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Processo n.º 740/98 Conselheiro Messias Bento
Acordam, em conferência, na 3ª Secção do Tribunal Constitucional:
I. Relatório:
1. D. A. reclama do despacho da Juiz do Tribunal de Instrução Criminal de Lisboa
(de 20 de Maio de 1998) que não admitiu o recurso que, ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional, interpusera, em 3 de Abril de 1998, para este Tribunal, da decisão instrutória proferida em 25 de Março de 1998, que o pronunciou como autor material de um crime de ofensa a pessoa colectiva (previsto e punível pelas disposições conjugadas dos artigos
187º e 183º, n.º 2, do Código Penal) - decisão instrutória que lhe foi notificada no próprio dia da sua prolação (25 de Março de 1998). O despacho contra o qual foi apresentada a presente reclamação assentou, para não admitir o recurso interposto para este Tribunal, em que a decisão então impugnada ainda admitia recurso ordinário: nos termos do artigo 310º, n.º 1, do Código de Processo Penal - escreveu-se aí -, 'o que não admite recurso é tão-só a parte da decisão instrutória que pronuncia o arguido pelos factos constantes da acusação do Ministério Público'; 'a decisão tomada nos termos do n.º 3 do artigo 308º do Código de processo Penal é recorrível'. De acordo com o despacho reclamado, o recorrente (ora reclamante) não esgotou, pois, os recursos ordinários que no caso cabiam, pois a decisão instrutória tinha 'duas partes indiscutivelmente distintas', e só uma delas não admitia recurso. Da outra - daquela, precisamente, em que se decidiram ?todas as questões prévias ou incidentais que foram suscitadas pelo arguido, em obediência ao preceituado no n.º 3 do artigo 308º do Código de Processo Penal?, e que ele quis impugnar no recurso de constitucionalidade - era ainda legalmente admissível recurso ordinário. O Procurador-Geral Adjunto em exercício neste Tribunal é de parecer que a reclamação deve ser indeferida, uma vez que, quando se interpôs o recurso, ainda se não achavam esgotados os recursos ordinários que no caso cabiam, pois, 'na ordem dos tribunais judiciais, tal norma (refere-se ao artigo 310º, n.º 1, do Código de Processo Penal) vem sendo - ou tem sido - interpretada em termos de consentir a interposição de recurso do segmento da decisão em que são dirimidas
'questões prévias'.
2. Dispensados os vistos, cumpre decidir. II. Fundamentos:
3. Observação prévia: Regista-se que, no requerimento de interposição de recurso para este Tribunal, o reclamante disse que:
(a). 'a decisão recorrida não atendeu ao pedido do arguido constante do requerimento para abertura de instrução de declaração de ilegitimidade no caso concreto do Ministério Público para exercer a acção penal e/ou de verificação do impedimento do respectivo magistrado acusador, hierarquicamente dependente do queixoso, visto fazê-lo em causa própria - portanto com parcialidade e falta de isenção - contrariamente ao disposto nos artigos 2º e 219º da Constituição que respectivamente consagram a defesa do Estado de Direito e impõem àquele órgão do Estado o respeito estrito pelo princípio da legalidade'; e que, b). 'por outro lado, também não considerou nem admitiu que as normas contidas nos artigos 263º, n.º 1, e 264º, n.º 1, do Código de Processo Penal, que atribuem competência ao Ministério Público para dirigir e realizar o inquérito e deduzir acusação, naqueles casos em que os ofendidos são o próprio Ministério Público, o seu órgão superior, ou a pessoa do seu presidente, devessem ser desaplicadas ao abrigo do artigo 204º da Constituição por incompatíveis com os princípios do Estado de Direito, da legalidade e imparcialidade consagrados nos mesmos artigos 2º e 219º da Lei Fundamental, pedido que igualmente consta do requerimento para abertura de instrução'. O objecto do recurso interposto pelo reclamante é, assim, a apreciação por este Tribunal, sub specie constitutionis, dos artigos 263º, n.º 1, e 264º, n.º 1, do Código de Processo Penal, interpretados no sentido de atribuírem competência ao Ministério Público para ?dirigir e realizar o inquérito e deduzir acusação, naqueles casos em que os ofendidos são o próprio Ministério Público, o seu órgão superior, ou a pessoa do seu presidente'. Só esta é, na verdade, uma questão de inconstitucionalidade normativa. A questão da 'ilegitimidade' do Ministério Público ou do seu 'impedimento' (suposto que tem autonomia relativamente àqueloutra questão) não a coloca o reclamante como questão de inconstitucionalidade de normas jurídicas. Apenas diz que, não se declarando a 'ilegitimidade' e/ou a 'verificação do impedimento', se contraria
'o disposto nos artigos 2º e 219º da Constituição que respectivamente consagram a defesa do Estado de Direito e impõem àquele órgão do Estado o respeito estrito pelo princípio da legalidade'. Ora, nos recursos de constitucionalidade, a competência deste Tribunal é restrita às questões de inconstitucionalidade normativa. Não lhe cumpre - tem-no dito e repetido em inúmeras ocasiões - pronunciar-se sobre a inconstitucionalidade de actos do poder público de outra natureza, sejam eles actos judiciais, administrativos ou políticos. Feita esta observação prévia, vejamos, então se, no caso, se verificam os pressupostos do recurso interposto.
