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Processo nº 773/96 Plenário Cons. Messias Bento
Acordam no Plenário do Tribunal Constitucional:
I. Relatório:
1. O PROCURADOR-GERAL ADJUNTO em exercício neste Tribunal veio, ao abrigo do disposto nos artigos 281º, nº 3, da Constituição da República Portuguesa e 82º da Lei do Tribunal Constitucional, requerer que se aprecie e declare, com força obrigatória geral, a inconstitucionalidade da norma do artigo
3º, nº 1, alínea b), do Decreto-Lei nº 49 400, de 24 de Novembro de 1969
(referente à previsão e punição do crime de auxílio à emigração clandestina), quando conjugada com os artigos 1º e 2º do mesmo diploma legal e por referência ao disposto nos artigos 1º, 3º e 5º do Decreto-Lei nº 44 427, de 29 de Junho de
1962, nos artigos 4º e 6º do Decreto nº 44 428, de 29 de Junho de 1962 (por lapso, escreveu-se 1969), e no artigo 1º do Decreto Regulamentar nº 45/78, de 23 de Novembro (na parte em que aditou um novo nº 1 ao artigo 10º do Decreto nº 44
428).
Tal requer, porque este Tribunal, pelos acórdãos nºs 204/94
(publicado no Diário da República, II série, de 19 de Julho de 1994), 360/95 e
926/96 (estes por publicar), todos eles juntos por cópia aos autos, julgou inconstitucional a norma assim identificada, por violação das disposições conjugadas dos artigos 44º e 18º da Constituição da República Portuguesa.
2. O PRIMEIRO-MINISTRO, notificado, nos termos dos artigos 54º e 55º da Lei do Tribunal Constitucional, para se pronunciar sobre o pedido, veio oferecer o merecimento dos autos.
3. Cumpre agora decidir. E, desde logo, se deve conhecer-se do pedido.
II. Fundamentos:
4. Preliminares:
Este Tribunal, sempre que, em três casos concretos, tenha julgado inconstitucional determinada norma jurídica, pode, a requerimento do Ministério Público, declarar a inconstitucionalidade dessa norma, com força obrigatória geral
(cf. artigos 281º, nº 3, da Constituição e 82º da Lei do Tribunal Constitucional).
Como a norma atrás enunciada foi julgada inconstitucional em três casos concretos (cf. os acórdãos nºs 204/94, 360/95 e 926/96) e o Ministério Público requer que o Tribunal declare, com força obrigatória geral, a inconstitucionalidade da mesma, estão preenchidos esses pressupostos do conhecimento do pedido.
A apreciação da questão de constitucionalidade só deixará, por isso, de fazer-se, se não houver interesse jurídico relevante no conhecimento do pedido. Mas ela não deixará de ter lugar por estar em causa uma norma que - salvo na parte em que a alínea b) do nº 1 do artigo 3º do Decreto-Lei nº 49 400, de 24 de Novembro de 1969, reenvia para o artigo 1º do Decreto Regulamentar nº
45/78, de 23 de Novembro - é anterior à entrada em vigor da actual Constituição.
O direito anterior à Constituição de 1976 deve, de facto, ser com ela confrontado no plano material, pois que, se for materialmente inconstitucional, tem de haver-se por caducado
com a entrada em vigor desta lei fundamental, não podendo, por isso, ser aplicado posteriormente a 25 de Abril de 1976 (cf. artigo 290º, nº 2, e 282º, nº
2, da Constituição).
No tocante à necessidade de existência de interesse processual relevante no conhecimento do pedido, este Tribunal - seguindo, de resto, na esteira de jurisprudência sua anterior vinda já da Comissão Constitucional - teve ocasião de sublinhar, no acórdão nº 453/95 (publicado no Diário da República, II série, de 7 de Outubro de 1995), que 'também nos processos de fiscalização abstracta tem relevância o requisito do interesse processual, ou seja, a existência de um interesse com 'conteúdo prático apreciável' que justifique accionar um mecanismo de índole genérica e abstracta, como é a declaração, com força obrigatória geral, de inconstitucionalidade (formulação do Parecer nº 21/81, citado no acórdão nº 17/83, in Acórdãos do Tribunal Constitucional, 1º volume, páginas 93 e seguintes)'.
Vejamos, então.
5. A revogação parcial da norma sub iudicio:
A norma que constitui objecto do pedido respeita ao crime de auxílio
à emigração clandestina.
