Imprimir acórdão
Processo n.º 83/2012
3ª Secção
Relator: Conselheira Maria Lúcia Amaral
Acordam, em Conferência, na 3.ª Secção do Tribunal Constitucional
I – Relatório
1. Nos presentes autos de fiscalização concreta da constitucionalidade, vindos do Supremo Tribunal de Justiça, em que é recorrente A., foi proferida decisão sumária em que se decidiu não conhecer parcialmente do objeto do recurso e, na parte em que dele se conheceu, não julgar inconstitucional a norma constante do artigo 754.º, n.º 2 do Código de Processo Civil, na interpretação segundo a qual se não existir um acórdão sobre a mesma questão de direito proferido no domínio da mesma legislação pelo Supremo Tribunal de Justiça ou por qualquer Relação que esteja em oposição com o acórdão recorrido, não é admissível recurso de agravo na segunda instância.
Foram os seguintes os fundamentos da decisão:
3. O recurso de constitucionalidade foi interposto ao abrigo do disposto na alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei de Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional (Lei do Tribunal Constitucional: LTC).
Nos termos do disposto na alínea b) desse preceito, cabe recurso para o Tribunal Constitucional de decisões que apliquem norma cuja inconstitucionalidade haja sido suscitada durante o processo.
Não se encontrando o Tribunal Constitucional vinculado pela decisão que admitiu o recurso, nos termos do disposto no n.º 3 do artigo 76.º da LTC, entende-se não se poder conhecer parcialmente do objeto do mesmo e, na parte em que dele se conhece, proferir decisão sumária por a questão a decidir ser simples, nos termos do disposto no n.º 1 do artigo 78.º-A do mesmo diploma.
Entende o recorrente que padece de inconstitucionalidade, por violação dos artigos 13.º, n.º 1, 18.º, n.º 2 e 20.º, n.º 1 da Constituição, a interpretação dada pela decisão recorrida ao artigo 754.º, n.º 2 do Código de Processo Civil, segundo a qual se não existir um acórdão sobre a mesma questão de direito proferido no domínio da mesma legislação pelo Supremo Tribunal de Justiça ou por qualquer Relação que esteja em oposição com o acórdão recorrido, não é admissível recurso de agravo na segunda instância.
O Tribunal Constitucional tem uma jurisprudência consolidada no sentido de que a Constituição não consagra um direito geral ao recurso de decisões judiciais (com exceção das decisões condenatórias e das que afetem direitos fundamentais do arguido em processo penal e ainda, como inovatoriamente se reconheceu no Acórdão n.º 40/2008, disponível em www.tribunalconstitucional.pt, naqueles casos em que a lesão de direitos fundamentais é diretamente imputável, em primeira linha, a uma atuação ou decisão dos tribunais) e, muito menos, como pretende o recorrente, o direito a um terceiro grau de jurisdição ou um duplo direito de recurso.
Surge, assim, como “simples”, na aceção do disposto no n.1 do artigo 78.º-A da Lei do Tribunal Constitucional, a questão de inconstitucionalidade da referida interpretação do artigo 754.º, n.º 2 do Código de Processo Civil.
Já no que respeita à questão de constitucionalidade do artigo 579.º, n.º 2 do Código Civil, na interpretação segundo a qual é nula a transmissão de bens ou direitos litigiosos a descendentes dos advogados que exerçam habitualmente na área da comarca onde o processo corre, não pode o Tribunal Constitucional dela conhecer, porquanto tal preceito não foi efetivamente aplicado pela decisão recorrida, sendo que, em sede de fiscalização concreta, tratando-se de formular um juízo que tem por objeto uma norma tal como foi aplicada num caso concreto, é um pressuposto de conhecimento do recurso de constitucionalidade que a decisão que o Tribunal Constitucional venha a proferir sobre a questão de constitucionalidade suscitada seja suscetível de produzir algum efeito sobre a decisão de que se recorre (nesse sentido, entre muitos outros, v. Acórdãos do TC n.ºs 169/92, 463/94, 366/96 e 687/2004, disponíveis em www.tribunalconstitucional.pt).