É que, só verificando-se eles, deve deferir-se a reclamação, a fim de o recurso ser admitido. De contrário, deve ela ser indeferida.
4. Os pressupostos do recurso:
4.1. Resulta do disposto no artigo 70º, n.º 1, alínea b), e n.º 2, da Lei do Tribunal Constitucional, que os pressupostos do recurso interposto são os seguintes:
(a). ter o recorrente suscitado, durante o processo, a inconstitucionalidade de determinada norma jurídica (ou de certa interpretação dela);
(b). ter o tribunal recorrido aplicado essa norma (ou essa interpretação) como ratio decidendi da decisão de que se recorre;
(c). não admitir a decisão recorrida recurso ordinário (exigência de exaustão dos recursos ordinários). A inconstitucionalidade há-de ser suscitada ?de modo processualmente adequado perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida, em termos de este estar obrigado a dela conhecer? (cf. artigo 72º, n.º 2, da mesma Lei). A decisão recorrida já não admite recurso ordinário, se a lei o não previr ou se foram esgotados todos os que no caso cabiam, 'salvo os destinados a uniformização de jurisprudência' (cf. citado artigo 70º, n.º 2). E, para efeitos deste n.º 2, entende-se que se acham esgotados todos os recursos ordinários,
?quando tenha havido renúncia, haja decorrido o respectivo prazo sem a sua interposição ou os recursos interpostos não possam ter seguimento por razões de ordem processual? (cf. o n.º 4 do mesmo artigo 70º).
4.2. O reclamante interpôs o recurso de constitucionalidade, sem renunciar a qualquer recurso ordinário que no caso coubesse e sem deixar decorrer o prazo para a interposição desse tipo de recurso. Não se compreenderia, aliás, que o fizesse, já que, em seu entender, ?o artigo
310º do Código de Processo Penal estabelece a irrecorribilidade (da) decisão
(instrutória) quando não for arguida a respectiva nulidade nos termos do artigo anterior, situação que se não verifica? (cf. o requerimento de interposição do recurso). O que, então, importa saber é se a decisão instrutória, no segmento que o reclamante pretende impugnar perante este Tribunal - recte, na parte em que se decidiram 'todas as questões prévias ou incidentais que foram suscitadas pelo arguido, em obediência ao preceituado no n.º 3 do artigo 308º do Código de Processo Penal' - admitia ou não recurso ordinário. Tratando-se de uma questão de interpretação de direito ordinário que, em si, não coloca uma questão de constitucionalidade, este Tribunal deve, em princípio, adoptar, quanto a ela, a posição corrente na jurisprudência dos tribunais judiciais.
4.2.1. Pois bem: a jurisprudência publicada vai no sentido de que a decisão instrutória, na parte aqui em causa (ou seja: na parte em que julgou improcedente 'a pretendida recusa de aplicação', com fundamento na sua inconstitucionalidade, 'das normas contidas nos artigos 263º e 264º do Código de Processo Penal', na interpretação atrás apontada), admite recurso ordinário. De facto, o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 7 de Abril de 1994
(publicado na Colectânea de Jurisprudência. Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, ano II, tomo II, 1994, páginas 187/189), decidiu, a este propósito, o seguinte: De concluir, pois, que o regime da irrecorribilidade da decisão instrutória aludida no artigo 310º, n.º 1, não se estende à decisão das questões prévias ou incidentais a que se refere o artigo 308º, n.º 3, do Código de Processo Penal. E, no acórdão da Relação de Lisboa, de 21 de Fevereiro de 1995 (publicado na Colectânea de Jurisprudência, ano XX, tomo 1, 1995, páginas 163/166), decidiu-se: Ora, a irrecorribilidade consagrada no artigo 310º, n.º 1, refere-se tão-só à parte da decisão instrutória que pronunciar o arguido pelos factos constantes da acusação do Ministério Público, e não aos despachos de não pronúncia ou àqueles que até o pronunciem, mas por factos de que não foi acusado pelo Ministério Público, mas apenas pelo assistente, bem como aos despachos que decidam as questões prévias ou incidentais de que se possa conhecer. Em relação a todos estes despachos vigora o princípio geral da admissibilidade do recurso consagrado no artigo 399º, segundo o qual ?é permitido recorrer dos acórdãos, das sentenças e dos despachos cuja irrecorribilidade não estiver prevista na lei?. Portanto, não estando a irrecorribilidade dos despachos que decidam as questões incidentais prevista na lei, são os mesmos susceptíveis de recurso em obediência
àquele princípio.
