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Proc. nº 379/96
1ª Secção Rel.: Consª Maria Fernanda Palma
Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional
I Relatório
1. C... foi condenado, por sentença do Tribunal Judicial de Vila Franca de Xira de 30 de Junho de 1995, como autor de um crime previsto e punido pelo artigo 12º, nº 1, do Decreto-Lei nº 124/90, de 14 de Abril, em pena de multa, no valor de 75.000$00, tendo-lhe sido aplicada a medida de inibição da faculdade de conduzir por um período de 2 (dois) anos, nos termos do nº 2 do artigo 12º do Decreto-Lei nº 124/90, de 14 de Abril.
2. C... interpôs recurso da sentença do Tribunal Judicial de Vila Franca de Xira de 30 de Junho de 1995, para o Tribunal da Relação de Lisboa, invocando a inconstitucionalidade da norma contida no artigo 4º do Decreto-Lei nº 124/90, de 14 de Abril, por violação do disposto nos artigos 27º, nº 2 e 30º, nº 4, da Constituição.
O Tribunal da Relação de Lisboa, por acórdão de 28 de Fevereiro de
1996, reduziu o montante da pena de multa para o valor de 50.000$00 (cinquenta mil escudos), bem como o período de inibição da faculdade de conduzir para 1
(um) ano, tendo decidido, no que à questão de constitucionalidade suscitada respeita, o seguinte:
'(...)
D) Quanto à alegada inconstitucionalidade do
art. 4º do D.L. nº 124/90:
Desde logo, convém adiantar que a sentença recorrida não aplicou o art. 4º desse Dec.-Lei 124/90, nem mesmo quando aplicou a sanção acessória de inibição da faculdade de conduzir, pelo que não se entende como se ataca tal preceito de inconstitucionalidade.
Por outro lado e como é manifesto, a sentença recorrida aplicou a sanção em causa por prevista no aludido artº 12º do D.L. nº 124/90. Assim, apenas acrescentamos que a sentença recorrida não efectuou sequer uma aplicação «automática», como pretende o recorrente. Isto pela singela razão de que tal dispositivo legal foi invocado como prevendo e estatuindo a pena
(principal) de prisão até um ano ou multa até 200 dias e acessoriamente (pena acessória, portanto) a inibição da faculdade de conduzir de 6 meses a 5 anos
(cfr. fls 7 da sentença). Acresce que, de seguida, a sentença recorrida pondera a culpa do arguido e a gravidade da infracção - quer para a pena principal, quer para a acessória, logicamente aplicando, no caso, a inibição da faculdade de conduzir por 2 anos.
Em resumo: é manifesto que não houve aplicação
«automática» de tal sanção acessória, nem ela era permitida pelo citado art. 12º do D.L. nº 124/90 (então em vigor).
Daí que nos reste invocar o próprio Tribunal Constitucional (cfr. Ac. de 12/11/92, in BMJ 421/131 - relativamente a situação semelhante e citando aí muitos outros arestos do T.C. sobre a mesma questão) para concluir, como ali se faz:
«Assim, não decorrendo da norma em causa o efeito automático e necessário da perda do direito de conduzir veículos automóveis pelo simples facto do arguido ter
sido condenado pelo crime ... ou por ter sido condenado em certa pena, tem de se concluir que tal norma não viola o preceito constitucional do nº 4 do art. 30º que proíbe tal produção automática de efeitos.»
Quer dizer, e como em tal aresto se explícita, isto assim
é, quer se considere a inibição de conduzir uma pena acessória, ou medida de segurança (neste caso, teria sempre de se ponderar o grau de perigosidade do agente quer face ao seu comportamento criminal quer à natureza jurídica da infracção - ibidem).
Em conclusão: o art. 12º do D.L. nº 124/90, aplicado na sentença ora recorrida, e com fundamento no qual se aplicou a inibição de conduzir por 2 anos ao recorrente, não está ferido de inconstitucionalidade, mormente por não violar os arts. 18, 27º, nº 2 e 30º, nº 4, da Constituição da República Portuguesa - tanto mais que aí não se prevê (nem se aplicou, portanto) aquela sanção acessória como «automática» (ou apenas por ter sido condenado na pena principal).'
3. C... interpôs recurso de constituciona-lidade do acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 28 de Fevereiro de 1996, ao abrigo do disposto nos artigos 280º, nº 1, alínea b), da Constituição e 70º, nº 1, alínea b), da Lei do Tribunal Constitucional, para apreciação da conformidade à Constituição da norma contida no artigo 12º, nº 2, do Decreto-Lei nº 124/90, de 14 de Abril.