5.1. Pois bem: O Decreto-Lei nº 49 400, de 24 de Novembro de 1969, qualifica como emigração clandestina a saída do País por parte de um nacional
'sem documento que a tal habilite ou sem observância das formalidades ou prescrições legais', com intenção de se fixar, permanente ou temporariamente, em país estrangeiro [cf. artigo 1º, nº.1, alínea a)]. E emigração clandestina é também a simples travessia da fronteira naquelas condições [cf. alínea b) do mesmo artigo 1º].
A emigração clandestina constitui contravenção, punível com multa. Se, porém, o emigrante clandestino tiver o propósito de se subtrair ao serviço militar, o facto constitui crime, punível nos termos do artigo 64º da Lei nº 2
135, de 11 de Julho de 1968 (Lei do Serviço Militar então em vigor), ou seja, com prisão de seis meses a um ano (cf. artigo 1º, nºs 1 e 2).
O aliciamento de nacionais para saírem ilegalmente do País (ou seja,
'sem documento que a tal habilite ou sem observância das formalidades ou prescrições legais') e, bem assim, o auxílio à emigração clandestina, ainda que a saída não venha a verificar-se, constituem crimes, puníveis com prisão e
multa [é o caso da infracções previstas nos artigos 2º, nºs 1, alíneas a) e b), e 2, e 3º, nºs 1, alínea a), e 2 (primeira parte)] ou só com prisão [é o caso das infracções previstas no artigo 3º, nºs 1, alínea b), e 2 (parte final)]. A sua punição está prevista no artigo 3º do mesmo diploma legal, quando haja recebimento de quantia em dinheiro ou de outro valor, 'em pagamento ou recompensa' desses actos, e no artigo 2º, no caso de esse recebimento se não verificar.
O artigo 3º, nº 1, alínea b) - aqui sub iudicio na parte relativa ao crime de auxílio à emigração clandestina - prescreve, com efeito: Artigo 3º.
1. Aquele que em pagamento ou recompensa da prática de qualquer dos actos previstos no artigo anterior receber quantia ou outro valor será punido: b). Com prisão maior de dois a oito anos, se a quantia for igual ou superior a 5
000$00.
5.2. Para emigrar legalmente, era necessário ser portador de passaporte de emigrante (cf. artigo 3º e § único do Decreto-Lei nº 44 427, de 29 de Junho de 1962).
Dispunha, na verdade, o artigo 1º do Decreto-Lei nº 44 427, de 29 de Junho de 1962, que 'é livre a emigração dos
cidadãos portugueses, sem prejuízo do disposto no artigo 31º da Constituição Política e nas demais leis em vigor', acrescentando o § 1º que, 'quando circunstâncias especiais o impuserem, o Governo, pelo Ministro do Interior, poderá determinar a suspensão total ou parcial da emigração para determinado país ou região'.
O artigo 2º deste mesmo decreto-lei preceitua que 'compete ao Ministro do Interior, com a audiência dos Ministérios interessados, conforme os casos, estabelecer, de harmonia com a evolução das circunstâncias, as normas relativas ao condicionamento da emigração'.
O artigo 3º do mesmo diploma legal estipula que se considera
'emigração a saída do País de indivíduos de nacionalidade portuguesa, originária ou adquirida, para se estabelecerem definitiva ou temporariamente no estrangeiro, salvo nos casos exceptuados por lei'. E o § único acrescentava que
'os portugueses que se proponham ausentar-se do território nacional nas condições a que se refere este artigo deverão ser portadores de passaporte de emigrante, a conceder nos termos do presente diploma e seu regulamento'.
Abre-se aqui um parêntesis para referir que o § único do citado artigo 3º veio a ser revogado pelo artigo 53º, alínea c), do Decreto-Lei nº
438/88, de 29 de Novembro (posteriormente alterado pelo Decreto-Lei nº 267/89, de 18 de Agosto), que estabeleceu um novo regime legal para a emissão de passaportes. Anteriormente, a matéria da emissão de passaportes achava-se regulada no Decreto-Lei nº 46 747, de 15 de Dezembro de 1965 - que foi regulamentado pelo Decreto nº 46 748, da mesma data -, salvo no tocante à concessão de passaporte diplomático e para emigrante, que se regia por legislação especial, conforme se dispunha no § único do artigo 3º do citado Decreto-Lei 46 747 - legislação especial que constava do mencionado Decreto-Lei nº 44 427 e do Decreto nº 44 428, que o regulamentou.
O artigo 5º do mesmo Decreto-Lei nº 44 427 estatuía que 'o recrutamento, no País, de indivíduos de nacionalidade portuguesa para trabalharem no estrangeiro depende de autorização da Junta de Emigração, mediante parecer favorável da Direcção-Geral do Trabalho e Corporações', precisando o § único que 'as bases dos contratos de trabalho necessários para a concessão de passaporte de emigrante a trabalhadores recrutados nos termos deste artigo ficam sujeitas a aprovação pelo Ministério das Corporações e Previdência Social'.