Ora, tendo o tribunal a quo decidido não conhecer do recurso interposto, é evidente que não tomou qualquer posição sobre as questões que integravam o seu objeto, pelo que seria inútil qualquer juízo que o Tribunal Constitucional sobre elas viesse a fazer.
2. Notificado dessa decisão, A. veio reclamar para a conferência, ao abrigo do disposto no n.º 3 do artigo 78.º-A da Lei do Tribunal Constitucional (LTC), com os seguintes fundamentos:
“1.º
O recorrente apresentou recurso neste Tribunal ao abrigo do disposto no artigo 70.º, n.º1, al. b) da Lei do Tribunal Constitucional, alegando o seguinte:
“O presente recurso é interposto ao abrigo do artigo 70.º, n.º1, al. b) da Lei n.º 28/82, de 15 de novembro, na redação que lhe foi dada pela Lei n.º 85/99, de 7 de setembro e pela Lei n.º 13-A/98, de 26 de fevereiro.
Pretende o recorrente que seja apreciada por esse Venerando Tribunal a inconstitucionalidade do artigo 754.º, n.º 2 do C.P.C., na interpretação segundo a qual se não existir um acórdão sobre a mesma questão de direito proferido no domínio da mesma legislação pelo supremo Tribunal de Justiça ou por qualquer Relação que esteja em oposição com o acórdão recorrido, não é admitido recurso de agravo na segunda instância.
Essa norma, na referida interpretação, viola as disposições dos artigos 13.º, n.º1, 18.º, n.º2, 20.º, n.º1, da CRP.
Ao legislador no sentido de restringir o direito ao recurso de modo excessivamente amplo e injustificado, nomeadamente nos casos em que haja contradição entre as decisões de 1.ª instância e da relação, e no caso da questão em apreço ainda não ter sido tratada nos tribunais, não havendo acórdão da Relação ou do Supremo Tribunal de Justiça em sentido contrário, deverá o citado n.º 2 do artigo 754.º do C.P.C. ser declarado inconstitucional, ficando assim em vigor a redação do mesmo artigo anterior à alteração legislativa de 1995, redação essa acima citada, deste modo se admitindo o presente recurso sem qualquer limitação do seu âmbito.
Inquestionavelmente não é admissível a eliminação de graus de recurso quando estão em causa não só direitos fundamentais como valores importantes para a vida em sociedade.
Pretende ainda o recorrente que seja apreciada por esse Venerando Tribunal a inconstitucionalidade do artigo 579.º, n.º 2 do C.C., na interpretação segundo a qual é nula a transmissão de bens ou direitos litigiosos a descendentes dos advogados que exerçam habitualmente na área da comarca onde o processo corre.
Esta norma, na referida interpretação, viola o artigo 13.º, n.º 2 da CRP.
A discriminação negativa do descendente de um advogado é injustificada, é por isso, inconstitucional.
A questão de inconstitucionalidade foi suscitada nos autos de recurso de agravo de segunda instância interpostos para o Supremo Tribunal de Justiça.
O presente recurso deve subir imediatamente, nos autos, com efeito suspensivo'.
2.º
O Sr. Juiz Conselheiro Relator, face ao que lhe foi apresentado, entendeu por bem lançar mão do dispositivo consagrado no artigo 78.º-A, n.º 1, da Lei de Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional, disposição esta que prevê e possibilita, quando verificados os seus pressupostos, que logo seja proferida o que se designa de 'decisão sumária' a qual pode consistir por mera remissão para eventual anterior jurisprudência do Tribunal Constitucional.
3.º
O teor da decisão sumária é o seguinte:
“O recurso de constitucionalidade foi interposto ao abrigo do disposto na alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei de Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional (Lei do Tribunal Constitucional: LTC).
Nos termos do disposto na alínea b) desse preceito, cabe recurso para o Tribunal Constitucional de decisões que apliquem norma cuja inconstitucionalidade haja sido suscitada durante o processo.
