consideração só possa ser sacrificado se, ofendido que seja pelo exercício da liberdade de imprensa, o acto ofensivo tiver sido justificado, isto é, se tiver decorrido de uma causa justificativa fundada no quadro da função social e cultural assinalada
à imprensa, respeitados que sejam os limites da necessidade, adequação e da proporcionalidade. Não é, para o Autor, desta arte, aceitável que, mesmo em matéria de crítica política, a pretexto de se discutir uma personalidade, se a denigra desnecessariamente (cfr. também, em sentido de certo jeito idêntico, Ricardo Martin Morales, El derecho fundamental al honor en la activida politica, Granada, 1994, pontos 6 a 11, e Michele Polvani, La diffamaziona a mezzo stampa, Pádua. 19954, na parte referente a conteúdos e limites dos direitos de crónica e de crítica).
Também este Tribunal no seu Acórdão nº 81/84 (publicado na 2ª Série do Diário da República de 31 de Janeiro de 1985 e no volume 4º dos Acórdãos do Tribunal Constitucional, 225 e segs.), embora então estivesse em causa o binómio liberdade de expressão- -direito à honra e não o binómio liberdade de imprensa-direito à honra teve ocasião de discretar:-
'..................................................
9 - A liberdade de expressão - como, de resto, os demais direitos fundamentais - não é um direito absoluto, nem ilimitado. Desde logo, a protecção constitucional de um tal direito não abrange todas as situações, formas ou modos pensáveis do seu exercício. Tem, antes, limites imanentes. O seu domínio de protecção pára, ali onde ele possa pôr em causa o conteúdo essencial de outro direito ou atingir intoleravelmente a moral social ou os valores e princípios fundamentais da ordem consti- tucional (v. neste sentido: J.C. Vieira de Andrade, Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976, Coimbra,
1983, pp. 213 e segs.) Depois, movendo-se num contexto social e tendo, por isso, que conviver com os direitos de outros titulares, há-de ele sofrer as limitações impostas pela necessidade de realização destes. E, então, em caso de colisão ou conflito com outros direitos - desi- gnadamente com aqueles que se acham também directamente vinculados à dignidade da pessoa humana [v.g. o direito à integridade moral (artigo 25.º, n.º 1) e o direito ao bom nome e reputação e à reserva da intimidade da vida privada e familiar (artigo 26.º, n.º 1)] -, haverá que limitar-se em termos de deixar que esses outros direitos encontrem também formas de realização.
Dizer isto é reconhecer que, sendo proibida toda a forma de censura
(artigo 37.º, n.º 2), é, no entanto, lícito reprimir os abusos da liberdade de expressão..........................................
...................................................
10 - O artigo 37.º aponta - segundo cremos - no sentido de que se não devem permitir limitações à liberdade de expressão para além das que forem necessárias à convivência com outros direitos, nem impor sanções que não sejam requeridas pela necessidade de proteger os bens jurídicos que, em geral, se acham a coberto da tutela penal. Mas, não impede que o legislador organize a tutela desses bens jurídicos lançando mão de sanções de outra natureza (civis, disciplinares ...).
...................................................
..................................................'
Note-se que, com a transcrição que se deixa efectuada, se não significa que no presente acórdão se esteja a tomar posição, como acima se deixou sublinhado, sobre a questão de saber se os «limites imanentes» são algo de geneticamente ligado aos direitos fundamentais em si mesmo considerados
(o que, eventualmente, poderia conduzir às ungeschriebene Grunderechtsbegrengzuhngen), se tais «limites» hão-de, necessariamente, ter fundamento na Constituição ou na lei ordinária para que ela remeta ou se, por fim, os direitos fundamentais não terão de ser perspectivados como direitos de
«expansão ilimitada» ao menos, no que à liberdade de expressão concerne, vista esta como um 'fundamento funcional' da ordem democrática, se não há-de ela, como refere Alexy (Theorie des Grundrechte, 1985, 493), considerar como algo de excludente de alguns conteúdos que, do ponto de vista jurídico, haveriam de tornar-se, de modo fundamental, impossíveis (cfr., de todo modo, sobre a
«liberdade de expressão» e a admissão de limites aos mesmos, os Acórdãos deste tribunal números 74/84, nos Acórdãos do Tribunal Constitucional, 4º vol., 49 e segs, maxime, 57, e no Diário da República, 1ª Série, de 11 de Setembro de 1984,
99/87, in Acórdãos do Tribunal Constitucional, 12º vol., 499 e segs e Diário da República, 1ª Série, de 21 de Janeiro de 1989 e 636/95, no Diário da República,
2ª Série, de 27 de Dezembro de 1995).
3.2. Tem-se, desta arte, por adquirida a possibilidade de admissão de limites à «liberdade de expressão» e, obviamente, à sua forma de veiculação 'qualificada' - que é a «liberdade de imprensa» -, sendo que as razões que a tanto conduzem são, mutatis mutandis, transponíveis se o enfoque fôr projectado para o «direito de participação na vida política» exercitado através daquelas «liberdades».
Não se olvida que, como porventura se deixou já aflorado, nas situações em que estão em causa figuras públicas e candidatos ou titulares de cargos políticos, é possível que, mesmo antes de um raciocínio que conduza à tentativa de harmonização dos direitos 'em conflito' (respeitados que sejam o princípio da proporcionalidade e a não diminuição do conteúdo e alcance essenciais do direito que possa vir a prevalecer), se tenha de concluir que um desses direitos - in casu o denominado direito à honra - tenha uma esfera de protecção algo diminuída à partida. E, assim, aquilo que, não estando em causa essas situações, levaria a que, na optimização equilibrada dos dois direitos, se considerasse dever determinada palavra, expressão, imagem ou juízo sofrerem uma censura jurídico-penal, já não sucederia de modo exactamente igual naqueloutras situações como a descrita.
Para estas últimas, o juízo de censura haveria de balizar-se em malhas «mais apertadas», só devendo efectivar-se nos casos em que, na realidade, não o sendo, estivesse já, com um tal posicionamento, a afastar-se o conteúdo essencial do direito ao bom nome e reputação.
Simplesmente, no vertente caso, terá este Tribunal de aceitar o juízo valorativo-fáctico levado a cabo pelo acórdão recorrido que, inquestionavelmente, concluiu que as expressões utilizadas pelo recorrente traduziram um insulto pessoal, excedendo o direito de informar e de formar a opinião pública, o debate político ou a opinião sobre as ideias do assistente, ora recorrido, vindo a lesar a sua imagem pessoal, denegrindo-a, e a constituir uma ofensa à sua integridade moral.
Aqui chegados, é tempo de enfrentar uma outra questão e que é, afinal, a que é colocada pelo recorrente à apreciação do Tribunal.
IV
1. Consiste tal questão, como é bom de ver, aceite que está a existência de limites às liberdades de expressão, de informação e de imprensa e ao direito de participação na vida política, e com os contornos, também assentes, da parte final do ponto 3.2. de III, em saber se, relativamente ao autor de um escrito no qual foram usadas expressões susceptíveis de ofender a honra e consideração de outrem, escrito esse feito no uso da liberdade de imprensa, é desproporcionada a feitura de um juízo de censura jurídico-penal, nos casos em que esse agente, embora admitindo de que tais expressões fossem passíveis daquela ofensa, se desinteressou de um resultado consistente numa diminuição objectiva do sentimento de dignidade pessoal do ofendido e na diminuição da consideração social, fama, bom nome e reputação que aquele merecia por parte da generalidade dos membros da comunidade.
1.1. Tem sido defendido na doutrina que o dolo, dito eventual, constitui uma forma qualificada de culpa, o que pressupõe, bem vistas as coisas, o estabelecimento de um nexo subjectivo entre o agente e o facto, tendo em conta que, como refere Figueiredo Dias (Pressupostos da punição e causas que excluem a ilicitude e a culpa, in Jornadas de Direito Criminal, I, C.E.J., 67), presente o 'valor jurídico-constitucional da garantia da dignidade do homem, não há alternativa à necessidade de mediação da pena pela culpa' (em idêntico sentido, cit. autor, Direito Penal II, Parte Geral, As Consequências Jurídicas do Crime, 314, José de Sousa e Brito, A Lei Penal e a Constituição, in Estudos Sobre a Constituição, 2º vol., 198 e segs., e Faria e Costa, Aspectos fundamentais da problemática da responsabilidade objectiva no direito penal português, Boletim da Faculdade de Direito de Coimbra, Separata, Estudos em Homenagem do Prof. Doutor José Joaquim Teixeira Ribeiro, 1981).
O direito penal, como já foi afirmado (Jesheck, Lehrbuch des Strafrechts Allgemeiner Teil, 4ª ed., 1988, 3), é algo que não é somente direccionado para a restrição da liberdade, como também ele próprio cria a liberdade; e cria-a justamente na medida em que, reprovando condutas ofensivas de bens jurídicos das maiores relevância e dignidade, vai, enfim, promover a liberdade da pessoa humana.
Ora, dada essa sua função protectora daqueles bens jurídicos (o que, no fundo, funciona como legitimadora do sistema jurídico-criminal que repousa num estado de direito democrático), não pode deixar de ser reconhecida ao legislador uma certa liberdade (e fala-se em
«certa» no ponto em que haverão sempre de ser respeitados os princípios da culpa
- que entre nós deflui do artigo 2º da Lei Fundamental - e da proporcionalidade) para o estabelecimento das diversas formas de consagração do elemento subjectivo das infracções. Questão é, por entre o mais, que haja a suficiente ressonância
ética de condutas que, iluminadas pelo respectivo elemento subjectivo, consoante as suas diversas modalidades, sejam passíveis de punição.