5.3. Por sua vez, o Decreto nº 44 428, de 29 de Junho de 1962 - que regulamentou o Decreto-Lei nº 44 427 - começa por dizer no artigo 1º que, de harmonia com o artigo 3º do Decreto-Lei nº 44 427, se consideram emigrantes:
(a). os portugueses que saírem do território nacional para trabalharem em pais estrangeiro;
(b). as mulheres que acompanhem ou vão juntar-se ao marido emigrante;
(c). os parentes por consanguinidade em qualquer grau da linha recta ou até ao 3º grau da linha transversal de qualquer emigrante, quando o acompanhem ou vão juntar-se-lhe;
(d). os portugueses que transfiram a sua residência para país estrangeiro em que beneficiem da qualidade de imigrante ou equivalente.
Acrescenta, no artigo 2º, que não são considerados emigrantes:
(a). os indivíduos que se ausentarem para o estrangeiro em missão de estudo ou de serviço oficial;
(b).os estudantes que vão frequentar estabelecimentos de ensino no estrangeiro;
(c) os seminaristas e alunos de entidades de formação religiosa que pelas autoridades eclesiásticas interessadas sejam mandados concluir a sua formação no estrangeiro;
(d). os indivíduos no exercício de uma profissão liberal, os artistas e os desportistas que se desloquem a países estrangeiros por curto período de tempo;
(e). os tripulantes de aeronaves ou navios mercantes estrangeiros que escalem regularmente portos nacionais;
(f). os trabalhadores das zonas fronteiriças;
(g). os serviçais, os motoristas e condutores de viaturas automóveis que no exercício da sua função profissional acompanhem os respectivos patrões ou proprietários de nacionalidade portuguesa residentes em território nacional em viagens de turismo ou culturais;
(h). os indivíduos que ao serviço de entidades patronais estabelecidas em território nacional sejam enviados ao estrangeiro para o desempenho de funções de carácter transitório ou para fins de estágio com vista ao aperfeiçoamento da sua formação profissional
O artigo 3º do mesmo diploma regulamentar versa sobre o
'recrutamento no País de indivíduos de nacionalidade portuguesa para trabalharem no estrangeiro', que o mesmo é dizer do recrutamento dos verdadeiros emigrantes
[cf. artigo 1º, alínea a)]; e, no artigo 5º, trata das entidades competentes para a concessão de passaportes de emigrante.
O artigo 4º do mesmo decreto dispõe sobre os requisitos e formalidades da concessão de passaporte de emigrante - passaporte que, de acordo com o artigo 17º, pode ser individual ou familiar.
De harmonia com o que se preceitua neste artigo 4º, o passaporte de emigrante tem que ser pedido em requerimento em que o candidato à emigração indique o país onde pretende estabelecer-se.
Tal requerimento tem que ser instruído com documentos comprovativos do seguinte:
(a). identidade do candidato a emigrante;
(b). que tem a saúde e robustez física necessárias;
(c). que tem trabalho ou a manutenção assegurada no país de destino;
(d). que tem autorização de entrada no país de destino;
(e). que a manutenção das pessoas de família a seu cargo fica devidamente assegurada;
(f). que, sendo maior de 18 e menor de 45 anos, satisfaz os preceitos das leis e regulamentos militares aplicáveis;
(g). que, tratando-se de mulher casada ou de menor de 21 anos, não emancipado, que não sejam chamados, respectivamente, pelo marido ou pelos pais ou tutores, tem autorização marital ou de quem exerça o pátrio poder ou o seu suprimento;
(h). que, tratando-se de funcionário civil não aposentado nem na situação de licença ilimitada, ou militar em qualquer situação, tem autorização do superior competente de que depende;
(i). que tem as habilitações literárias exigidas por lei;
(j). que, sendo chamado por parente até ao 3º grau, se verifica o parentesco invocado.
A concessão de passaporte de emigrante a mulheres contratadas depende ainda da existência de garantias de protecção moral no país de destino
(cf. o § 1º do mencionado artigo 4).
Na concessão de passaporte a indivíduos que pretendam trabalhar temporariamente no estrangeiro pode ser dispensada a apresentação dos documentos referidos em (b), (e) e (i), do mesmo modo que, tratando-se da concessão de passaporte a indivíduos que pretendam regressar ao país, antes de decorridos
quatro anos sobre a respectiva ausência, pode dispensar-se a prova dos requisitos indicados em (b), (c), (d), (e), (h), (i) e (j). E, em casos devidamente justificados, até a prova dos requisitos indicados em (g) e (i) pode ser dispensada (cf. §§ 4º. 5º e 6º do mesmo artigo 4º).
