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Procº nº 701/95 Rel. Cons. Alves Correia
Acordam na 2ª Secção do Tribunal Constitucional:
I - Relatório.
1. L... deduziu, no Tribunal Superior de Justiça de Macau, incidente de suspeição do juiz relator do processo em que era recorrente, alegando que existiam entre aquele magistrado e o seu mandatário graves motivos de inimizade que poderiam fazer suspeitar da imparcialidade de tal juiz.
Por Acórdão de 23 de Novembro de 1994, aquele Tribunal, depois de considerar que os fundamentos de suspeição do juiz são os taxativamente indicados no artigo 112º do Código de Processo Penal de 1929, aí vigente, decidiu julgar improcedente o pedido de suspeição e condenar o requerente nas custas do incidente. Tal aresto foi acompanhado de uma declaração de voto em que se defendia a condenação do advogado como litigante de má fé e a comunicação ao
órgão de disciplina profissional do advogado requerente, por violação do seu Código Deontológico.
2. Secundando esta posição, o Procurador da República em funções no território de Macau interpôs recurso do referido acórdão para o Plenário do Tribunal Superior de Justiça, 'na parte em que não condenou o advogado em litigância de má fé e por não ter ordenado a passagem e remessa da competente certidão à Associação dos Advogados de Macau para efeitos disciplinares'. Por sua vez, L... intentou recurso para o Tribunal Constitucional, com fundamento na aplicação pelo aresto recorrido da norma constante do artigo 112º do Código de Processo Penal de 1929, com uma interpretação restritiva que ele reputava de inconstitucional.
Admitido o recurso do Ministério Público, foi rejeitado o outro, com fundamento no não esgotamento dos recursos ordinários, uma vez que o Acórdão de
23 de Novembro de 1994 era recorrível para o Plenário do Tribunal Superior de Justiça. Dessa decisão de inadmissão do recurso apresentou L... reclamação para o Tribunal Constitucional, mas dela desistiu dias mais tarde.
3. Nas alegações de recurso para o Plenário do Tribunal Superior de Justiça de Macau, o Procurador da República concluiu assim:
'1. O Advogado, Dr. P..., alegando agir em nome do R., veio levantar, por si, e não em representação do seu constituinte, um incidente de suspeição, baseando-se
única e exclusivamente no facto
de já ter suscitado idênticos incidentes noutros pro-cessos, o que, no seu entender, teria necessariamente levado a que o Venerando Juiz visado passasse a nutrir um sentimento de inimizade por ele, advogado, e, portanto, verificar-se-ia um motivo de suspeição numa interpretação extensiva do artº.
112º, nº 7, do C.P.P.;
2. Por essa teoria, que teria de funcionar na inversa, para o ilustre advogado seriam igualmente suspeitos o Venerando Conselheiro, que votou vencido por achar que ele devia ter sido condenado por litigância de má fé, e o autor destas linhas por ter interposto recurso para esse fim, o que seria manifestamente peregrino;
3. Adiante: sabendo que os processos no Venerando Tribunal Superior de Justiça só são distribuídos a 4 dos 5 Juízes que o compõem, com tal incidente, cujo fundamento não tem a mínima protecção legal, o que também era (e é) do conhecimento daquele ilustre advogado, este quer, à evidência, inviabilizar o funcionamento deste Tribunal nos processos em que ele intervier como mandatário, e ainda é evidente que se trata de uma manobra dilatória, fazendo com que o processo não seja decidido com a celeridade exigível.
4. Consequentemente, aquele ilustre advogado litiga de má fé e, por isso, deve ser condenado em multa e indemnização, comunicando-se tal decisão à Associação dos Advogados de Macau'.