Não se encontrando o Tribunal Constitucional vinculado pela decisão que admitiu o recurso, nos termos do disposto no n.º 3 do artigo 76.º da LTC, entende-se não se poder conhecer parcialmente do objeto do mesmo e, na parte em que dele se conhece, proferir decisão sumária por a questão a decidir ser simples, nos termos do disposto no artigo 78.º-A do mesmo diploma.
Entende o recorrente que padece de inconstitucionalidade, por violação dos artigos 13.º, n.º 1, 18.º, n.º 2 e 20.º, n.º 1 da Constituição, a interpretação dada pela decisão recorrida ao artigo 754. º, n.º 2 do CPC, segundo a qual se não existir um acórdão sobre a mesma questão de direito proferido no domínio da mesma legislação pelo Supremo Tribunal de Justiça ou por qualquer Relação que esteja em oposição com o acórdão recorrido, não é admissível recurso de agravo na segunda instância.
O Tribunal Constitucional tem uma jurisprudência consolidada no sentido de que a Constituição não consagra um direito geral ao recurso das decisões judiciais (com exceção das decisões condenatórias e das que afetem direitos fundamentais do arguido em processo penal e ainda, como inovatoriamente se reconheceu no Acórdão n.º 40/2008, disponível em www.tribunclconstituclonol.pt, naqueles casos em que a lesão de direitos fundamentais é diretamente imputável, em primeira linha, a uma atuação ou decisão dos tribunais) e, muito menos, como pretende o recorrente, o direito a um terceiro grau de jurisdição ou um duplo direito de recurso.
Surge, assim, como 'simples', na aceção do disposto no n.º 1 do artigo 78.º-A da Lei do Tribunal Constitucional, a questão de inconstitucionalidade da referida interpretação do artigo 754.º, n.º 2 do C.P.C.
Já no que respeita à questão de inconstitucionalidade do artigo 579.º, n.º 2 do C.C, na interpretação segundo a qual é nula a transmissão de bens ou direitos litigiosos a descendentes de advogados que exerçam habitualmente na área da comarca onde o processo corre, não pode o Tribunal Constitucional dela conhecer, porquanto, tal preceito não foi efetivamente aplicado pela decisão recorrida, sendo que, em sede de fiscalização concreta, tratando-se de formular um juízo que tem por objeto uma norma tal como foi aplicada num caso concreto, é um pressuposto do conhecimento do recurso de constitucionalidade que a decisão que o Tribunal Constitucional venha a proferir sobre a questão de constitucionalidade suscitada seja suscetível de produzir algum efeito sobre a decisão de que se recorre (neste sentido, entre muitos outros, v. Acórdãos do TC n.ºs 169/92, 463/94, 366/96 e 687/2004, disponíveis em www.tribunalconstitucional.pt.
Ora, tendo o tribunal a quo decidido não conhecer o recurso interposto, é evidente que não tomou qualquer posição sobre as questões que integravam o seu objeto, pelo que seria inútil qualquer juízo que o Tribunal Constitucional sobre elas viesse a fazer'.
4.º
Portanto, a decisão sumária que está em causa radica no entendimento que o Tribunal Constitucional tem uma jurisprudência consolidada no sentido de que a Constituição não consagra um direito geral ao recurso de decisões judiciais (com exceção das decisões condenatórias e das que afetem direitos fundamentais do arguido em processo penal e ainda, como inovatoriamente se reconheceu no Acórdão n.º 40/2008, disponível em www.tribunalconstitucional.pt. naqueles casos em que a lesão de direitos fundamentais é diretamente imputável, em primeira linha, a uma atuação ou decisão dos tribunais) e, muito menos, como pretende o recorrente, o direito a um terceiro grau de jurisdição ou um duplo direito de recurso.
5.º
Radica ainda no entendimento segundo o qual relativamente à inconstitucionalidade do artigo 579.º, n.º 2 do Código Civil, não tendo o tribunal a quo conhecido o recurso, é evidente que não tomou qualquer posição sobre as questões que integravam o seu objeto, pelo que seria inútil qualquer juízo que o Tribunal Constitucional sobre elas viesse a fazer.
6.º
Não pode sufragar-se este entendimento! Exatamente e desde logo porque relativamente à inconstitucionalidade do artigo 754.º, n.º 2 do C.P.C, a questão não é simples! Isto por um lado, sendo certo que, por outro lado, a decisão sumária posta em crise pela via da presente reclamação interpretou erradamente o objeto do recurso interposto pelo recorrente.
7.º
Acresce que, conforme abaixo melhor se explanará, também deve ser tomado conhecimento do recurso interposto relativamente à inconstitucionalidade do artigo 579.º, n.º 2 na interpretação dada pelo recorrente.
I. DA INCONSTITUCIONALIDADE DO ARTIGO 754.º, N.º 2 DO C.P.C
8.º
No que concerne à inconstitucionalidade do artigo 754.º, n.º 2 do C.P.C, entendeu, a Sra. Juiz Conselheira Relatora, erradamente no entendimento do recorrente, que este pretende o direito a um terceiro grau de jurisdição ou um duplo direito de recurso.
9.º
Ora, tal não corresponde à verdade.
10.º
Dispõe o artigo 754.º do C.P.C:
'1. Cabe recurso de agravo para o Supremo Tribunal de Justiça do acórdão da Relação de que seja admissível recurso, salvo nos casos em que couber revista ou apelação.
2. Não é admitido recurso do acórdão da Relação sobre decisão da 1.ª Instância, salvo se o acórdão estiver em oposição com outro, proferido no domínio da mesma legislação pelo Supremo Tribunal de Justiça ou por qualquer Relação, e não houver sido fixada pelo Supremo, nos termos dos artigos 732.º-A e 732.º-B, jurisprudência com ele conforme.
3. O disposto na primeira parte do número anterior não é aplicável aos agravos referidos nos n.ºs 2 e 3 do 678.º e na alínea a) do n.º 1 do artigo 734.º'.
11.º
Entendemos que não é legítimo, nem constitucional restringir-se o direito ao recurso naqueles casos em que não existe acórdão em sentido contrário ao acórdão que se pretende recorrer proferido sobre a mesma questão de direito.
12.º
Pretende, assim, o recorrente que se aprecie a constitucionalidade da norma nos sobreditos termos, POIS O PRÓPRIO LEGISLADOR CONSIDEROU QUE A REDAÇÃO EM VIGOR RESTRINGIA OS DIREITOS DOS CIDADÃOS, PELO QUE ALARGOU O ÂMBITO DO RECURSO DE MODO A PERMITI-LO EM CASOS IDÊNTICOS AO PRESENTE.
13.º
ACRESCE QUE A ADMISSIBILIDADE OU NÃO DO RECURSO NÃO É APENAS DE INTERESSE DO RECORRENTE, MAS SIM DA PRÓPRIA SOCIEDADE E DOS TRIBUNAIS, TODOS INTERESSADOS NA MELHOR INTERPRETAÇÃO E APLICAÇÃO DA LEI, QUE SERVE NÃO APENAS ESTE CASO CONCRETO MAS OUTROS QUE PODERÃO VIR A OCORRER.
14º
Na verdade, ao limitar o recurso de agravo da decisão da Relação aos casos em que existe um outro acórdão em sentido contrário ao acórdão que se pretende recorrer proferido sobre a mesma questão de direito, esta disposição legal impede esse direito quando, em casos como o presente, não existe qualquer acórdão proferido sobre a mesma questão em apreço em qualquer sentido, por uma questão nunca antes suscitada perante os tribunais.
Porém, dispõe o artigo 18.º, n.º 2 da CRP que:
“A lei só pode restringir os direitos, liberdades e garantias nos casos expressamente previstos na Constituição, devendo as restrições limitar-se ao necessário para salvaguardar outras direitos ou interesses constitucionalmente protegidos'.
E dispõe o artigo 20.º, n.º 1 da CRP que:
“A todos é assegurado a acesso ao direito e aos tribunais para defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos, não podendo a justiça ser denegada por insuficiência de meios económicas'.