O artigo 6º do mesmo Decreto nº 44 428 enuncia as causas de indeferimento dos pedidos de concessão de passaportes de emigrante.
Assim, é causa de indeferimento a falta de qualquer dos requisitos referidos no artigo 4º, salvo, relativamente aos indivíduos que pretendam trabalhar temporariamente no estrangeiro, se for dispensada a apresentação dos documentos referidos nos nºs 2º, 5º e 9º daquele artigo 4º, e, referentemente a indivíduos que, antes de decorridos 4 anos sobre a respectiva ausência, pretendam regressar ao país onde já tenham residido como emigrantes, se forem dispensados da prova dos requisitos dos nºs 2º, 3º, 4º, 5º, 8º, 9º e 10º do mesmo artigo 4º. Quando a pretendente a emigrante seja uma mulher casada, é também causa de recusa o facto de ela não acompanhar o respectivo marido, nem pretender juntar-se-lhe, salvo tratando-se de caso devidamente justificado. E
é-o também a circunstância de o impetrante ter sido repatriado, excepto em casos devidamente justificados. É-o ainda a oposição do pedido com quaisquer outras normas relativas ao condicionamento da emigração.
O artigo 5º do mesmo diploma legal indica as entidades competentes para a concessão do passaporte de emigrante. São elas:
(a). a Junta da Emigração, no continente;
(b). os governadores dos respectivos distritos autónomos ou chefe da delegação da Junta de Emigração, quando exista, nas ilhas adjacentes;
(c). os governadores, nas províncias ultramarinas.
5.4. Entretanto, foi publicado o Decreto nº 35/74, de 5 de Fevereiro, que deu nova redacção aos artigos 4º, 6º, 7º, 8º e 9º do Decreto nº
44 428, de 29 de Junho de 1962, para além de revogar o respectivo artigo 10º
(cf. artigo 2º).
De acordo com a redacção dada por este Decreto nº 35/74 ao artigo
4º, nº 1, do Decreto nº 44 428, o passaporte de emigrante - que continuou a poder ser individual ou familiar (cf. artigo 7º, nº 1) - passou a ser concedido, quando o interessado apresente documentos comprovativos de:
(a). identidade;
(b). possuir a saúde e robustez física necessárias - prova que, no entanto, pode ser dispensada (cf. nº 2);
(c). ter trabalho ou autorização de entrada no país de destino, ou ambos, quando exigido - requisito que pode ser
dispensado 'em casos especiais devidamente justificados' (cf. nº 5);
(d). satisfazer os preceitos das leis e regulamentos militares, tratando-se de indivíduo com mais de 16 e menos de 45 anos de idade;
(e). ter autorização do seu representante legal ou seu suprimento, quando se trate de menor não emancipado, ou interdito - o que também pode dispensar-se 'em casos especiais devidamente justificados' (cf. nº 5);
(f). e ter autorização do superior de que depende, quando se trate de militar em qualquer situação.
O emigrante, sempre que, 'conforme as determinações que regem a entrada de pessoas nos países a que se destinam', seja submetido a exame sanitário pelas autoridades desses países, fica dispensado do referido exame pelas competentes autoridades portuguesas (cf. nº 3). Também não será exigido qualquer outro exame médico, sempre que do processo do emigrante conste atestado médico, para efeitos de emigração, passado pelas delegações ou sudelegações de saúde ou outros serviços oficiais, incluindo os emitidos pelos serviços médicos do Secretariado Nacional da Emigração (cf. nº 4).
Por força da redacção introduzida pelo Decreto nº 35/74 no artigo
6º, nº 1, do Decreto nº 44 428, as causas de indeferimento dos pedidos de concessão de passaporte de emigrante, são as seguintes:
(a). a falta de qualquer dos requisitos atrás referidos, salvo se os mesmos tiverem sido dispensados nos termos que se deixaram indicados;
b). a circunstância de os impetrantes terem sido repatriados, salvo se efectuarem o pagamento da importância despendida pelo Estado com as despesas da sua repatriação;
(c). a oposição do pedido com quaisquer outras normas legais.