Por sua vez, o recorrido terminava assim as suas alegações - a que juntou um Parecer do Prof. Doutor Figueiredo Dias:
'a) Entende o Senhor Procurador da República que o advogado do ora recorrido, o signatário, ao deduzir o incidente de suspeição em apreço litigou de má fé, devendo ser condenado em multa e indemnização. b) No entanto, o signatário nada requereu, por si. Nunca poderá ser condenado, por decisão do Plenário do S.T.J.M., em multa e indemnização, pois, não é isso
que se extrai de uma interpretação conjunta dos nº 1 do artº 456º e artº 459º do C.P.C., devidamente adaptados ao processo penal. c) Afigurou-se ao signatário, ao subscrever aquele incidente, que não é possível que os fundamentos previstos no artº 112º do C.P.P. sejam os únicos, com base nos quais se possa deduzir a suspeição de um juiz em processo penal. Exactamente, por isso, e porque esta já era a tendência doutrinária, no domínio do C.P.P. de 1929, o actual C.P.P. vigente na República alargou expressamente
(artº43º) os motivos que poderão fundamentar aquela suspeição. d) Ao defensor, em processo penal, compete-lhe, exclusivamente, apoiar e defender no processo o seu constituinte. Defensor e constituinte, em processo penal, são indissociáveis e aquele tem de ser visto como um verdadeiro sujeito processual. Assim, negar à parte em processo penal o levantamento do incidente de suspeição, com fundamento na inimizade grave entre o seu defensor e o juiz da causa, é o mesmo que negar-lhe o direito à imparcialidade. e) Pelo exposto, não restam dúvidas que a conduta do advogado do recorrido nunca poderá ser motivo de qualificação de litigância de má fé, constituindo caso de participação à Associação de Advogados de Macau. f) Os incidentes de suspeição em causa não foram suscitados de ânimo leve, mas baseados num princípio geral do direito, segundo o qual a lei deve assegurar que em todos os Tribunais reine em relação a todos os participantes processuais, uma atmosfera de pura objectividade. g) O Senhor Procurador da República, no desempenho das suas funções, agiu imparcial e objectivamente. Nunca poderá ser, por tal motivo, julgando suspeito. O mesmo se não diga já da conduta do senhor Conselheiro que emitiu as declarações constantes dos acórdãos em apreço. Por, salvo melhor opinião e o devido respeito, ter perdido a objectividade e a diligência que lhe compete observar, o signatário participou os factos ao Conselho Superior de Justiça de Macau.
Com este fundamento, o ora recorrido requereu a suspeição deste Senhor Conselheiro nos presentes autos. Finalmente, h) O mandatário do recorrido, o ora signatário, não pretende, nem pode, inviabilizar o funcionamento do Tribunal Superior de Justiça de Macau'.
4. Por Acórdão de 15 de Março de 1995, o Plenário do Tribunal Superior de Justiça de Macau decidiu, com dois votos de vencido, conceder provimento ao recurso e, em consequência, condenar o requerente como litigante de má fé e comunicar ao Conselho Superior de Advocacia de Macau a situação, louvando-se na taxatividade do artigo 112º do Código de Processo Penal, bem como nos ensinamentos de Alberto dos Reis e do direito comparado (italiano, francês, espanhol e brasileiro), que circunscrevem os fundamentos de suspeição às relações entre o juiz e as partes - nunca os advogados das partes. Por sua vez, os votos de vencido sublinham a divergência de opiniões na doutrina quanto à taxatividade do elenco de fundamentos de suspeição do referido artigo e, bem assim, a evolução legislativa nacional (o Código de Processo Penal de 1992 já consagrou uma cláusula geral), concluindo, por isso, pela falta de dolo do causídico. Referem ainda a existência de uma incongruência entre o objecto do recurso e a decisão: objecto do recurso era a condenação do mandatário da parte, não desta, contra a qual nenhum pedido tinha sido deduzido. Por outro lado, a má fé instrumental prevista no artigo
117º do Código de Processo Penal teria apenas em vista a parte, não o seu mandatário.
5. Ao abrigo do disposto no artigo 669º do Código de Processo Penal de 1929, foi requerido o esclarecimento do Acórdão do Plenário e, face ao seu indeferimento pelo Acórdão de 17 de Maio de 1995, veio o mesmo L... arguir a nulidade do Acórdão, por omissão e excesso de pronúncia, porquanto:
'O objecto do recurso era, e é, a condenação do signatário (o advogado do recorrido) em multa e indemnização, por litigância de má fé, o que independentemente do alvo a atingir, é um manifesto desrespeito por quem, na defesa intransigente da justiça, tem opinião diversa.
O Sr. Procurador da República, na verdade, não pode ignorar que o recorrido invocou, o que para todos os efeitos ora se invoca, a inconstitucionalidade material do artº. 112º do C.P.P..
É que, entende o recorrido, a interpretação restritiva (taxativa) do artº. 112º do C.P.P., como o fez o acórdão em apreço e sugere o Sr. Procurador da República, traduz-se inequivocamente numa inconstitucionalidade material, por violação no disposto nos nºs.1, 3 e 7 do artº 32º da Constituição da República Portuguesa'.
'Por outro lado,
2 - O recorrido, na 1ª parte das suas alegações, referiu, essencialmente, que:
- o seu mandatário judicial nada requereu por si, mas em representação do seu constituinte o ora recorrido; e
- uma eventual condenação por litigância de má fé nunca poderá, nos termos do artº.456º e segs. do C.P.P., ser imposta ao seu mandatário judicial.
3 - O acórdão em apreço ignora, pura e simplesmente, esta questão e não a resolve.
A única referência a tudo quanto o recorrido alegou é a de que este se 'insurgiu' contra o recurso...'.
6. Por Acórdão de 7 de Junho de 1995, o Plenário do Tribunal Superior de Justiça de Macau indeferiu o pedido de arguição de nulidades, com dois votos de vencido, que, no entanto, secundaram a posição maioritária quanto
à decisão da questão de constitucionalidade, sobre a qual aí se escreveu:
' Irreleva no presente incidente a invocação da inconstitucionalidade material do preceito do artº. 112º do CPP. À uma, por ser esdrúxula essa invocação no contexto da arguição da nulidade deduzida, por para o seu conhecimento não haver lugar à apreciação da pretensa inconstitucionalidade, como se viu. A outra, por no presente processo já não poder ocorrer a apreciação da inconstitucionalidade material do aludido preceito processual penal, por a tanto obstar o caso julgado formal, tendo em conta a decisão proferida a fls. 7 do apenso, ora transitada, em que se julgou válida a desistência requerida por L..., no que tange à reclamação por ele apresentada para o Tribunal Constitucional do despacho do relator exarado nos autos a fls.
32 que não lhe admitiu recurso para esse Tribunal para apreciação da referida inconstitucionalidade.'.
7. 'Notificado do acórdão que lhe indeferiu o pedido de arguição de nulidades do acórdão de fls. 105 e segs [Acórdão de 15 de Março de 1995], e não se conformando com este último, na medida em que faz aplicação directa de uma norma (artº. 112º do C.P.P.) cuja inconstitucionalidade material foi alegada no decorrer do processo - quando interpretada de uma forma restritiva (taxativa), como, aliás, o faz expressamente a decisão ora impugnada - por violação do disposto nos nºs.
1, 3 e 7 do artigo 32º da Constituição da República Portuguesa', interpôs L... recurso para o Tribunal Constitucional. Admitido o recurso, o Procurador da República em funções no Território de Macau reclamou para a Conferência, ao abrigo do disposto no nº 3 do artigo 700º do Código de Processo Civil, pedindo que aquela revogasse o despacho de admissão de recurso para o Tribunal Constitucional, por entender que 'na verdade, a questão da inconstitucionalidade do artº. 112º do CPP já havia sido objecto do acórdão de fls. 21, datado de
23/11/94, não tendo sido atendida.
Por esse motivo, o R. interpôs recurso para o Tribunal Constitucional (fls. 29), recurso esse que não foi admitido pelo despacho de fls. 32, já transitado, uma vez que do Acórdão cabia ainda recurso ordinário
(que, aliás, foi por nós interposto - fls. 27), tudo nos termos do artº. 70º, nºs. 1, al. b), e 2, da Lei 28/82, de 15 de Novembro.