15.º
É unanimemente reconhecido que, nesta última disposição constitucional se encontra previsto o direito ao recurso (neste sentido ver VITAL MOREIRA, CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA PORTUGUESA ANOTADA, Anotação XIV ao art. 20.º).
Este mesmo autor, certamente tendo em vista o disposto no citado art. 18.º, n.º 2 da CRP, escreve (obra e anotação citadas):
'Não é também líquido se o legislador pode eliminar livremente grau de recursos existentes'.
Acrescentamos nós: inquestionavelmente não é possível a eliminação de graus de recurso quando estão em causa não só direitos fundamentais como valores importantes para a vida em sociedade.
Note-se que poderão estar em causa direitos fundamentais (por exemplo, o direito à habitação) e seria muito grave, nestes casos, o impedimento do direito ao recurso.
16.º
Tanto assim é que o artigo 721.º-A, n.º 1, al. a) do C.P.C, NA ATUAL REDAÇÃO APROVADA PELO DL 303/2007, DE 24/08, ampliou a admissibilidade de recursos como este aos casos em que 'Esteja em causa uma questão cuja apreciação, pela sua relevância jurídica, seja claramente necessária para uma melhor aplicação do direito'.
Tacitamente o legislador reconheceu que o artigo 754.º, n.º 2 do C.P.C acima referido punha em causa direitos fundamentais. Este é um dos casos em que tal acontece.
17.º
Note-se que há aqui uma decisão contrária, e não menos douta do que a decisão recorrida proferida pelo Sr. Juiz de Primeira Instância, pelo que ainda mais se justificava a consagração do direito ao recurso nos casos em que há decisões contraditórias entre a primeira e a segunda instância.
18.º
A redação anterior do artigo 754.º do C.P.C, antes da reforma 95/96 era a seguinte:
'Cabe recurso de agravo para o Supremo:
a) Da sentença do tribunal de comarca, a que se refere a exceção estabelecido no artigo 800.º;
b) Do acórdão da relação de que seja admissível recurso, salvo nos cosas em que couber recurso de revista ou de apelação”;
19.º
Ora, da leitura da redação do artigo 754.º do C.P.C introduzida pelo DL n.º 375-A/99, de 20/09 e da leitura da redação antes dessa reforma, temos que a alteração introduzida veio limitar o direito ao recurso.
É que, a redação do n.º 2 do artigo 754.º do C.P.C introduzida pelo DL N.º 375-A/99, de 20/09, pôs fim aos agravos continuados para o Supremo relativos a decisões interlocutórias, tendo restringido o direito ao recurso nos termos dessa disposição legal apenas aos casos de divergência previstos na ressalva constante daquele normativo.
20.º
Ninguém pode ser privado de levar a sua causa (relacionada com a defesa de um direito ou interesse legítimo e não apenas de direitos fundamentais) à apreciação de um tribunal, pelo menos como último recurso. Por isso, o artigo 20.º da CRP consagra um direito fundamental independentemente da sua recondução a direito, liberdade e garantia ou a direito análogo aos direitos, liberdades e garantias.
21.º
A imposição constitucional da tutela jurisdicional efetiva impende, em primeiro lugar, sobre o legislador, que deve tomar em consideração na organização dos tribunais e no recorte dos instrumentos processuais, sendo-lhe vedado: (1) a criação de dificuldades excessivas e materialmente injustificadas no direito de acesso aos tribunais; (2) a criação de 'situações de indefesa' originadas por conflitos de competência negativos entre vários tribunais.
Embora o legislador disponha de liberdade de conformação quanto à regulação dos requisitos e graus de recurso, ele não pode regulá-lo de forma discriminatória, nem limitá-lo de forma excessiva, como fez o legislador de 1995.