5.5. Posteriormente, o Decreto Regulamentar nº 45/78, de 23 de Novembro - depois de, no respectivo preâmbulo, ponderar que, para o emigrante, a
'utilização do passaporte ordinário de que seja titular' se traduz em 'economia e comodidade' - aboliu 'a aposição das letras E T nos passaportes emitidos a favor de emigrantes', dizendo que, desse modo, ia 'ao encontro de um desejo por estes repetidamente manifestado'. Com tal objectivo, aditou ao Decreto nº 44
428, de 29 de Junho de 1962, um artigo 10º, no qual se dispôs que 'o titular do passaporte ordinário que preencha os requisitos indicados no artigo 4º [...] poderá utilizar esse passaporte para efeitos de
emigração desde que obtenha junto das entidades competentes para a concessão de passaporte de emigrante, por averbamento, a necessária autorização' (nº 1).
Esse averbamento, que é gratuito (nº 4) e 'só será aposto em passaporte familiar quando todos os seus membros estiverem autorizados a emigrar' (nº 3), é do seguinte teor: 'bom para emigrar com destino a...' (país para onde estiver autorizado a emigrar)' - dispõe-se no nº 2.
Faz-se aqui um parêntesis para referir que o originário artigo 10º do mencionado Decreto nº 44 428 - que, como se referiu, tinha sido revogado pelo já citado Decreto nº 35/74, de 5 de Fevereiro - dispunha sobre o prazo de validade do passaporte concedido a indivíduos que pretendessem trabalhar temporariamente em país estrangeiro (cf. corpo do artigo). No seu § 1º, previa-se a possibilidade de prorrogação do prazo de validade de tal passaporte e indicava-se a entidade competente para a conceder. No § 2º, fixava-se um requisito especial para os indivíduos que se encontrassem ao serviço de patrões estrangeiros residentes em Portugal e que pretendessem acompanhá-los nas respectivas ausências temporárias do País. No § 3º, estabelecia-se a punição em multa, a aplicar pelo Director da Polícia Internacional e de Defesa do Estado
(cf. §
5º), da entidade patronal que não devolvesse o passaporte concedido com essa finalidade a empregado seu. E no § 4º, qualificava-se como emigração clandestina o facto de um indivíduo, que foi trabalhar temporariamente para o estrangeiro, não regressar ao País dentro do prazo de validade fixado ao passaporte.
5.6. As alterações introduzidas no Decreto nº 44 428, de 29 de Junho de 1962 (num primeiro momento, pelo Decreto nº 35/74, de 5 de Fevereiro; e, mais tarde, pelo Decreto Regulamentar nº 45/78, de 23 de Novembro) e, bem assim, várias outras normas (umas, do Decreto-Lei nº 44 427, de 29 de Junho de 1962; outras, do Decreto nº 44 428, da mesma data) foram todas elas revogadas pelo já mencionado Decreto-Lei nº 438/88, de 29 de Novembro.
Efectivamente, o artigo 53º deste Decreto-Lei nº 438/88 revogou, não só 'o § único do artigo 3º, os artigos 7º e 8º [...] do Decreto-Lei nº 44 427, de 29 de Junho de 1962', como também os artigos '4º a 21º do Decreto nº 44 428, de 29 de Junho de 1962, e suas alterações' [cf. as alíneas c) e d)].
Revogado que foi o regime anterior, o Decreto-Lei nº 438/88 - que, no artigo 2º, prevê quatro espécies de passaporte (diplomático, especial, comum e para estrangeiros) - veio dispor, no artigo 32º, nº 1, que 'o passaporte comum individual pode ser utilizado para fixação em país estrangeiro onde for considerado como título bastante para o efeito'.
No nº 1 do artigo 24º deste mesmo diploma legal, estipula-se que 'o requerente de passaporte comum deve fazer prova de identidade pela exibição de bilhete de identidade de cidadão nacional'. No nº 2, prescreve-se que, 'no estrangeiro, a prova de identidade referida no número anterior pode ser substituída pela inscrição consular do requerente'. No nº 3, consigna-se que 'a prova da identidade de menor de 10 anos pode também ser feita pela exibição de cédula pessoal ou de certidão de registo de nascimento'. E no nº 4, estatui-se que 'a concessão de passaporte com inclusão de cônjuge exige prova do casamento, por certidão emitida ou revalidada há menos de seis meses'.
O artigo 25º deste mesmo Decreto-Lei nº 438/88 dispõe que não pode ser concedido passaporte quando a entidade competente para a concessão na circunscrição ou território da naturalidade do pretendente haja sido informada:
(a). da oposição de qualquer dos progenitores, no caso de menor não emancipado, enquanto não for judicialmente decidida ou suprida a respectiva tutela;
(b). pelos órgãos judiciais, de qualquer situação que contrarie a possibilidade do uso do passaporte.