Acontece que, transitado aquele despacho, ficou o R. impossibilitado de arguir de novo a inconstitucionalidade do artº. 112º do CPP, uma vez que não interpôs recurso ordinário, como lhe competia, não tendo a mesma questão sido suscitada por nós no nosso recurso.
Esgotada tal questão (de inconstitucionalidade), uma vez que o acórdão de que se pretende recorrer não se pronunciou - nem tinha de se pronunciar - sobre ela, torna-se evidente que o recurso ora interposto não pode ser admitido, por força do disposto nos artºs. 70º e 76º, nº 2, da citada Lei
28/82, na redacção introduzida pela Lei 85/89, de 7 de Setembro, conforme, aliás, tem sido decidido neste venerando Tribunal (cfr. decisões lavradas de 15 de Maio e 28 de Abril, ambos do corrente ano de 1995, nos recursos 278 e 256)'.
8. O Acórdão do Plenário do Tribunal Superior de Justiça de Macau de
18 de Outubro de 1995, tirado com dois votos de vencido, decidiu que a reclamação era inadmissível, mantendo-se o despacho reclamado, por entender que este era insusceptível de impugnação autónoma.
9. Nas alegações produzidas neste Tribunal, o recorrente concluiu do seguinte modo:
1. Entende o recorrente que a questão da litigância de má-fé em que veio a ser condenado e a interpretação do artº. 112º do C.P.P. não podem ser analisadas em separado.
2. O recurso interposto pelo Sr. Procurador da República está intimamente ligado à decisão de fundo do inci- dente: a interpretação taxativa ou restritiva do artº 112º do C.P.P..
3. O recurso ora interposto incide sobre uma decisão judicial que aplicou expressamente norma cuja inconstitu- cionalidade foi suscitada durante o processo - a do artº 112º do C.P.P. - violando, consequentemente, as normas e princípios constitucionais dos nºs. 1, 3 e 7 dos artºs. 32º e 206º da C.R.P..
Na verdade,
4. Entre as garantias de defesa do arguido asseguradas pelo nº 1 do artº 32º da C.R.P. conta-se a garantia decorrente do princípio da independência e da imparcialidade do tribunal, imprescindível à realização daquele outro princípio decorrente das garantias de defesa - o princípio da igualdade de armas.
5. O direito a um tribunal independente e imparcial faz parte do núcleo de direitos fundamentais reconhecidos a todos os indivíduos pela CRP
(artºs 32º nº 1 e 206º), pelo artº 11º da Declaração Universal dos Direitos do Homem, pelos artºs. 14º e 15º do Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos e pelos artºs. 6º e 7º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem.
6. O artº 112º do CPP de 1929, ao consagrar o incidente da suspeição, tem como escopo e fundamento dar expressão concreta ao princípio da imparcialidade do tribunal, colocando à disposição do arguido, através do pedido de afastamento do processo do juiz suspeito, o fazer valer aquele princípio quando a imparcialidade do juiz seja posta em causa por qualquer motivo grave e sério.
7. Considera-se estar em causa um motivo grave e sério de supeição sempre que este se mostra apto a criar junto do arguido e da comunidade desconfianças e suspeitas acerca da objectividade e neutralidade do juiz em relação ao processo, assim se colocando em destaque a dimensão objectiva da imparcialidade.
8. Só uma interpretação do artº 112º do CPP de 1929 em termos de compreender como causa de suspeição qualquer motivo grave e sério a imparcialidade do juiz será conforme com as garantias de defesa do arguido asseguradas pelo artº 32º da CRP, nomeadamente pelo seu nº 1.
9. A existência de uma inimizade grave do juiz para o defensor do arguido pode constituir - como, no caso sub judice, constitui - um motivo sério e grave de suspeitas, por parte do arguido e da comunidade, acerca da neutralidade do juiz em relação ao arguido e à sua defesa.