O recorrente apresentou alegações que concluiu do seguinte modo:
'1ª. O Recorrente foi privado do direito de conduzir mediante a aplicação da sanção acessória como efeito necessário da condenação penal pelo crime de recusa de exame de pesquisa de álcool, previsto e punido no art. 12º, nº l, do D.L. 124/90, de 14 de Abril;
2ª. Essa sanção acessória representa a perda de um direito civil do Recorrente;
3ª. A aplicação automática da sanção acessória da inibição de conduzir prevista no nº 2 do artº 12 do citado DL 124/90 é inconstitucional, por violacão das normas constitucionais do art. 30º, nº 4 e art. 27º, nº 2.
4ª. Assim, deve declarar-se nula e sem efeito, por inconstitucional, a sanção de inibição de conduzir aplicada ao Recorrente.'
O Ministério Público contra-alegou suscitando a questão prévia consistente na falta de suscitação durante o processo da questão de constitucionalidade, uma vez que a norma que o recorrente indicou nas alegações apresentadas no Tribunal da Relação de Lisboa foi a contida no artigo 4º e não a contida no artigo 12º, nº 2 (ambos os artigos do Decreto-Lei nº 124/90, de 14 de Abril), norma que efectivamente foi aplicada no processo. Porém, para o caso de o Tribunal Constitucional '... de forma benevolente...' considerar '... rectificado o pretendido lapso ...', o Ministério Público sustentou a não desconformidade à Constituição da norma questionada, remetendo para a juris-prudência do Tribunal. A final tirou as seguintes conclusões:
'1º - O recorrente não suscitou, durante o pro-cesso, a questão da inconstitucionalidade da norma a que pretende reportar o presente recurso - a do artigo 12º, nº 2 do Decreto-Lei nº 124/90 - que havia, aliás, sido aplicada logo pelo tribunal que o havia condenado em 1ª instância.
2º - Termos em que não deverá sequer conhecer-se do presente recurso, por faltar um seu pressuposto essencial.'
O recorrente, em reposta à questão prévia suscitada pelo Ministério Público, afirmou que a indicação da norma contida no artigo 4º em vez da norma contida no nº 2 do artigo 12º deveu-se a mero lapso de escrita.
4. Corridos os vistos, cumpre decidir.
II Fundamentos A Questão prévia
5. O recorrente sustentou nas alegações apresentadas junto do Tribunal da Relação de Lisboa a inconstitucionalidade da norma contida no artigo
4º, nº 2, alínea a), do Decreto-Lei nº 124/90, de 14 de Abril, quando, na verdade, a norma que efectivamente foi aplicada foi a contida no artigo 12º, nº
2, do mesmo diploma.
São as seguintes as redacções dos dois preceitos:
'Artigo 4º Inibição da faculdade de conduzir
1 - Às penas previstas nos artigos 2º e 3º acresce a sanção acessória de inibição da faculdade de conduzir.
2 - A inibição terá a seguinte duração:
a) Seis meses a cinco anos nos casos previs-tos no artigo 2º;
(...)
Artigo 12º Recusa a exames
1 - Todo o condutor, ou pessoa que contribua para acidente de viação, que se recusar a exame de pesquisa de álcool será punido com pena de prisão até um ano ou multa até 200 dias.
2 - À pena prevista no número anterior acresce a sanção acessória, relativamente a condutores, de inibição da faculdade de conduzir, com a duração de seis meses a cinco anos, sendo-lhe ainda aplicável o disposto nos nºs 4, 5 e 6 do artigo 6º.'
Como se constata, as normas são materialmente idênticas, constando de artigos diversos unicamente porque o artigo 4º prevê a 'sanção acessória' das penas previstas nos artigos 2º e 3º, prevendo o artigo 12º, nº 2, a 'sanção acessória' da pena prevista no artigo 12º, nº 1. Materialmente, a medida sancionatória é a mesma, variando apenas o tipo legal cujo preenchimento dá origem à sua aplicação.
O recorrente, por lapso, admite-se, resultante desta semelhança, indicou um dos artigos em vez do outro. Porém, o que sempre esteve em causa, na perspectiva do recorrente, foi a conformidade à Constituição da norma com base na qual o tribunal procedeu à aplicação da medida de inibição da faculdade de conduzir. Como ambas as normas prevêm essa medida, o recorrente, erradamente, indicou o artigo 4º em vez do artigo 12º, nº 2. Contudo, tal erro não impediu o Tribunal da Relação de Lisboa de apreciar a questão de constitucionalidade suscitada, já que da actuação processual do recorrente resultou com suficiente clareza a norma cuja conformidade à Constituição foi questionada. A questão de constitucionalidade normativa foi, portanto, e não obstante o lapso formal, suscitada de forma suficientemente clara e perceptível.
Há assim que concluir que o Tribunal Constitucional deve tomar conhecimento do objecto do presente recurso.
B A questão de constitucionalidade normativa suscitada
6. O recorrente pretende que o Tribunal Constitucional aprecie a conformidade à Constituição da norma contida no artigo 12º, nº 2, do Decreto-Lei nº 124/90, de 14 de Abril.