5.7. Feito este excurso - e recordando que a norma que constitui objecto do pedido é a do artigo 3º, nº 1, alínea b), do Decreto-Lei nº 49 400, de 24 de Novembro de 1969, quando conjugada com os artigos 1º e 2º do mesmo diploma e por referência ao disposto nos artigos 1º, 3º e 5º do Decreto-Lei nº
44 427, de 29 de Junho de 1962, nos artigos 4º e 6º do Decreto nº 44 428, de 29 de Junho de 1962, e no artigo 1º do Decreto Regulamentar nº 45/78, de 23 de Novembro (na parte que aditou um novo nº 1 ao artigo 10º do Decreto nº 44 428)
-, uma primeira conclusão pode já extrair-se. E é esta: tal norma, tal como foi recortada pelas decisões que a julgaram inconstitucional - julgamento que o acórdão nº 204/94 proferiu, depois de ter afirmado que ela devia ter-se 'por vigente à época' em que ocorreram os factos a que se reportavam os autos - já não existe no ordenamento jurídico. Ela foi parcialmente revogada.
Isto mesmo se tinha já afirmado naquele acórdão nº 204/94, onde - para além de se sublinhar que a conclusão a que aí se chegava se mostrava
'válida, quer para o quadro normativo resultante dos diplomas de 1962 e de 1974
[...], quer para o diploma de 1978, uma vez que este expressamente reenvia para o Decreto nº 44 428, aditando-lhe um artigo 10º e reportando-se expressamente aos requisitos constantes do artigo 4º daquele outro diploma regulamentar' - se disse que 'em 1988 foi objecto de revogação expressa a legislação que regulava a concessão de passaporte de emigrante, bem como as regras com ele conexas atinentes à emigração'.
Precisando: em 1988, com a publicação do Decreto-Lei nº 438/88, de
29 de Novembro, foram expressamente revogados os preceitos legais de que, nos dizeres do citado acórdão nº 204/94, decorria 'a exigência de um específico tipo de passaporte (§ único do artigo 3º do Decreto-Lei nº 44 427) cuja obtenção dependia de autorização discricionária, ou pelo menos não vinculada, da Administração, subordinada à verificação de requisitos exclusivamente reportáveis ao país de destino e em si mesmos alheios aos interesses nacionais que pudessem estar em causa na limitação do direito à emigração (designadamente, a prova de trabalho e de manutenção assegurada, bem como de autorização de entrada no país de destino (artigos 4º e 6º do Decreto nº 44 428), a sujeição do exercício do direito de
emigração a autorização da Junta de Emigração (e a parecer favorável da Direcção-Geral do Trabalho e Corporações), na vertente do recrutamento no País
(artigo 5º do Decreto-Lei nº 44 427) e a sujeição a aprovação, pelo Ministro das Corporações e Previdência social, das bases do contrato de trabalho necessário para a obtenção do passaporte de emigrante (§ único do artigo 5º do mesmo decreto-lei)'. Ora, eram esses aspectos que tornavam tais normativos desconformes com a Constituição: como se sublinhou nesse aresto, eles 'violam o conteúdo essencial do direito de emigração, mostrando-se excessivos e desproporcionados na compressão que acarretam desse direito de emigração' - e, assim, 'mostram-se desconformes às disposições conjugadas dos artigos 18º e 44º da Constituição'.
Deixou-se claro nesse aresto que 'a exigência de um passaporte como documento ou título habilitador da saída do território nacional, por si só, não pode ser tida como uma restrição do direito de emigração'. Com efeito - acrescentou-se -, 'se o acesso a tal documento se processar em termos que não constituam obstáculo inultrapassável ao exercício do direito de saída do território nacional, a sua exigência haverá de ter-se por meramente conformadora do exercício daquele direito'.
Acresce que também o § único do artigo 1º do Decreto-Lei nº 44 427 - que permitia que o Governo suspendesse,
total ou parcialmente, a emigração para determinado país por mera decisão administrava, 'sem pressupostos previamente definidos na lei' -, por força do que se dispõe no artigo 7º, nº 2, do Código Civil, se tem de considerar revogado, pois que, para além de aquele Decreto-Lei nº 438/88 ter regulado 'toda a matéria da lei anterior', existe incompatibilidade entre a regra nele estabelecida e 'as novas disposições' deste diploma legal.
Assim sendo, a norma da alínea b) do nº 1 do artigo 3º do Decreto-Lei nº 49 400, de 24 de Novembro de 1969 - que pune com prisão maior de dois a oito anos aquele que receber quantia ou valor igual ou superior a 5000$00 em pagamento ou como recompensa da prática de actos de auxílio (ou de aliciamento) à saída do País de nacionais que pretendam fixar-se no estrangeiro, permanente ou temporariamente, sem documento que a tal habilite ou sem observância das formalidades ou prescrições legais (ou seja, que pretendam emigrar clandestinamente) - já não reenvia para as normas que conduziram este Tribunal a julgar inconstitucional a norma que atrás se enunciou.