22.º
Mas ocorre também a violação do princípio de igualdade, plasmado no artigo 13.º, n.º1 da CRP, já que a alguns cidadãos é admitido o recurso em casos como o presente e a outros não, sem haver uma justificação claramente atendível e justa para tal, pois não é atendível nem justo o impedir-se o recurso no caso de não haver qualquer acórdão que anteriormente se tenha pronunciado sobre o assunto, em qualquer sentido.
Bem pelo contrário, seria mais uma razão acrescida para que o recurso fosse admitido para que a questão fosse analisada profundamente pelos tribunais.
23.º
Ao legislar no sentido de restringir o direito ao recurso de modo excessivamente amplo e injustificado, nomeadamente nos casos em que haja contradição entre decisões de 1.ª instância e da Relação, e no caso da questão em apreço ainda não ter sido tratada pelos tribunais, não havendo acórdão da Relação ou do STJ em sentido contrário, deverá o citado artigo 754.º, n.º 2 do C.P.C ser declarado inconstitucional, ficando a vigorar assim a redação do mesmo artigo anterior à alteração legislativa de 1995, redação essa acima citada.
II. DA INCONSTITUCIONALIDADE DO ARTIGO 579.º, n.º 2 do C.C
24.º
Conforme supra referido, entendeu a Sra. Dra. Juiz Conselheira Relatora não conhecer da inconstitucionalidade invocada relativa ao artigo 579.º, n.º 2 do C.C, porquanto tal preceito não foi efetivamente aplicado pela decisão recorrida.
25.º
Ora, efetivamente tal preceito não foi aplicado pelo STJ, mas foi aplicado pelo Tribunal da Relação, e é na sequência da decisão do Tribunal da Relação que foi interposto recurso para o STJ, pelo que se colocou no âmbito do presente processo a questão da fiscalização concreta da constitucionalidade desta disposição legal, sendo certo que a fiscalização concreta da constitucionalidade diz respeito não só às decisões do STJ mas também em relação às decisões dos tribunais de 2.ª instância.
26.º
Conjugado o artigo 579.º, n.º2 e o artigo 876.º, ambos do C.C com o artigo 13.º da CRP, verifica-se que o artigo 579.º, n.º2 proíbe a compra de bens por descendente de determinados advogados, sendo que o n.º 2 do art.º 13.º da CRP considera que ninguém pode ser prejudicado ou privado de qualquer direito em razão da sua ascendência.
27.º
Um desses direitos é o direito à propriedade privada e, portanto, o direito à sua aquisição consignado no artigo 62.º da CRP.
28.º
O n.º 2 do artigo 579.º do C.C, ao impedir a compra de bens por filhos de um advogado está a discriminar negativamente e prejudicar esses filhos em função da sua ascendência, o que é proibido pelo n.º 2 do art. 13.º da CRP.
29.º
E não se diga que esta situação é legitima e se destina a impedir abusos, nomeadamente conforme refere CUNHA GONÇALVES in TRATADO DE DIREITO CIVIL.
É que esses abusos poderão ser sempre prevenidos com recurso a outros meios judiciais, nomeadamente através da prova da prática de atos ilícitos pelo advogado ascendente com o objetivo de beneficiar o seu filho.
É, aliás essa prova que é permitida quando o bem é transmitido a terceiro com o acordo do inibido (que pode ser advogado, juiz ou funcionário judicial).
Assim sendo, a descriminação negativa do descendente de um advogado é injustificada e, por isso, inconstitucional.
30.º
Assim sendo, deverá decretar-se a inconstitucionalidade do art. 579.º, n.º 2 do C.C na parte em que considera nula a transmissão de bens ou direitos litigiosos a descendentes de advogados que exerçam habitualmente na área da comarca onde o processo corre”.
3. Notificado da reclamação, veio B. a ela responder, na qualidade de recorrido, pugnando no essencial pelo seu indeferimento. Além disso, pediu ainda que fosse o requerente “condenado como litigante de má-fé em multa que o Tribunal doutamente fixar e em indemnização à parte contrária em montante não inferior a €3.000,00”.
Cumpre apreciar e decidir.