10. A interpretação da norma do artº 112º do CPP de 1929, maxime do seu nº 7, num sentido taxativo e escrito, ao determinar a não inclusão da inimizade grave entre o juiz e o defensor do arguido entre as causas de suspeição, encontra-se ferida de inconstitucionalidade, por negar ao arguido a possibilidade do juiz considerado suspeito e, assim, violar as suas garantias de defesa em processo criminal, consagradas no artº. 32º nº 1 da CRP.
11. Tal interpretação - e a aplicação da lei que dela resulta - viola, desde logo, o princípio da imparcialidade do tribunal, porquanto conduz à submissão do arguido a um julgamento por juiz de cuja neutralidade a comunidade pode fundadamente suspeitar.
12. O princípio da imparcialidade do tribunal, além de apontar para a 'independência vocacional' do juiz, exige um quadro legal que promova e facilite essa mesma independência, por forma a garantir a imparcialidade real do julgamento e a assegurar a confiança geral na objectividade da jurisdição.
13. A interpretação restrita do artº 112º do CPP de 1929 viola igualmente o princípio da igualdade de armas entre a acusação e a defesa, o qual se conta entre as garantias de defesa do artº 32º nº 1 da CRP, uma vez que, posta em causa a neutralidade do juiz perante arguido, a sua defesa se fragiliza processualmente em relação à acusação, assim se dando lugar a uma desigualdade material daquelas posições em prejuízo do arguido.
14. A interpretação do artº 112º do CPP de 1929 no sentido da sua taxatividade e de forma restrita, em termos de excluir das causas de suspeição as relações de grave inimizade entre o juiz e o defensor, viola igualmente o direito à escolha de defensor, consagrado nº 3 do artº 32º da CRP, na medida em que o receio do arguido de ver repercutida na sua pessoa a perda de objectividade do juiz, pelas relações de tensão entre este e o seu defensor, pode determiná-lo a procurar um outro defensor em relação ao qual se não verifique a inimizade do juiz, mas que não corresponde ao defensor que na realidade ele quis (e tinha o direito de) livremente escolher.
15. A norma do artº 112º do CPP de 1929, se interpretada nos termos descritos, viola ainda o princípio do juiz legal, consagrado no nº 7 do artº 32º da CRP, porquanto, tendo este como escopo e fundamento principal a fixação prévia e abstracta do tribunal que o há-de julgar, pretende garantir uma justiça material assegurada pela neutralidade e independência do juiz, bem como o seu distanciamento em relação à causa.
16. A garantia de neutralidade e imparcialidade prosseguida com o princípio do juiz legal fica imediata e igualmente prejudicada pela não inclusão, entre os motivos de suspeição, de qualquer motivo grave e sério que possa determinar no arguido e na comunidade a perda de confiança na objectividade do julgamento.
17. A norma do artº 112º do CPP de 1929, se interpretada no sentido descrito, viola as disposições constitucionais dos artºs. 32º, nºs 1, 3 e 7 e
206º, pelo que a decisão que nesses termos a aplicou deve ser revogada por aplicação de norma inconstitucional'.
Por sua vez, o Exmº Procurador-Geral Adjunto em funções neste Tribunal encerrou assim as suas alegações:
'1º- A questão de constitucionalidade não foi suscitada perante o tribunal recorrido por forma processualmente adequada, ou seja, durante o processo, pelo que não deve conhecer-se do recurso interposto.
2º- Caso assim se não entenda, deve julgar-se materialmente inconstitucional, por violação dos nºs. 1 e 3 do artigo 32º da Constituição, a norma constante do artigo 112º, nº 7, do Código de Processo Penal de 1929, na interpretação do acórdão recorrido, segundo a qual não se incluem nos fundamentos da suspeição as relações de grave inimizade entre o juiz e o defensor do arguido'.
Ouvido o recorrente sobre a questão prévia suscitada pelo Exmº Procurador-Geral Adjunto, veio ele defender o seu desatendimento, ordenando-se o prosseguimento dos autos e concedendo-se, posteriormente, provimento ao recurso.
10. Corridos os vistos legais,cumpre, então, apreciar e decidir, começando-se por analisar se deve, ou não, atender-se a questão prévia suscitada pelo Exmº Procurador-Geral Adjunto.