Na verdade - como resulta dos próprios dizeres do acórdão nº 204/94
-, tal julgamento de inconstitucionalidade
assentou em que 'a moldura penal em causa reporta-se a um tipo de crime cujos elementos definitórios, ou seja, em que a determinação dos comportamentos ou condutas reputadas ilícitas, se contêm em normas consideradas materialmente inconstitucionais, pelas razões atrás apontadas. Sendo as normas materiais definidoras do tipo de crime inconstitucionais, por violadoras da Constituição, assim haverá também de ser tida a norma sancionatória, cuja operatividade pressupõe a existência daqueles normativos reputados inconstitucionais'.
Atingida a conclusão de que a norma que constitui objecto do pedido foi parcialmente revogada - recte, de que foram revogados, justamente, os preceitos legais que, por via do reenvio que para eles fazia a norma penal, induziam a sua inconstitucionalidade -, importa, agora, saber se o Tribunal deve conhecer do pedido.
6. A questão do interesse processual:
6.1. Começa por sublinhar-se - repetindo o que se disse no acórdão nº 135/90 (publicado no Diário da República, II série, de 7 de Setembro de 1990)
- que ao Tribunal 'só [...] é permitido apreciar as normas impugnadas, constantes dos
preceitos já revogados, e não a norma ora vigente no ordenamento jurídico, porque assim o impõe o princípio do pedido' (cf., identicamente, o Parecer nº
22/82, da Comissão Constitucional, publicado nos Pareceres da Comissão Constitucional, volume 20º, página 105).
Ora, a jurisprudência deste Tribunal é firme no sentido de que o facto de a norma, que constitui objecto de um pedido de fiscalização abstracta sucessiva, ter sido revogada não é, de per si, bastante para impedir a apreciação do pedido - e, assim, a eventual emissão de uma declaração de inconstitucionalidade, com força obrigatória geral.
É que - escreveu-se no citado acórdão nº 17/83 -, 'operando tal declaração, em princípio, ex tunc, produz efeitos que retroagem à data da entrada em vigor da norma em causa (cf. artigo 282º, nº 1, da Constituição). E, sendo assim, haverá interesse na emissão de tal declaração, justamente toda a vez que ela for indispensável para eliminar efeitos produzidos pelo normativo questionado durante o tempo em que este vigorou'.
Não basta, porém, que a norma revogada tenha produzido um qualquer efeito, para que se verifique interesse
jurídico relevante na apreciação do pedido de declaração de inconstitucionalidade, com força obrigatória geral.
Escreveu-se, a propósito, no acórdão nº 238/88 (publicado no Diário da República, II série, de 21 de Dezembro de 1988): 'há-de, no entanto, tratar-se de um interesse com 'conteúdo prático apreciável', pois, sendo razoável que se observe aqui um princípio de adequação e proporcionalidade,
'seria inadequado e desproporcionado accionar um mecanismo de índole genérica e abstracta, como é a declaração, com força obrigatória geral, da inconstitucionalidade' [...], para eliminar efeitos eventualmente produzidos que sejam constitucionalmente pouco relevantes ou que possam facilmente ser removidos de outro modo'. E acrescentou-se no mesmo acórdão nº 238/88: 'por conseguinte, estando em causa normas revogadas, a declaração de inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, só deverá ter lugar - ao menos em princípio - quando for evidente a sua indispensabilidade'. E isto é assim - ponderou-se -, porque 'o fim que, em primeira linha, se visa atingir com a declaração de inconstitucionalidade, que é o de expurgar o ordenamento jurídico da norma inquinada, esse já foi conseguido com a revogação. Eliminar os efeitos produzidos por essa norma não passa, pois, de uma finalidade marginal, só se justificando, por isso, a utilização daquele mecanismo quando estejam em causa valores jurídico-constitucionais relevantes'.
Deste modo, não se justifica o conhecimento do pedido de declaração de inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, formulado num processo de fiscalização abstracta sucessiva intentado na sequência de três julgamentos de inconstitucionalidade proferidos em processos de fiscalização concreta, quando os efeitos eventualmente produzidos, medio tempore, pela norma revogada forem constitucionalmente pouco relevantes e puderem ser facilmente eliminados, recorrendo aos meios individuais e concretos de defesa capazes de abrir a via do recurso de constitucionalidade [cf., neste sentido, os acórdãos nºs 397/93,
120/95, 453/95, 580/95 (publicados no Diário da República, II série, de 14 de Setembro de 1993, 13 de Abril, 7 de Outubro e 30 de Dezembro, de 1995, respectivamente) e 328/96 (por publicar)].