II – Fundamentação
4. Na reclamação apresentada, o reclamante pretende controverter tanto o fundamento oferecido na decisão sumária para não conhecer parcialmente do objeto do recurso como o fundamento oferecido para não julgar inconstitucional a norma constante do artigo 754.º, n.º 2 do Código de Processo Civil, na interpretação segundo a qual se não existir um acórdão sobre a mesma questão de direito proferido no domínio da mesma legislação pelo Supremo Tribunal de Justiça ou por qualquer Relação que esteja em oposição com o acórdão recorrido, não é admissível recurso de agravo na segunda instância.
Proceder-se-á à análise dessas duas questões em separado, sendo certo que, ao contrário do que pretende o recorrido, se entende que não é de aplicar ao caso o previsto no nº 7 do artigo 84.º da Lei nº 28/82, de 15 de novembro (Lei do Tribunal Constitucional: LTC).
Do não conhecimento parcial do objeto do recurso
5. Na decisão sumária reclamada decidiu-se não conhecer da questão de constitucionalidade do artigo 579.º, n.º 2 do Código Civil, na interpretação segundo a qual é nula a transmissão de bens ou direitos litigiosos a descendentes dos advogados que exerçam habitualmente na área da comarca onde o processo corre, por tal preceito não ter sido efetivamente aplicado pela decisão recorrida, sendo que, em sede de fiscalização concreta da constitucionalidade, é um pressuposto de admissibilidade do recurso que a decisão que o Tribunal Constitucional venha a proferir sobre a questão de constitucionalidade suscitada seja suscetível de produzir algum efeito sobre a decisão de que se recorre.
Na reclamação apresentada, o reclamante reconhece que tal preceito não foi efetivamente aplicado pelo Supremo Tribunal de Justiça. Sustenta, porém, que tal preceito foi aplicado pelo Tribunal da Relação, pelo que, tendo sido interposto recurso para o Supremo Tribunal de Justiça de decisão do Tribunal da Relação, se teria colocado no âmbito do presente processo a questão da constitucionalidade desta disposição legal. Afirma ainda o reclamante que a fiscalização concreta da constitucionalidade diz respeito não só a decisões do STJ mas também a decisões dos tribunais de segunda instância.
Não tem razão o reclamante.
Independentemente da questão de saber se, in casu, é admissível a interposição de recurso para o Tribunal Constitucional do acórdão do Tribunal da Relação, a verdade é que o recorrente interpôs recurso do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, proferido em 19.05.2011.
Ora, estando em causa a decisão proferida pelo Supremo Tribunal, e atendendo aos efeitos do recurso de constitucionalidade em sede de fiscalização concreta, o Tribunal Constitucional apenas pode conhecer de questões de constitucionalidade relativas a normas aplicadas pela decisão de que se recorre.
Não tendo o artigo 579.º, nº 2, do Código Civil sido aplicado pela decisão recorrida, não pode o Tribunal conhecer da questão que o tenha por objeto, porquanto qualquer juízo que o Tribunal viesse a fazer sobre tal questão seria inútil.
Assim, é de confirmar na íntegra a decisão sumária na parte em que nela se decidiu não conhecer parcialmente do objeto do recurso.
Da questão de constitucionalidade do artigo 754.º, n.º 2 do Código de Processo Civil
6. Na decisão sumária reclamada decidiu-se não julgar inconstitucional a norma constante do artigo 754.º, n.º 2 do Código de Processo Civil, na interpretação segundo a qual se não existir um acórdão sobre a mesma questão de direito proferido no domínio da mesma legislação pelo Supremo Tribunal de Justiça ou por qualquer Relação que esteja em oposição com o acórdão recorrido, não é admissível recurso de agravo na segunda instância.
Atendendo à jurisprudência consolidada deste Tribunal em matéria de direito de recurso de decisões judiciais, entendeu-se que configurava uma questão “simples”, na aceção do disposto no n.º 1 do artigo 78.º-A da LTC, a questão de constitucionalidade da referida interpretação do artigo 754.º, n.º 2 do Código de Processo Civil.