II - Fundamentos.
11. O recurso vem interposto ao abrigo da alínea b) do nº 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional (Lei nº 28/82, de 15 de Novembro), o qual depende da verificação dos seguintes pressupostos específicos:
- suscitação da questão de inconstitucionalidade durante o processo;
- aplicação da norma impugnada pela decisão recorrida;
- esgotamento dos recursos ordinários que no caso coubessem.
O sentido do primeiro pressuposto ficou fixado no Acórdão nº 90/85, publicado no Diário da República, II Série, de 11 de Julho de 1985, nos seguintes termos:
'Requisito ou pressuposto do recurso em apreço é, pelo menos em geral, o de que a questão da inconstitucionalidade haja sido suscitada antes de esgotado o poder jurisdicional do juiz sobre a matéria em causa. Ou mais rigorosamente: antes de esgotado o poder jurisdicional sobre a matéria a que tal questão de constitucionalidade respeita'.
E adiante:
'A orientação interpretativa assim definida afigura-se inquestionável. Dir-se-á que ela decorre da própria natureza de que se reveste a intervenção do Tribunal Constitucional no controle concreto da constitucionalidade: com efeito, tratando-se de uma intervenção em via de recurso, não faria sentido que o Tribunal pudesse conhecer de tal questão ainda quando suscitada apenas em momento em que o tribunal a quo já não podia pronunciar-se sobre ela, por esgotado o seu poder jurisdicional para tanto'.
(...)
'À luz do que vem de ser dito, não pode, pois, deixar de entender-se a exigência do artº 280º, nº 1, al. b), da Constituição, relativa à invocação da inconstitucionalidade 'durante o processo', não num sentido puramente formal
(tal que a inconstitucionalidade pudesse ser suscitada até à extinção da instância), mas no sentido funcional que fica apontado - tal que (salvo, porventura, na referida situação excepcional) essa invocação haverá de ter sido feita em momento em que o tribunal a quo ainda pudesse conhecer da questão. E deste entendimento advém necessariamente - como se mostrou no já referido Acórdão nº 62/85 [publicado no Diário da República, II Série, de 31 de Maio de
1985] - que o pedido de aclaração de uma sentença ou acórdão ou a arguição da sua nulidade não são meios idóneos para suscitar - em vista de ulterior recurso para o Tribunal Constitucional - uma questão de constitucionalidade relativa a matéria sobre a qual o poder jurisdicional do tribunal a quo se esgotou com a decisão'.
Aqui chegados, e uma vez que, cabendo embora ao tribunal que tiver proferido a decisão recorrida apreciar a admissão do respectivo recurso (nº 1 do artigo 76º da Lei do Tribunal Constitucional), tal decisão de admissão do recurso não vincula o Tribunal Constitucional, facilmente se conclui que dele não pode este Tribunal conhecer, uma vez que nas alegações do recurso para o Plenário do Tribunal Superior de Justiça de Macau o recorrido não suscitou a questão da inconstitucionalidade da norma que ora impugna, numa certa interpretação. Por isso, aquele Tribunal não se pronunciou sobre tal questão no Acórdão de 15 de Março de 1995, só vindo a fazê-lo no Acórdão de 7 de Junho de
1995, que decidiu sobre a invocada existência de nulidades - num momento que, como se referiu, já não era idóneo para suscitar a questão de constitucionalidade, com vista ao recurso para este Tribunal.
12. De facto, a situação ora em apreço é idêntica à que foi decidida por este Tribunal no Acórdão nº 619/95 (inédito), onde se escreveu:
'Suscitar a questão de inconstitucionalidade durante o processo - tem este Tribunal dito repetidamente - é fazê-lo em termos de o tribunal recorrido ficar a saber que tem essa questão para decidir, e em tempo de sobre ela se poder pronunciar - o que, obviamente, reclama que a mesma lhe seja colocada de forma clara e perceptível e, em regra, antes de proferida a decisão sobre a matéria a que ela respeita.
Este Tribunal tem acrescentado também que a questão de constitucionalidade há-de ter sido suscitada perante o tribunal que tiver proferido a decisão de que se recorre, não bastando que o tenha sido perante uma instância hierarquicamente inferior.
Por isso, quando se suscita a inconstitucionalidade de uma determinada norma jurídica perante um certo tribunal, de cuja decisão vem a ser interposto recurso ordinário para um tribunal hierarquicamente superior, só poderá recorrer-se da
decisão deste último para o Tribunal Constitucional, se a questão de constitucionalidade tiver sido recolocada perante aquele tribunal de recurso
[cf., neste sentido, os acórdãos nºs 36/91 (Diário da República, II, de 22 de Outubro de 1991), 177/91 (Diário da República, II, de 7 de Setembro de 1991),
422/91 (Diário da República, II, de 2 de Abril de 1992), 468/91 (Diário da República, II, de 24 de Abril de 1992), 469/91 (Diário da República, II, de 24 de Abril de 1992), 47/92 (Boletim do Ministério da Justiça, nº 413, p. 580),
271/94 e 368/94 (ambos por publicar), alguns deles com votos de vencido].
In casu, tal não aconteceu.
De facto, tendo o Ministério Público interposto recurso ordinário do acórdão de 23 de Novembro de 1994 para o Plenário do Tribunal Superior de Justiça de Macau, o ora reclamante, então recorrido, nas alegações que apresentou, não recolocou perante essa instância a questão de constitu- cionalidade que antes havia suscitado e que atrás se enunciou.
Assim sendo, não pode tal questão de constitu- cionalidade ter-se por suscitada durante o processo, para o efeito de o ora reclamante poder recorrer para o Tribunal Constitucional do acórdão, de 8 de Março de 1995, daquele Plenário.
[...] Não tendo sido recolocada perante o Plenário do Tribunal Superior de Justiça de Macau a questão da inconstitucionalidade do nº 7 do artigo 112º do Código de Processo Penal de 1929 (interpretado no sentido de não abranger os graves motivos de inimizade quiçá existentes entre o juiz recusado e o advogado do recusante), não foi tal questão por ele afrontada e decidida expressis verbis. A única questão que o acórdão recorrido decidiu, por ser ela o objecto do recurso, foi a da litigância de má fé na dedução do incidente de suspeição.
Claro é, no entanto, que, para decidir a questão da má fé processual, o acórdão recorrido começou por afirmar a taxa- tividade dos motivos de suspeição enunciados no mencionado artigo 112º; disse que, no seu nº 7, se não incluiam aqueles eventuais motivos de inimizade; e asseverou que, ao deduzir o incidente, o recorrido (recte, o seu advogado) sabia, dada a sua qualidade de profissional do foro, que não podia requerer uma suspeição com aquele fundamento. Ou seja: disse, ao cabo e ao resto, que ele, advogado, conhecia a manifesta improcedência da questão de constitucionalidade que suscitara.
[...] O certo, porém, é que a questão de constitu- cionalidade que o reclamante quer ver decidida por este Tribunal não foi suscitada perante o tribunal recorrido por forma processualmente adequada - que o mesmo é dizer durante o processo'.
Substituindo as referências a 'reclamante' por 'recorrente' (ali estava em apreço a reclamação do despacho de inadmissão do recurso), tudo o resto é aqui aplicável, pois até a data do Acórdão da Secção do Tribunal Superior de Justiça de Macau, de que o Ministério Público recorreu para o Plenário, é a mesma.
Há, assim, que concluir pelo atendimento da questão prévia suscitada pelo Exmº Procurador-Geral Adjunto e, consequentemente, não tomar conhecimento do recurso.
III - Decisão.
13. Nos termos e pelos fundamentos expostos, decide-se não tomar conhecimento do recurso.
Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em cinco Unidades de Conta.
Lisboa, 11 de Março de 1997 Fernando Alves Correia Guilherme da Fonseca Bravo Serra Messias Bento José Sousa e Brito (vencido, nos termos da minha declaração de voto junta ao Acórdão nº36/91) Luis Nunes de Almeida