4.2.2. Se esta fosse uma jurisprudência assente nos tribunais judiciais, haveria que concluir que o despacho de pronúncia, no segmento que o reclamante pretende impugnar perante este Tribunal, ainda era susceptível de recurso ordinário. Dele não poderia, nesse caso, interpor-se recurso de constitucionalidade, uma vez que não tinha havido exaustão dos recursos ordinários. Acontece, no entanto, que - como se sublinhou no acórdão n.º 147/97 deste Tribunal (publicado no Diário da República; II série, de 15 de Abril de 1997) - não se pode dizer que 'essa interpretação se acha consolidada no domínio da jurisprudência dos tribunais comuns'. Assim, não sendo indiscutido na jurisprudência o entendimento de que pode recorrer-se para a Relação da parte do despacho de pronúncia que, nos termos do preceituado no n.º 3 do artigo 308º do Código de Processo Penal, decide questões prévias ou incidentais; e pertencendo, indiscutivelmente, a este Tribunal decidir definitivamente se, para efeitos de admissão do recurso de constitucionalidade, foram ou não esgotados os recursos ordinários que, no caso, cabiam; para o que ora importa (ou seja: para se decidir a reclamação), deve considerar-se que, neste processo, houve efectiva exaustão desses recursos. Dizer isto é concluir que a presente reclamação deve ser deferida. Esta conclusão impõe-se sobremaneira, depois que, no citado acórdão n.º 147/97, se deferiu a reclamação: é que a situação era, aí, em tudo idêntica à destes autos.
4.4.3. Uma nota final para dizer que não é razoável referir a jurisprudência que atrás se indicou como tratando-se de 'interpretações jurisprudenciais de índole subjectiva contra o que vem claramente escrito na lei e que como tal deve ser entendido pelo comum das pessoas'. O juiz - lembra-se a propósito - não é apenas a boca que pronuncia as palavras da lei (como pretendia MONTESQUIEU). Na sugestiva expressão de MANUEL DE ANDRADE
(Sentido e Valor da Jurisprudência, Coimbra, 1973, página 38), ele é, antes, a viva voz do Direito, a própria encarnação da lei, pois que esta só tem verdadeira existência prática no entendimento que o mesmo dela fizer, ao aplicá-la. Ora, quando os tribunais judiciais estabelecem a distinção que se referiu e concluem pela recorribilidade da parte do despacho de pronúncia que decide questões prévias ou incidentais, estão a extrair do artigo 310º, n.º 1, do Código de Processo Penal um sentido que é conforme ao princípio geral da recorribilidade das decisões judiciais desfavoráveis (consagrado no artigo 399º do mesmo Código) e que, por isso, não pode deixar de considerar-se razoável. Um sentido que, além disso, é inteiramente adequado à verdadeira razão de ser da irrecorribilidade da decisão que se limite a pronunciar o arguido pelos factos por que o Ministério Público o acusou: razão à qual não são indiferentes preocupações de celeridade processual, mas que tem essencialmente a ver com o facto de que, ?na grande maioria dos recursos de despacho de pronúncia, se tem discutido matéria de facto, em discussões que têm sede mais adequada no julgamento? (cf. MAIA GONÇALVES, Código de Processo Penal Anotado, Coimbra, 199
, 3ª edição, página 475). Ora, no recurso da parte do despacho de pronúncia que decide questões prévias ou incidentais, a discussão não gira à volta da matéria de facto, mas antes - como sublinha o Ministério Público - em torno de questões de ?natureza estritamente procedimental e jurídica?.
III. Decisão: Pelos fundamentos expostos, decide-se deferir a reclamação, devendo o despacho reclamado ser substituído por outro que admita o recurso interposto.
Lisboa, 20 de Outubro de 1998 Messias Bento José de Sousa e Brito Luis Nunes de Almeida