Na reclamação apresentada, o reclamante começa por contestar o entendimento, sufragado na decisão sumária, de que se está perante uma questão “simples”. Entende ainda o reclamante que a decisão sumária interpretou erradamente o objeto do recurso interposto pelo recorrente.
Não tem razão o reclamante.
No que respeita à questão de saber se a questão de constitucionalidade da referida interpretação do artigo 754.º, n.º 2 do Código de Processo Civil configura ou não uma questão “simples”, na aceção do artigo 78.º-A, n.º 1 da LTC, importa clarificar que, para efeitos do disposto nesse preceito, a qualificação de uma determinada questão de constitucionalidade como “simples” afere-se em virtude de um critério objetivo, qual seja a existência de jurisprudência consolidada sobre a matéria, e não em virtude de um critério subjetivo como seja o entendimento que o recorrente possa ter sobre a “simplicidade” ou “complexidade” de uma determinada questão de constitucionalidade.
Assim sendo, e verificando-se que existe quanto à questão de constitucionalidade apreciada pela decisão sumária uma jurisprudência consolidada do Tribunal Constitucional, encontra-se preenchido o pressuposto legal, nos termos do qual é admissível que sobre a questão seja proferida decisão sumária pelo relator no Tribunal Constitucional.
No que respeita à segunda objeção que o reclamante dirige à decisão sumária, designadamente o de ela ter interpretado erradamente o objeto do recurso interposto, por ter entendido que o recorrente pretende o direito a um terceiro grau de jurisdição ou um duplo direito de recurso, deve dizer-se que tal interpretação é a que se impõe face ao modo como o recorrente, no requerimento de interposição do recurso de constitucionalidade, delimitou o seu objeto. Tal interpretação é, aliás, confirmada, e não infirmada, pelo teor da reclamação apresentada.
Face à reiterada jurisprudência deste Tribunal (largamente referenciada no acórdão indicado pela decisão sumária reclamada) sobre a inexistência da consagração constitucional de um direito geral de recurso de decisões judiciais e, muito menos, do direito a um duplo recurso (ou um triplo grau de jurisdição), é infundada a questão de constitucionalidade da norma constante do artigo 754.º, n.º 2 do Código de Processo Civil, na interpretação segundo a qual se não existir um acórdão sobre a mesma questão de direito proferido no domínio da mesma legislação pelo Supremo Tribunal de Justiça ou por qualquer Relação que esteja em oposição com o acórdão recorrido, não é admissível recurso de agravo na segunda instância.
Nenhum dos argumentos oferecidos pelo reclamante na reclamação apresentada é de molde a abalar o entendimento de que, face a tal enquadramento jurídico-constitucional, o legislador ordinário goza de uma ampla liberdade de conformação do regime de acesso ao Supremo Tribunal de Justiça.
O argumento, avançado nos pontos 12 e 16 da reclamação, segundo o qual o próprio legislador considerou que a redação em vigor restringia os direitos dos cidadãos, pelo que alargou o âmbito do recurso de modo a permiti-lo em casos idênticos ao presente, seguramente que não tem a virtualidade de contrariar a jurisprudência do Tribunal Constitucional sobre a inexistência da consagração constitucional de um direito geral de recurso de decisões judiciais e, muito menos, do direito a um duplo recurso (ou um triplo grau de jurisdição), pois o que dessa jurisprudência se retira é justamente a ampla liberdade de conformação de que goza o legislador ordinário nessa matéria. Dito de outro modo, a circunstância de o legislador ordinário poder ter, eventualmente, revisto o regime de acesso ao Supremo Tribunal de Justiça, alargando-o a situações não contempladas pela lei antiga, em nada releva para a questão jurídico-constitucional sob apreciação que é a de saber se ele a tanto estaria constitucionalmente vinculado.
III – Decisão
Nestes termos, decide-se indeferir a reclamação, confirmando a decisão sumária reclamada.
Custas pelo reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 20 (vinte) unidades de conta.
Lisboa, 28 de março de 2012.- Maria Lúcia Amaral – Carlos Fernandes Cadilha – Gil Galvão.