Na perspectiva do recorrente, tal norma, na medida em que comporta a aplicação automática da sanção acessória de inibição da faculdade de conduzir, viola o disposto nos artigos 30º, nº 4 e 27º, nº 2, da Constituição.
7. Independentemente da questão da adequada qualificação doutrinal da inibição da faculdade de conduzir, e não obstante o legislador a designar como sanção acessória, é da análise da sua conformação legal que há-de resultar uma eventual caracterização daquela sanção como efeito automático da pena, em contradição com o artigo 30º, nº 4, da Constituição.
Admitindo que a faculdade de conduzir veículos automóveis é um direito civil, é certo que a perda desse direito é uma medida que o juiz aplica e gradua dentro dos limites mínimo e máximo previstos, em função das circunstâncias do caso concreto e da culpa do agente, segundo os critérios do artigo 71º do Código Penal. Poder-se-á, assim, dizer que o juiz não se limita a declarar a inibição como medida decorrente de forma automática da aplicação da pena, com mero fundamento na lei (no caso em análise a decisão do Tribunal Judicial de Vila Franca de Xira demonstra que não houve aplicação automática - cf. fls. 4 e ss. -, circunstância claramente constatada pelo acórdão da Relação de Lisboa, na parte transcrita).
A circunstância de ter sempre de ser aplicada essa medida, ainda que pelo mínimo da medida legal da pena, desde que seja aplicada a pena principal de prisão ou multa, não implica, ainda assim, neste caso, colisão com a proibição de automaticidade. A adequação da inibição de conduzir a este tipo de ilícitos revela que a medida de inibição de conduzir se configura como uma parte de uma pena compósita, como se de uma pena principal associada à pena de prisão se tratasse, em relação à qual valem os mesmos critérios de graduação previstos para esta última.
Com efeito, a aplicação da inibição de conduzir fundamenta-se, tal como a aplicação da pena de prisão ou multa, na prova da prática do facto típico e ilícito e da respectiva culpa, sem necessidade de se provarem quaisquer factos adicionais.
Atenta a natureza da infracção, com a inerente perigosidade decorrente dessa conduta, surge como adequada e proporcional a sanção de inibição de conduzir.
É verdade que o que está em causa no presente recurso é a aplicação da medida de inibição da faculdade de conduzir num caso de recusa a exame de pesquisa de álcool por condutor que contribuiu para acidente de viação e não num caso de condução de veículo sob a influência de álcool. Trata-se, contudo, de uma conduta que revela um grau de perigosidade relativamente aos valores de segurança rodoviária que justifica, igualmente, a medida de inibição da faculdade de conduzir. Com efeito, não só inviabiliza o controlo pelas autoridades policiais das condições em que os condutores (que deram origem a acidentes), se encontram, impossibilitando a detecção e neutralização dos comportamentos perigosos e situações de perigo e inviabilizando a realização da disciplina rodoviária, como ainda revela o perigo de uma condução não submetida
às regras de segurança rodoviária no futuro.
Há, pois, uma conexão suficiente entre o facto perpetrado e a inibição fundamentada na natureza do ilícito: a violação intensa dos deveres do condutor e o perigo para a segurança rodoviária daí derivado, associa-se adequadamente à privação temporária da faculdade de conduzir.
8. Tal entendimento constitui aliás jurisprudência do Tribunal Constitucional adoptada a propósito da apreciação da conformidade à Constituição da norma contida no artigo 4º, nº 2, alínea a), do Decreto-Lei nº 124/90, de 14 de Abril (cf. os Acórdãos nºs 667/94, D.R., II Série, de 24 de Fevereiro de
1995; 70/95, 73/95, 143/95 e 144/95, da 2ª Secção, inéditos; e 234/95,
235/95, 236/95, 237/95, 289/95, 290/95 e 625/95, da 1ª Secção - inéditos). A semelhança entre as duas normas, demonstrada supra, permite a transposição dos argumentos dos arestos citados para os presentes autos.
9. Há assim que concluir que a norma constante do artigo 12º, nº 2, do Decreto-Lei nº 124/90, de 14 de Abril, não viola o disposto nos artigos 30º, nº 4 e 27º, nº 2, da Constituição.
III Decisão
Ante o exposto, decide-se:
a) Tomar conhecimento do objecto do presente recurso;
b) Não julgar inconstitucional a norma contida no artigo 12º, nº 2, do Decreto-Lei nº 124/90, de 14 de Abril, negando-se provimento ao recurso, confirmando-se, em consequência, o acórdão recorrido no que respeita à decisão da questão de constitucionalidade suscitada.
Lisboa, 23 de Janeiro de 1997 Maria Fernanda Palma Vitor Nunes de Almeida Armindo Ribeiro Mendes Alberto Tavares da Costa Antero Alves Monteiro Diniz Maria da Assunção Esteves José Manuel Cardoso da Costa