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Processo n.º 20/12
2.ª Secção
Relator: Conselheiro João Cura Mariano
Acordam na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional
No processo executivo n.º 221/11.9YBLSB, da 3.ª Secção, do 3.º Juízo de Execução de Lisboa, em que é Exequente o Ministério Público e Executado A., após distribuição do processo foi proferido despacho que, desaplicando o Decreto-Lei n.º 113-A/2011, de 29 de novembro, com fundamento na sua inconstitucionalidade orgânica, e julgando-se vigente o Decreto-Lei n.º 74/2011, de 20 de junho, determinou que se desse baixa do processo e se procedesse a nova distribuição do mesmo por um dos 12 Juízes de Execução da Comarca de Lisboa, previstos no referido Decreto-Lei n.º 74/2011, de 20 de junho.
O Ministério Público interpôs recurso deste despacho para o Tribunal Constitucional, nos termos do artigo 70.º, n.º 1, alínea a), da LTC, relativamente à parte em que recusou a aplicação do Decreto-Lei n.º 113-A/2011, de 29 de novembro, com fundamento na sua inconstitucionalidade orgânica.
Apresentou alegações, com as seguintes conclusões:
“Nos presentes autos, foi interposto recurso obrigatório, pelo Ministério Público, do despacho do Meritíssimo Juiz dos Juízos de Execução de Lisboa, de 20 de dezembro de 2011, em que este concluiu, “nos termos do disposto na alínea a) do nº 1 do artigo 280 da Constituição da República Portuguesa”, “pela inconstitucionalidade orgânica do Decreto-Lei nº 113-A/2011, de 29 de novembro, por violação do disposto na alínea p) do artigo 165 da Constituição da República Portuguesa”.
A Assembleia da República, nos termos da alínea c) do art. 161º e ao abrigo do disposto na alínea p) do nº 1 do art. 165º da Constituição, aprovou, através da Lei 52/2008, de 28 de agosto, uma nova Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais – LOFTJ.
O novo mapa judiciário, criado por esta lei, apostou na instalação de jurisdições especializadas a nível nacional, criando novos modelos de gestão e procedendo a uma reorganização profunda da estrutura dos tribunais.
A título experimental, o novo regime foi pensado para ser aplicado, até 31 de agosto de 2010, às comarcas Alentejo Litoral, Baixo-Vouga e Grande Lisboa-Noroeste, que funcionariam, assim, como comarcas-piloto (cfr. art. 171º, nº 1 da Lei 52/2008, artigo esse integrado no Capítulo XI desta lei, sob a epígrafe de “Disposições transitórias e finais”).
Nos termos do nº 2 do art. 171º do mesmo diploma, a instalação e o funcionamento das comarcas piloto ficaram de ser “definidos por decreto-lei a publicar no prazo de 60 dias após a publicação da presente lei”.
Por outro lado, o nº 3 da mesma disposição, veio referir que “em anexo ao decreto-lei referido no número anterior é publicado um mapa que contém a identificação das sedes do tribunal de comarca respetivo das comarcas piloto, bem como a definição dos juízos que destas constem”.
O decreto-lei, a que reporta esta disposição, veio a ser o Decreto-Lei 25/2009, de 26 de janeiro, elaborado pelo XVIII Governo Constitucional, que procedeu “à reorganização judiciária das comarcas piloto do Alentejo Litoral, Baixo Vouga e Grande Lisboa-Noroeste, dando concretização ao disposto nos nºs 2 e 3 do artigo 171º da Lei nº 52/2008, de 28 de agosto (Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais – LOFTJ)”.
Nos termos do art. 184º, nº 1, da Lei 52/2008, “a presente lei é regulamentada por decreto-lei a publicar no prazo de 60 dias após a sua publicação”, tendo, por outro lado, o nº 4 da mesma disposição vindo determinar que “até 31 de agosto de 2010, é aprovado, por decreto-lei, o mapa de divisão territorial que contenha a composição por juízos dos tribunais de comarca de todo o território nacional, como mapa III anexo à presente lei, da qual fará parte integrante”.
Relativamente à data de entrada em vigor, nos termos do art. 187º, nº 1 da Lei 52/2008, “a presente lei entra em vigor no 1º dia útil do ano judicial seguinte ao da sua publicação, sendo apenas aplicável às comarcas piloto referidas no nº 1 do artigo 171º”.
No entanto, nos termos do nº 2 da mesma disposição, “a aplicação da presente lei às comarcas piloto referidas no nº 1 do artigo 171º está sujeita a um período experimental com termo a 31 de agosto de 2010”, sendo certo, por outro lado, que, nos termos do nº 3 da mesma disposição, “a partir de 1 de setembro de 2010, tendo em conta a avaliação referida no artigo 172º, a presente lei aplica-se a todo o território nacional”.
Assim, muito embora a Lei 52/2008 devesse entrar, teoricamente, em vigor no 1ª dia útil do ano judicial seguinte ao da sua publicação, tal entrada em vigor ficou, por um lado, condicionada, quanto às comarcas piloto, à publicação de decreto-lei de regulamentação (cfr. art. 187º, nº 1 da referida lei) – o Decreto-Lei 25/2009, de 26 de janeiro, atrás referido -, e, por outro lado, quanto às restantes comarcas, à publicação de um decreto-lei regulamentador (cfr. art. 187º, nºs 3 e 4 da mesma lei).
Posteriormente, a Lei 3-B/2010, de 28 de abril – Lei de Orçamento de Estado para 2010 (cfr. art. 162º desta lei) -, publicada quando ainda se encontrava em funções o XVIII Governo Constitucional, veio alterar os números 3, 4 e 5 do art. 187º da Lei 52/2008, pelo que, em resultado desta lei:
- a Lei 52/2008 continuaria a aplicar-se às comarcas piloto, a partir de 1 de setembro de 2010, uma vez que, inicialmente, o período experimental apenas estava previsto para vigorar até 31 de agosto de 2010;
- a reorganização judiciária do país iria prosseguir, mas de forma faseada, ao abrigo da mesma Lei 52/2008;
- o processo de reorganização judiciária deveria estar concluído apenas a 1 de setembro de 2014;
- para o efeito, no seguimento da avaliação referida no art. 172º da Lei 52/2008, a aplicação faseada da reforma, pelo Governo, seria executada através de decreto-lei, que definiria as comarcas a instalar em cada fase;
- consequentemente, os mapas anexos à Lei 52/2008 apenas entrariam em vigor a partir de 1 de setembro de 2014, com exceção do mapa II, que entraria em vigor de forma faseada, à medida que a respetiva comarca fosse instalada.
Continuamos sempre, porém, no âmbito da execução da nova Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais – LOFTJ, aprovada pela Lei 52/2008, como iniludivelmente decorre das expressas, e sucessivas referências a esta Lei, acabando, assim, a principal alteração por ser o prazo para implementação da nova reorganização judiciária, que foi estendido por mais 4 anos: este prazo passou, assim, de 1 de setembro de 2010, para 1 de setembro de 2014.
O Decreto-lei 74/2011, de 20 de junho, igualmente elaborado pelo XVIII Governo Constitucional, veio, entretanto, alargar o novo mapa judiciário, criado pela Lei 52/2008, às comarcas da Cova da Beira e de Lisboa;
Como razões determinantes do alargamento do mapa judiciário, a estas duas novas comarcas, foram apontadas as seguintes:
- os compromissos assumidos pelo Estado Português, no quadro do programa de apoio financeiro a Portugal;
- a necessidade de acelerar, em consequência, a implementação do novo modelo organizativo;
- a preocupação de combater a morosidade processual e assegurar a liquidação de processos pendentes;
- o peso específico da comarca de Lisboa, em termos de pendências processuais, pelo que a sua reorganização se revelava prioritária;
- a preocupação de dar seguimento às conclusões dos estudos efetuados, conclusões essas corroboradas pelo debate público subsequente;
- assim, em 2011, com o alargamento do novo mapa judiciário às duas novas comarcas – Lisboa e Cova da Beira -, ficariam abrangidos mais de 37% dos processos tramitados no território nacional.
Da leitura do Decreto-Lei 74/2011 resulta, por outro lado, que:
- o Decreto-Lei 74/2011 entrou em vigor no dia 21 de junho de 2011 (cfr. art. 41º do referido diploma);
- a extinção de círculos, comarcas, varas e juízos, nele prevista, apenas teria, no entanto, efeito a partir de 1 de dezembro de 2011 (cfr. art. 36º, nº 1 do mesmo diploma);
- até à instalação das novas comarcas e juízos, a competência, conferida pela Lei nº 3/99, de 13 de janeiro, às comarcas e tribunais objeto do Decreto-Lei 74/2011, mantinha-se (cfr. art. 36º, nº 2 do mesmo diploma);
- por último, as comarcas e juízos previstos no Decreto-Lei 74/2011, apenas se consideravam instalados e convertidos a partir de 1 de dezembro de 2011.
Posteriormente, um novo Governo – ou seja, o atual, o XIX Governo Constitucional – veio elaborar e publicar o Decreto-Lei nº 113-A/2011, de 29 de novembro, que expressamente revogou o Decreto-Lei 74/2011, de 20 de junho (cfr. art. 1º, nº 1 do primeiro diploma).
O Decreto-Lei 74/2011, muito embora tivesse entrado em vigor em 21 de junho de 2011, viu, no entanto, os seus efeitos práticos, quanto à extinção de círculos, comarcas, varas e juízos, bem como à instalação de novas comarcas e juízos, diferidos para o dia 1 de dezembro de 2011.
O que significa, na prática, que o Decreto-Lei 74/2011, em matéria de alargamento do novo mapa judiciário às comarcas de Lisboa e Cova da Beira, não chegou a produzir efeitos, uma vez que foi revogado em 29 de novembro de 2011, pelo Decreto-Lei 113-A/2011, que entrou em vigor logo no dia seguinte, ou seja, a 30 de novembro (cfr. art. 13º deste último diploma).
Ou seja, antes de 1 de dezembro do mesmo ano, data a que se reportava, como se disse, o Decreto-Lei 74/2011.
Relativamente às razões, que terão determinado a publicação do Decreto-Lei 113-A/2011, pode retirar-se, da leitura do respetivo preâmbulo, que:
- se está, ainda, e sempre, no âmbito da execução da Lei 52/2008, nova Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais (LOFTJ);
- o novo modelo de gestão e de divisão territorial, previsto na referida Lei, começou a ser implementado em abril de 2009, a título experimental, em 3 comarcas piloto: Alentejo Litoral, Baixo Vouga e Grande Lisboa-Noroeste;
- o Decreto-Lei 74/2011, de 20 de junho, previu o alargamento do novo modelo de gestão e divisão territorial a duas novas comarcas: Lisboa e Cova da Beira;
- este alargamento, nos termos da redação inicial do Memorando de Entendimento celebrado entre o Estado Português, a Comissão Europeia, BCE e FMI (ponto 7.4), estava previsto para ter lugar até ao final do ano de 2011;
- no entanto, na sequência da primeira revisão do referido Memorando de Entendimento, ocorrida em 1 de setembro de 2011, esta matéria foi eliminada, “deixando-se ao Governo uma maior amplitude para poder repensar o sistema atual e proceder às reformas consideradas adequadas”;
- o atual Governo – XIX Governo Constitucional – não deixou de reconhecer que “a especialização da oferta judiciária e o novo conceito de gestão apresentam-se como elementos positivos do modelo de organização judiciária de 2008, o que justifica a sua manutenção e reforço”;
- tal pressupõe que a reorganização judiciária, definida pela Lei 52/2008 deverá prosseguir, pelo que o Decreto-Lei 113-A/2011 previu a continuação da extinção de diversas Varas e Juízos em diversos pontos do país, “por se verificar que não existe um movimento processual significativo que justifique a existência destas estruturas”;
- o objetivo decorrente de tal extinção será o de “realocar os recurso humanos e materiais libertados aos tribunais onde os mesmos se revelem mais necessários, bem como, eventualmente, estabelecer equipas especializadas que permitam dar uma melhor resposta ao compromisso estabelecido no referido Memorando de Entendimento de eliminar as pendências judiciais até ao final do 1º semestre de 2013”;
- para além disso, uma vez que “a nova organização judiciária ainda não ultrapassou a fase piloto”, o Governo ponderou a necessidade de reequacionar “globalmente a malha judiciária, no sentido de se criar uma estrutura de tribunais mais simplificada, sem complexidades inúteis e assente em territorialidades sedimentadas pela história e entendíveis pela generalidade da população”;
- isso poderá significar a conveniência em se abandonar a “matriz territorial Unidades Territoriais Estatísticas de Portugal (NUT)” e “de se avaliar o mapa judiciário de forma articulada com as linhas mestras da revisão do processo civil, em curso, garantindo que as duas reformas constituam um todo harmonioso”;
- nessa medida, o Governo entendeu mais adequado “suster a instalação das comarcas de Lisboa e da Cova da Beira, até que se encontre definido e consensualizado o novo paradigma de organização judiciária”;
- tudo isto, porém, e sempre, volta a repetir-se, no âmbito da execução da Lei 52/2008, como é expressamente reconhecido pelo diploma em apreciação, o Decreto-Lei 113-A/2011.
O digno magistrado judicial, autor do despacho recorrido, procedeu à análise das alterações legislativas relativas à nova Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais, aprovada pela Lei 52/2008, de 28 de agosto, lei, essa, que considerou, por analogia com o Decreto-Lei 186-A/99, de 31 de maio, “uma Lei de Bases que consagra os princípios vetores ou das bases de um regime jurídico, in casu, de Organização e de Funcionamento dos Tribunais Judiciais”.
No seu entender, o Decreto-Lei 74/2011, de 20 de junho, veio, assim, “desenvolver” os princípios constantes da Lei 52/2008.
O mesmo aconteceu, também, com o Decreto-Lei 113-A/2011, de 29 de novembro, considerando, no entanto, o digno magistrado recorrido, que este diploma não veio desenvolver o regime jurídico definido pela Lei 52/2008, nem respeitar as bases nele consagradas.
Com efeito, “o Governo abandonou a organização judiciária criada pela Lei nº 52/2008, de 28 de agosto e já implementada pelos Decretos-Lei acima referidos, reequacionando «(…) a malha judiciária (…)»”.
Assim, o Governo, “ao revogar o Decreto-Lei nº 74/2011, de 20 de junho extingue duas comarcas recém-criadas – Cova da Beira e Lisboa -, num sentido divergente e não convergente à Lei de Base – Lei nº 52/2008, de 28 de agosto, versando sobre matéria evidentemente de organização e competência dos tribunais”.
Ou seja, invertendo a lógica legislativa prosseguida até então, “o atual legislador produz um ato normativo, por certo não fundado em lei de autorização (inexistente e não invocada), que também não desenvolve a Lei de Bases. Admitindo que a «(…) especialização da oferta judiciária e o novo conceito de gestão apresentam-se como elementos positivos do modelo de organização judiciária de 2008, o que justifica a sua manutenção e reforço», o legislador abandona a organização judiciária assente na matriz territorial Unidades Territoriais Estatísticas de Portugal III, procurando criar um contexto que propicie uma organização judiciária de base territorial sequer ainda sufragada pela Assembleia da República”.
Considerou, por isso, o digno magistrado judicial recorrido:
“Ora, salvo melhor opinião, se não restam dúvidas que o Decreto-Lei nº 74/2011, de 20 de junho respeita, observa e corresponde ao enunciado no nº 4 do artigo 187 da Lei nº 52/2008, de 28 de agosto, já o mesmo não se poderá dizer do Decreto-Lei nº 113-A/2011, de 29 de novembro que não respeita, não observa e não corresponde aos decretos-leis enunciados nos artigos 171, nº 2, 184, nº 1 e 4 e 187, nº 4, todos da Lei nº 52/2008, de 28 de agosto.
Assim sendo, como parece evidente, o mesmo não desenvolve a Lei de Bases, não tem contemplação legal que observe os poderes constitucionalmente conferidos ao Governo, sobre a matéria, quando desacompanhados de lei de autorização ou lei de bases.
Dito de outra forma, a Lei nº 52/2008, de 28 de agosto, porque versa sobre matéria da reserva relativa da Assembleia da República, apenas conferiu ao Governo poderes legislativos de desenvolvimento naqueles quatro domínios que careciam de desenvolvimento, por conseguinte, tudo quanto se encontre à sua margem, não se encontra a coberto do seu manto, como parece não estar o Decreto-Lei nº 113-A/2011, de 9 de novembro, apesar de invocá-la para nela acolher proteção.”
Concluiu, assim, o digno magistrado judicial:
“O vício resultante da desconformidade dos decretos-leis de desenvolvimento com os parâmetros legais superiores (leis de bases) poderá originar uma violação direta da Constituição (inconstitucionalidade orgânica), quando versar sobre matéria da competência relativa da Assembleia da República, ou uma violação direta da lei de valor superior, que nos reconduzirá ao vício de ilegalidade acima referido.
Pelo exposto, pugnando pela inconstitucionalidade orgânica do Decreto-Lei nº 113-A/2011, de 29 de novembro, por violação do disposto na alínea p) do nº 1 do artigo 165 da Constituição da República Portuguesa, recuso a sua aplicação nos termos do disposto na alínea a) do nº 1 do artigo 280 da Constituição da República Portuguesa.
Julgo vigente o Decreto-Lei nº 74/2011, de 20 de junho, porquanto por aquele não poder ter sido revogado.
Consequentemente, determino que, após trânsito, se dê baixa ao processo e se proceda à respetiva distribuição por um dos 12 (doze) juízes do Juízo de Execução da Comarca de Lisboa – cfr. artigos 209, 210, 220, alínea a), todos do Código de Processo Civil, anexo I e artigos 13, 15, 17, 19 e 37 do Decreto-Lei nº 74/2011, de 20 de junho.”
Crê-se, contudo, que a argumentação do digno magistrado recorrido não deverá proceder.
Desde logo, tem um vício insuperável na sua génese: o de qualificar como lei de bases uma lei que, como tal se não identifica, apenas por recurso a analogia com um outro diploma anterior, entretanto revogado (o Decreto-Lei 186-A/99, de 31 de maio), que se ocupava de matéria próxima.
Daí decorre toda a construção posterior do raciocínio do despacho recorrido.
Ora, se se considerar que tal argumento não tem razão de ser, todo o edifício acabará por ruir.
A Lei 52/2008, de 28 de agosto - emanada da Assembleia da República - aprovou uma nova Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais, tendo o Governo ficado encarregue de proceder à sua posterior execução, através da adoção de sucessivos diplomas legislativos (decretos-leis), quer em matéria de definição dos tribunais envolvidos e da sua reorganização, quer de prazos de execução.
O novo mapa judiciário, criado por esta lei, apostou na instalação de jurisdições especializadas a nível nacional, criando novos modelos de gestão e procedendo a uma reorganização profunda da estrutura dos tribunais.
No entanto, o regime foi, desde o primeiro momento, pensado para ser paulatinamente aplicado, pelo que se iniciou, a título experimental, em algumas comarcas piloto, prevendo-se, posteriormente, em função da avaliação de tais experiências piloto, a sua aplicação progressiva a todo o território nacional.
Muito embora caiba, fundamentalmente, ao Governo proceder à avaliação do regime experimental e definir a forma como a nova reorganização judicial se deverá processar ao longo do país, a Assembleia da República continuou a ter intervenção neste processo, designadamente definindo, através da Lei 3-B/2010, de 28 de abril – Lei de orçamento de Estado para 2010 -, a prossecução da reforma nas comarcas piloto anteriormente escolhidas e a definição do prazo de conclusão da reforma para 1 de setembro de 2014.
Por outro lado, o Governo – através dos XVIII e XIX Governos Constitucionais - teve necessidade de negociar a reforma judiciária com a “Troika”, bem como redefinir, com a mesma entidade, os respetivos prazos de execução.
Nada mais natural, por isso, que a reforma em curso tenha avanços e recuos e careça de adequada ponderação, antes de ser, finalmente, estendida a todo o território nacional.
Também nada mais natural, por outro lado, que a matriz territorial da reforma possa ser repensada, de acordo com a experiência colhida nas comarcas piloto e as sugestões recebidas dos diversos operadores judiciários e de outras entidades, envolvidas ou preocupadas com a mesma reforma, designadamente autarquias locais.
Isso não significa que a reforma seja interrompida, ou que se trate de uma outra reforma.
Significa, apenas, que a reforma prosseguirá nas restantes valências: ponderação da criação de jurisdições especializadas e de novos modelos de gestão, deixando-se a escolha das novas comarcas para fase ulterior.
O Decreto-Lei 113-A/2011, de 29 de novembro, ao revogar o Decreto-Lei 74/2011, de 20 de junho, limitou-se, assim, a definir que a extinção e instalação das comarcas e juízos previstos neste último diploma – que deveria ter lugar a 1 de dezembro de 2011 - já não ocorreria nos moldes previstos.
Nessa medida, a instalação das comarcas de Lisboa e da Cova da Beira foi, para já, sustida – embora não necessariamente abandonada - “até que se encontre definido e consensualizado o novo paradigma de organização judiciária”.
Entende, pois, este Ministério Público, que os critérios interpretativos utilizados, pelo digno magistrado judicial, no despacho recorrido, de 20 de dezembro de 2011, acabaram por conduzir a um resultado que não reflete, adequadamente, o sentido da evolução legislativa verificada.
Conclui-se, por isso, pelo deferimento do interposto recurso de constitucionalidade, com a consequente revogação do despacho recorrido, por se não verificar, nos presentes autos, nenhuma inconstitucionalidade orgânica que obste à aplicação, pelo tribunal a quo, do Decreto-Lei 113-A/2011, de 29 de novembro.”
Fundamentação
1. Delimitação do objeto do recurso
A decisão recorrida, na sua parte decisória, declarou recusar-se a aplicar o Decreto-Lei n.º 113-A/2011, de 29 de novembro, por considerar que o mesmo sofria de inconstitucionalidade orgânica, por violação da reserva legislativa da Assembleia da República consagrada no artigo 165.º, n.º 1, alínea p), da Constituição.
Da sua leitura, porém, verifica-se que essa recusa é apenas dirigida à parte daquele diploma que procede à revogação do Decreto-Lei n.º 74/2011, de 20 de junho, ou seja ao n.º 1, do seu artigo 1.º, pelo que o objeto deste recurso deve cingir-se a este preceito.
2. Do mérito do recurso
2.1. Enquadramento legislativo
Para melhor percebermos e nos pronunciarmos sobre o mérito deste recurso convém proceder ao enquadramento legislativo deste diploma, aproveitando a descrição pormenorizada constante das alegações apresentadas pelo Recorrente.
A Assembleia da República, invocando a alínea c), do artigo 161.º, da Constituição, aprovou a Lei n.º 52/2008, de 28 de agosto, uma nova Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais (LOFTJ) que veio revogar a anterior Lei n.º 3/99, de 13 de janeiro (artigo 186.º, alínea d).
O novo mapa judiciário, criado por esta lei, procedeu a uma reorganização profunda da estrutura dos tribunais que visou, nas palavras dos seus preponentes, aumentar a eficiência da organização judiciária com a implementação de um novo modelo de gestão do sistema, e adequar as respostas dos tribunais à nova realidade da procura judicial, com base numa matriz territorial que assegurasse os princípios da proximidade e da eficácia e celeridade da resposta aos cidadãos e às empresas (preâmbulo da Proposta de Lei n.º 187/X)
Relativamente à data da entrada em vigor deste diploma, o seu artigo 187º, dispôs que “a presente lei entra em vigor no 1º dia útil do ano judicial seguinte ao da sua publicação, sendo apenas aplicável às comarcas piloto referidas no nº 1 do artigo 171.º”.
Na verdade, o novo regime foi pensado para ser aplicado a título experimental, até 31 de agosto de 2010, às comarcas do Alentejo Litoral, Baixo-Vouga e Grande Lisboa-Noroeste, que funcionariam como comarcas-piloto (cfr. artigo 171º, nº 1, da Lei 52/2008, de 28 de agosto, artigo esse integrado no Capítulo XI desta lei, sob a epígrafe de “Disposições transitórias e finais”).
Nos termos do n.º 2, do referido artigo 171.º, a instalação e o funcionamento das comarcas piloto ficaram de ser “definidos por Decreto-Lei a publicar no prazo de 60 dias após a publicação da presente lei”.
O n.º 3 do mesmo artigo veio ainda referir que “em anexo ao Decreto-Lei referido no número anterior é publicado um mapa que contém a identificação das sedes do tribunal de comarca respetivo das comarcas piloto, bem como a definição dos juízos que destas constem”.
Assim, muito embora a Lei n.º 52/2008, de 28 de agosto, devesse entrar, teoricamente, em vigor no 1ª dia útil do ano judicial seguinte ao da sua publicação, para as comarcas piloto, tal entrada em vigor ficou condicionada à publicação de decreto-lei de regulamentação, o que veio a concretizar-se com o Decreto-Lei n.º 25/2009, de 26 de janeiro, que procedeu “à reorganização judiciária das comarcas piloto do Alentejo Litoral, Baixo Vouga e Grande Lisboa-Noroeste, dando concretização ao disposto nos nºs 2 e 3 do artigo 171.º da Lei nº 52/2008, de 28 de agosto (Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais – LOFTJ)”.
Por outro lado, conforme consta do n.º 3, do referido artigo 187.º, a nova lei de organização judiciária, a partir de 1 de setembro de 2010, aplicar-se-ia a todo o território nacional, tendo em conta a avaliação que o Ministério da Justiça fizesse do impacto da sua vigência nas comarcas piloto, nos termos definidos pelo artigo 172.º.
Mas também o início desta fase estaria dependente da aprovação de um decreto-lei que regulamentasse a Lei n.º 52/2008, de 28 de agosto, nos termos definidos pelo artigo 184.º.
Posteriormente, a Lei n.º 3-B/2010, de 28 de abril – Lei de Orçamento de Estado para 2010 (cfr. artigo 162º desta lei) -, publicada quando ainda se encontrava em funções o XVIII Governo Constitucional, no seu artigo 162.º, veio alterar os números 3, 4 e 5, do artigo 187.º, da Lei n.º 52/2008, de 28 de agosto, determinando o seguinte:
- a Lei n.º 52/2008, de 28 de agosto, continua a aplicar-se às comarcas piloto, a partir de 1 de setembro de 2010, uma vez que, inicialmente, o período experimental apenas estava previsto para vigorar até 31 de agosto de 2010;
- a reorganização judiciária do país prosseguirá, mas de forma faseada, ao abrigo da mesma Lei n.º 52/2008, de 28 de agosto;
- o processo de reorganização judiciária deverá estar concluído a 1 de setembro de 2014;
- para o efeito, no seguimento da avaliação referida no artigo 172.º da Lei n.º 52/2008, de 28 de agosto, a aplicação faseada da reforma, pelo Governo, será executada através de decreto-lei, que definirá as comarcas a instalar em cada fase;
- consequentemente, os mapas anexos à Lei n.º 52/2008 de 28 de agosto apenas entrarão em vigor a partir de 1 de setembro de 2014, com exceção do mapa II, que entrará em vigor de forma faseada, à medida que a respetiva comarca seja instalada.
Em suma, alterou-se o programa de entrada em vigor da nova lei de organização judiciária, prolongando-se a fase experimental nas comarcas-piloto por mais quatro anos e optando-se por uma sua aplicação faseada ao resto do território.
Integrado nesta nova programação, o Decreto-Lei n.º 74/2011, de 20 de junho, igualmente elaborado pelo XVIII Governo Constitucional, veio, entretanto, alargar o novo mapa judiciário, criado pela Lei n.º 52/2008, de 28 de agosto, às comarcas da Cova da Beira e de Lisboa.
Foram apontadas como razões determinantes para o alargamento do mapa judiciário a estas duas novas comarcas:
- os compromissos assumidos pelo Estado Português, no quadro do programa de apoio financeiro a Portugal;
- a necessidade de acelerar, em consequência, a implementação do novo modelo organizativo;
- a preocupação de combater a morosidade processual e assegurar a liquidação de processos pendentes;
- o peso específico da comarca de Lisboa, em termos de pendências processuais, pelo que a sua reorganização se revelava prioritária;
- a preocupação de dar seguimento às conclusões dos estudos efetuados, conclusões essas corroboradas pelo debate público subsequente;
- pelo que, em 2011, com o alargamento do novo mapa judiciário às duas novas comarcas – Lisboa e Cova da Beira -, ficariam abrangidos mais de 37% dos processos tramitados no território nacional.
O Decreto-Lei n.º 74/2011, de 20 de junho, entrou em vigor no dia 21 de junho de 2011 (cfr. artigo 41º do referido diploma), mas a extinção de círculos, comarcas, varas e juízos, nele prevista, apenas teria, no entanto, efeito a partir de 1 de dezembro de 2011 (cfr. artigo 36.º, n.º 1 do mesmo diploma). Até à instalação das novas comarcas e juízos, a competência conferida pela Lei n.º 3/99, de 13 de janeiro, às comarcas e tribunais objeto do Decreto-Lei n.º 74/2011, de 20 de junho, mantinha-se (cfr. artigo 36.º, n.º 2 do mesmo diploma), apenas se considerando instalados e convertidos as comarcas e juízos previstos no Decreto-Lei n.º 74/2011, de 20 de junho, a partir de 1 de dezembro de 2011.
Posteriormente, um novo Governo – ou seja, o atual, o XIX Governo Constitucional – veio elaborar e publicar o Decreto-Lei n.º 113-A/2011, de 29 de novembro, que expressamente revogou o Decreto-Lei n.º 74/2011, de 20 de junho (cfr. artigo 1º, nº 1 do primeiro diploma).
Como o Decreto-Lei n.º 74/2011, de 20 de junho, muito embora tivesse entrado em vigor em 21 de junho de 2011, tinha os seus efeitos práticos, quanto à extinção de círculos, comarcas, varas e juízos, bem como à instalação de novas comarcas e juízos, diferidos para o dia 1 de dezembro de 2011, não chegou a produzir efeitos, em matéria de alargamento do novo mapa judiciário às comarcas de Lisboa e Cova da Beira, uma vez que foi revogado em 29 de novembro de 2011, pelo Decreto-Lei n.º 113-A/2011, de 29 de novembro, que entrou em vigor logo no dia seguinte, ou seja, a 30 de novembro (cfr. artigo 13.º deste último diploma).
Do preâmbulo deste último diploma resulta que se o alargamento do novo modelo judiciário a mais duas comarcas tinha resultado duma imposição do Memorando de Entendimento, assinado em 17 de maio de 2011 entre o Estado Português, a Comissão Europeia, o Banco Central Europeu e o Fundo Monetário Internacional, uma posterior revisão desse Memorando, que eliminou essa medida, permitiu a reponderação da sua aplicação, tendo o Governo optado por revogá-la.
Esta opção foi justificada pelo Governo com a necessidade de reequacionar globalmente a malha judiciária, no sentido de criar uma estrutura de tribunais mais simplificada, sem complexidades inúteis e assente em territorialidades sedimentadas pela história e entendíveis pela generalidade da população. Isto, apesar de considerar que a especialização da oferta judiciária e o novo conceito de gestão se apresentavam como elementos positivos do modelo de organização judiciária de 2008, justificando a sua manutenção e reforço.
No entanto, da avaliação efetuada, o Governo concluiu que a circunstância da matriz territorial Unidades Territoriais Estatísticas de Portugal (NUT) ser muito recente, sem tradições e ausente da vida corrente dos cidadãos em geral, não permitia, em muitos casos, a assimilação de centralidades «naturais», obrigando a uma seleção de sedes das NUT com pouca adesão à realidade, nomeadamente nos circuitos de mobilidade interna em cada região, o que, aliado à vantagem de se avaliar o mapa judiciário de forma articulada com as linhas mestras da revisão do processo civil, em curso, garantindo que as duas reformas constituam um todo harmonioso, justificava que se adotassem medidas no sentido de suster a instalação das comarcas de Lisboa e da Cova da Beira, até que se encontrasse definido e consensualizado o novo paradigma de organização judiciária.
2.2. Da inconstitucionalidade orgânica
A decisão recorrida, considerando a Lei n.º 52/2008, de 28 de agosto, uma lei de bases que consagrava os princípios vetores do regime jurídico da organização e do funcionamento dos Tribunais Judiciais, entendeu que o conteúdo do Decreto-Lei n.º 113-A/2011, de 29 de novembro, ao revogar o disposto no anterior Decreto-Lei n.º 74/2011, de 20 de junho, em vez de desenvolver aqueles vetores, como era sua obrigação constitucional, contrariou-os, pelo que sofre de inconstitucionalidade orgânica, uma vez que legislou inovatoriamente em matéria que competia à Assembleia da República.
É certo que, nos termos do artigo 112.º, n.º 2, da Constituição, um decreto-lei que tenha como parâmetro normativo de referência uma lei de bases, em matéria reservada à Assembleia da República, deve subordinar-se aos seus princípios e directrizes. Contudo, não há qualquer razão para qualificar a Lei n.º 52/2008, de 28 de agosto, como uma lei de bases. Nem esta se intitula como tal, nem as características do seu complexo normativo permitem tal qualificação.
Na verdade, apenas deve ser considerada uma lei de bases aquela que se resuma à enunciação das opções político-legislativas fundamentais na matéria em causa, através da formulação de princípios normativos, diretrizes ou critérios gerais, contidos em disposições de reduzida densidade, dotados de um grau de indeterminação tal que exija necessariamente o seu desenvolvimento e concretização através de uma atividade legislativa subsequente.
Ora, conforme resulta da leitura da Lei n.º 52/2008, de 28 de agosto, esta não se limitou a enunciar os grandes princípios da política legislativa em matéria de organização e funcionamento dos tribunais judiciais, tendo ela própria definido com o pormenor necessário a estrutura dessa organização e o modo de funcionamento dos tribunais judiciais. