Imprimir acórdão
Proc. nº 230/96
1ª Secção Rel.: Consª Maria Fernanda Palma
Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional
I Relatório
1. A. foi condenado, por acórdão de 12 de Dezembro de 1995 do
2º Tribunal Militar Territorial do Porto, pela autoria material, em concurso verdadeiro de infracções, de um crime de peculato e de um crime de falsificação de documentos, previstos e punidos pelos artigos 193º, nº 1, alínea c), e 186º, nº 1, alínea a), respectivamente, do Código de Justiça Militar, sendo-lhe aplicada, em cúmulo, a pena única de 3 anos e 8 meses de prisão.
2. A. interpôs recurso do acórdão de 12 de Dezembro de 1995 para o Supremo Tribunal Militar, sustentando a inconstitucionalidade das referidas normas incriminadoras, por violação dos princípios da igualdade e da proporcionalidade, consagrados nos artigos 13º e 18º da Constituição.
O Supremo Tribunal Militar, por acórdão de 15 de Fevereiro de
1996, negou provimento ao recurso, tendo, em consequência, confirmado o acórdão recorrido.
3. É deste acórdão do Supremo Tribunal Militar (de 15 de Fevereiro de 1996) que vem interposto o presente recurso de constitucionalidade, ao abrigo do disposto nos artigos 280º, nº 1, alínea b), da Constituição e 70º, nº 1, alínea b), da Lei do Tribunal Constitucional, para apreciação da conformidade à Constituição das normas contidas nos artigos 186º, nº 1, alínea a) e 193º, nº 1, alínea c), do Código de Justiça Militar.
O recorrente apresentou alegações, que concluiu do seguinte modo:
'I - A decisão recorrida considerou que o recorrente cometeu os crimes de peculato e de falsificação previstos nos artigos 193º, nº 1, alínea c) e 186º, nº 1, alínea a), do Código de Justiça Militar.
II - Estes dois artigos prevêem penas mais gravosas do que as que estão previstas no Código Penal para o mesmo tipo de crimes.
III - Restringindo os direitos do funcionário militar de forma injustificada.
IV - Não existindo motivos especiais para tal diferenciação.
V - A decisão recorrida, violou, por isso, os princípios de igualdade e de proporcionalidade previstos nos artigos 13º e 18º da Constituição da República Portuguesa.
VI - Pelo que as penas aplicáveis em abstracto não podem ser diferentes das previstas no Código Penal.
VII - Devendo ser aplicável os preceitos respectivos do Código Penal, ou seja, os artigos 375º e 256º nº 4 C.P.'
Por seu turno, o Ministério Público, considerando não se verificar a alegada inconstitucionalidade da norma contida no artigo 186º, nº 1, alínea a), do Código de Justiça Militar, concluiu as suas contra-alegações nos seguintes termos:
'1º - A norma constante do artigo 193º, nº 1, alínea c) do Código de Justiça Militar, enquanto fixa o limite mínimo da pena cominada para o crime de peculato em 8 anos de prisão, é inconstitucional, por violação dos princípios da igualdade e da proporcionalidade.
2º - Em consequência - e atento o princípio da legalidade das penas - deverão considerar-se aplicáveis os limites estabelecidos no direito penal comum para o tipo correspondente de crime, no artigo 375º, nº 1 do Código Penal.
3º - Termos em que deverá proceder em parte o presente recurso, determinando-se a reforma da decisão recorrida, na parte afectada pelo julgamento de inconstitucionalidade.'
4. Corridos os vistos, cumpre decidir.
II Fundamentos
A A conformidade à Constituição da norma contida no artigo 186º, nº 1, alínea a), do Código de Justiça Militar
5. O artigo 186º, nº 1, alínea a), do Código de Justiça Militar prevê a penalidade de dois a oito anos de prisão para o crime de falsificação. O recorrente sustenta que tal norma viola os princípios da igualdade e da proporcionalidade, ínsitos nos artigos 13º e 18º da Constituição, respectivamente, na medida em que o Código Penal prevê, para a mesma factualidade típica, a penalidade de 1 a 5 anos de prisão.