Se estes parâmetros não forem ultrapassados, o que o mesmo é dizer, se se não estiver perante soluções legislativas que venham (e quanto ao particular de que ora curamos) a criminalizar condutas que, no que respeita ao elemento intencional que a elas presidiram, se não apresentem como algo de excessivo, desproporcionado ou manifesta e claramente inadequado, não poderá um órgão fiscalizador da constitucionalidade censurar tais soluções, sob pena de, como se assinalou no Acórdão deste Tribunal nº 574/95 (ainda inédito), se estar a sindicar 'a bondade da própria solução legislativa, invadindo indevidamente a esfera do legislador que, aí, há-de gozar de uma razoável liberdade de conformação'.
Pois bem:
2. Incluindo-se o direito ao bom nome e reputação nos designados «direitos de personalidade», há que reconhecer que com o advento da Constituição de 1976 esses direitos aí vieram a ter uma profunda repercussão
(cfr., para maiores desenvolvimentos, Rabindranath Capelo de Sousa, A Constituição e os Direitos de Personalidade, em Estudos Sobre a Constituição, vol. 2, 93 e segs.).
Ora, a defesa e a promoção do direito à honra não se compadeceria se uma conduta, levada a efeito por alguém e que, objectivamente, viesse a diminuir o sentimento de dignidade pessoal do visado e a diminuir a consideração social, fama, bom nome e reputação que ele merece por parte da generalidade dos membros da comunidade, ficasse impune nos casos em que, embora o agente soubesse da potencialidade daquelas diminuições, se conformasse com ocorrência concreta destas.
Neste ponto toma o Tribunal como esteio , e como decorre do que já veio de se expor, um conceito de dolo eventual do qual se não pode, de todo em todo e para o que ora releva, deixar de exigir a concreta admissão consciente, por banda do agente, da possibilidade da ofensa que a sua actuação irá desencadear, actuação essa que, não obstante uma tal previsão, ele aceita levar a efeito. Vale isto por dizer que, por isso, se aceita um conceito de dolo eventual tal como aquele que decorre do nº 3 do artº 14º do Código Penal,
(versão de 1982) ao dizer que, [q]uando a realização de um facto for representada como uma consequência possível da conduta, haverá dolo se o agente actuar conformando-se com aquela realização.
Daí que se não possa considerar como excessiva, desproporcionada e clara ou manifestamente inadequada uma solução legislativa
(que resulta directamente da lei ou de uma sua interpretação) segunda a qual basta o dolo eventual para o preenchimento do elemento subjectivo dos ilícitos de injúrias e difamação (não há, aqui, que colocar questões tais como aquelas que se podem pôr a propósito de se saber se é ou não inviável, em certos tipos de crime - v.g. os crimes de perigo - a figura do dolo eventual - cfr. Rui Carlos Pereira, O Dolo de Perigo, 1995, 40 e segs.).
2.1. Por outro lado, não lobriga o Tribunal que, decorrendo do próprio texto constitucional (o já referido nº 3 do artigo 37º do Diploma Básico) os limites a que se há-de subordinar a liberdade de expressão e de informação sem impedimentos nem discriminações - remetendo-se para os princípios gerais de direito criminal - as infracções por este estatuídas e de acordo com aqueles princípios não possam ser aplicáveis se o seu cometimento resultar do exercício daquela liberdade.
Se assim não fosse, poderia, em muitos casos, ficar inexoravelmente desprovido de conteúdo o núcleo essencial do direito ao bom nome e reputação.
Isso não significa, todavia, que haja um absolutamente idêntico tratamento das infracções cometidas contra a honra nos casos em que elas promanam do exercício da liberdade de expressão - maxime na sua forma
'qualificada': a liberdade de imprensa - e fora deles.
É que, como resulta das posições assumidas pela doutrina
- algumas das quais se encontram acima recenseadas -, a justificação dos factos objectivamente ofensivos será seguramente naqueles casos mais ampla, atenta a função social e formativa da imprensa, assumindo também, e por isso, um âmbito mais alargado a conceptualização de um exercício do direito, questão que é diferente daquela conexionada com as exigências sobre o elemento intencional do agente que, como vimos, para o que ora releva, se não apresentam, no ponto, desproporcionadas, inadequadas ou excessivas.
Em suma se conclui que a punição criminal da imputação a outrem de factos ou a formulação de juízos ofensivos da sua honra e consideração, actuando o agente com dolo eventual e a coberto do exercício da liberdade de informação de imprensa e de participação na vida política, não é algo ofensivo das normas e princípios constitucionais, designadamente do números
2 e 3 do artigo 18º da Lei Fundamental.
IV
Em face do exposto, nega-se provimento ao recurso, confirmando-se, assim, a decisão recorrida no que tange à questão de constitucionalidade.
Lisboa, 5 de Fevereiro de 1997 Bravo Serra José de Sousa e Brito Luis Nunes de Almeida Messias Bento Fernando Alves Correia Guilherme da Fonseca José Manuel Cardoso da Costa