Escreveu-se, a propósito, no citado acórdão nº 397/93, que 'sempre seria excessivo ou desproporcionado continuar o presente processo até à eventual declaração de inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, apenas para contemplar os litígios em que as normas revogadas tivessem sido aplicadas ou objecto de recurso de aplicação por decisão judicial. Para tais situações, basta que se aguarde pelos respectivos recursos de constitucionalidade, de forma a vir a ser proferida decisão pelo Tribunal Constitucional, não sendo, para tal, indispensável a prossecução do processo de
fiscalização abstracta, mais complexo, por não se mostrar que tal seja aconselhado por quaisquer 'valores jurídico-constitucionais relevantes'
(formulação retirada do já citado acórdão nº 238/88)'.
E, no já citado acórdão nº 453/95, afirmou-se: 'nestes termos, para o caso - equacionável para a hipótese remota - de se encontrarem ainda em aberto situações de efectiva lesão de direitos e interesses legítimos de médicos abrangidos pela aplicação das normas questionadas nos presentes autos, essas situações sempre poderão ser, através dos referidos meios jurisdicionais concretos de protecção dos administrados, com suscitação da questão de constitucionalidade, objecto de ponderação caso por caso, na exacta medida das lesões sofridas, devendo considerar-se que, no caso em apreço, tais meios são suficientes para a tutela de tais situações'. E acrescentou-se: 'estando assegurada a possibilidade de recurso ao sistema de fiscalização concreta para obviar a casos pontuais, não pode deixar de se concluir que não se vislumbra qualquer interesse jurídico relevante para justificar que se tome conhecimento dos pedidos de declaração de inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, que vêm formulados'.
6.2. Revertendo ao caso dos autos, é fácil de ver que não existe interesse jurídico relevante que justifique o seu prosseguimento com vista ao conhecimento do pedido de declaração de inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, neles formulado.
De facto, suposto que ainda esteja pendente qualquer processo por crime de auxílio à emigração clandestina a que seja aplicável a norma sub iudicio, na parte revogada pelo Decreto-Lei nº 438/88, de 29 de Novembro [ou seja: na parte em que a norma da alínea b) do nº 1 do artigo 3º do Decreto-Lei nº 49.400, de 24 de Novembro de 1969, reenviava para o regime jurídico da concessão de passaporte para efeitos de emigração consagrado na legislação de
1962, na versão original ou na que foi introduzida pelas alterações de 1974 e de
1978] - o que se afigura muito pouco provável, dado o tempo já decorrido sobre a data em que tal revogação se operou -, sempre os meios individuais e concretos de defesa serão suficientes para os interessados defenderem em juízo os seus direitos e interesses.
É que, se a questão de constitucionalidade tiver sido (ou vier a ser) suscitada pelo juiz, pelo Ministério Público, pelo assistente (se o houver) ou pelo arguido, o processo, em princípio, chegará a este Tribunal, em via de recurso (tal como
sucedeu nos processos em que foram tirados os acórdãos que serviram de fundamento ao pedido) - e, então, será ela aqui definitivamente decidida nesse processo. Mas, se, acaso, algum processo tiver sido julgado sem que, nele, essa questão tenha sido apreciada, também uma eventual declaração de inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, da norma aqui sub iudicio não iria produzir aí quaisquer efeitos. E isso porque, dado o tempo já decorrido sobre a revogação das normas que induziam a inconstitucionalidade da norma em apreço, é de supor que as penas que, por força dela, eventualmente, tenham sido aplicadas hajam já sido cumpridas. E, então, sempre haveriam de ficar ressalvados os casos julgados, por não concorrerem razões que justificassem que este Tribunal fosse decidir em contrário (cf. artigo 282º, nº 3, da Constituição).
Concluindo: não se vê, pois, que uma eventual declaração de inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, da norma que constitui objecto do pedido pudesse ter qualquer consequência jurídica relevante, capaz de justificar o conhecimento do mesmo.
III. Decisão: Pelo exposto, o Tribunal Constitucional decide não tomar conhecimento do pedido.
Lisboa, 18 de Fevereiro 1997 Messias Bento Guilherme da Fonseca Maria da Assunção Esteves Vitor Nunes de Almeida Fernando Alves Correia Bravo Serra Luis Nunes de Almeida Antero Alves Monteiro Dinis Alberto Tavares da Costa José Sousa e Brito Armindo Ribeiro Mendes Maria Fernanda Palma José Manuel Cardoso da Costa