Como se afirmou no Acórdão do Tribunal Constitucional nº
958/96 (inédito), uma alteração da medida da pena fundamentada na afectação de bens jurídicos acessoriamente protegidos não afrontará o princípio da igualdade. Na verdade, este princípio, consagrado no artigo 13º da Constituição, impõe a proibição de discriminações arbitrárias, não devidamente justificadas nas especialidades fácticas de imediato significado valorativo, compatível com o quadro de valores constitucionais (cf. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 3ª ed., 1993, p. 122).
Pode assim afirmar-se que uma diferenciação entre as penalidades de um crime previsto simultaneamente no Código
Penal e no Código de Justiça Militar se encontra legitimada, na medida em que tal distinção assentará, não apenas no desvalor do dano ou perigo de dano para os interesses fundamentais da comunidade, comummente tutelados por ambas as incriminações, mas também na violação de algum dever militar, ofensa à segurança ou à disciplina das forças armadas ou aos interesses militares da defesa nacional, unicamente valoradas pela incriminação militar (cf. Acórdãos nºs
347/86 - Acórdãos do Tribunal Constitucional, vol. 8º, 1986, p. 535 e ss. - e
370/94 - D.R., II Série, de 7 de Setembro de 1994).
6. Porém, a questão de constitucionalidade, tal como o recorrente a suscita, não respeita unicamente ao princípio da igualdade, singularmente considerado. Ela relaciona-se ainda com tal princípio, quando conjugado com o princípio da proporcionalidade.
Admitindo uma diferenciação ao nível dos limites da pena, compatível com o princípio da igualdade isoladamente considerado, tal assimetria tem, no entanto, de respeitar o princípio da proporcionalidade, sob pena de inconstitucionalidade.
A consagração de uma pena de dois a oito anos no âmbito da lei penal militar, quando a lei penal comum estabelece uma penalidade de um a cinco anos, será violadora dos princípios da igualdade e da proporcionalidade, articuladamente interpretados?
7. O princípio da proporcionalidade, em conjugação com o princípio da igualdade, imporá que as medidas das penas em confronto não sejam de tal forma diversas que se descaracterize em absoluto a valoração subjacente ao tipo de ilícito indiciada pela medida abstracta da pena. Assim, tal princípio imporá que a agravação dos limites da pena do crime militar seja adequada ao acréscimo valorativo decorrente do facto de se estar perante um crime praticado por um agente sobre o qual impendem deveres específicos, relacionados com a sua função.
Contudo, e na medida em que as situações previstas por ambas as normas têm amplas zonas de sobreposição, tal coincidência deve reflectir-se nas respectivas medidas legais da pena, de forma a permitir um tratamento próximo (ou mesmo idêntico) em casos semelhantes e um tratamento distinto nos casos em que de forma nítida sobressaia o incumprimento do dever que sobre o agente impende, e a consequente afectação do valor acrescidamente tutelado pelo crime militar.
No referido Acórdão nº 958/96 julgou-se inconstitucional a norma contida no artigo 204º, alínea c), do Código de Justiça Militar, que estabelecia para a burla, quando tivesse por objecto valor compreendido entre
40.000$00 e 120.000$00, pena de 2 a 8 anos de prisão, ao passo que a lei penal comum cominava, para a mesma factualidade típica, pena de prisão até 3 anos.
Por outro lado, no Acórdão nº 370/94 julgou-se inconstitucional a norma contida no artigo 203º, alínea a), do Código de Justiça Militar, que cominava para o crime de abuso de confiança pena de prisão de 12 a
16 anos, no caso de o prejuízo causado ser superior a 1.000.000$00 (hoje
1.500.000$00), ao passo que o Código Penal previa, tendo em conta a agravação do artigo
299º, pena de prisão de um ano e quatro meses até dez anos e oito meses de prisão.
Estas situações são exemplos de uma nítida desproporção. Não existe de todo, ou apenas existe uma sobreposição ínfima das respectivas molduras penais, pelo que é inevitável um juízo de reprovação, quando se procede ao confronto de tais normas com os princípios da igualdade e da proporcionalidade.
8. Já a norma contida no artigo 186º, nº 1, alínea a), do Código de Justiça Militar, não consubstancia um destes casos.
Com efeito, um a cinco anos e dois a oito anos de prisão são limites que comportam um espaço de coincidência, em que a parcial diferença pode ser imputada à circunstância de o crime militar tutelar valores inerentes à instituição, ficando a agravação a dever-se ao facto de o crime ser praticado no exercício (ou a coberto) dos cargos ou funções desempenhadas pelo agente.
Nestas duas penalidades existe ainda uma zona de sobreposição suficientemente ampla que impede a quebra de identidade entre o núcleo fundamental das valorações subjacentes. A penalidade do crime militar permite a aplicação de uma pena concreta equiparável à resultante do direito penal comum, precisamente nas situações em que a actuação do agente militar esteja próxima da do funcionário não militar, ao nível da lesão dos bens jurídicos tutelados
(tenha-se em conta que a decisão recorrida sancionou em concreto o crime de falsificação com a pena de prisão de dois anos; ora, esta pena concreta, para além
de se traduzir na aplicação do limite mínimo, está próxima do próprio limite mínimo da penalidade estabelecida pelo Código Penal).
No que concerne ao limite máximo de oito anos, importa ter presente que a agravação do limite máximo da penalidade estabelecida no artigo
256º, nº 4, do Código Penal (cinco anos) para aquele valor se enquadra nos patamares punitivos utilizados pelo legislador quando procede à qualificação de um crime [cf., exemplificativamente, os artigos 204º, nºs 1 e 2; 205º, nº 4, alíneas a) e b); e 213º, nºs 1 e 2].
9. Há, assim, que concluir que a norma contida no artigo
186º, nº 1, alínea a), do Código de Justiça Militar não viola os princípios da igualdade e da proporcionalidade, ínsitos nos artigos 13º e 18º da Constituição.
B A conformidade à Constituição da norma contida no artigo 193º, nº 1, alínea c), do Código de Justiça Militar
10. A norma contida no artigo 193º, nº 1, alínea c), do Código de Justiça Militar estabelece a penalidade de oito a doze anos de prisão para o crime de peculato. A norma correspondente no Código Penal (artigo 375º) consagra limites nitidamente inferiores (1 a 8 anos).
Constata-se, deste modo, que o limite máximo da penalidade estatuída pela lei penal comum corresponde ao limite mínimo da penalidade da lei penal militar. Trata-se de uma diferença de tal forma significativa que há forçosamente que afirmar a existência de uma desproporcionalidade incompatível com os princípios consagrados nos artigos 13º e 18º da Constituição, quando lidos articuladamente.
Sendo esta, como aliás resulta do que anteriormente se disse, uma questão em tudo idêntica à decidida nos citados Acórdãos nºs 370/94 e
958/96, há agora que remeter para os fundamentos desses arestos, concluindo que a norma constante do artigo 193º, nº 1, alínea c), do Código de Justiça Militar viola os princípios da igualdade e da proporcionalidade, consagrados constitucionalmente.
III Decisão
11. Ante o exposto, decide-se:
a) não julgar inconstitucional a norma contida no artigo
186º, nº 1, alínea a), do Código de Justiça Militar;
b) julgar inconstitucional a norma contida no artigo 193º, nº 1, alínea c), do Código de Justiça Militar, por violação dos princípios da igualdade e da proporcionalidade, consagrados nos artigos 13º e 18º, nº 2, respectivamente, da Constituição, interpretados conjugadamente, na medida em que aquela norma estabelece pena desproporcionadamente superior à prevista para o mesmo tipo de crime no Código Penal;
c) conceder provimento parcial ao recurso, determinando a reforma do acórdão recorrido de acordo com o presente juízo de inconstitucionalidade.
Lisboa, 17 de Abril de 1997 Maria Fernanda Palma Armindo Ribeiro Mendes Alberto Tavares da Costa Maria da Assunção Esteves José Manuel Cardoso da Costa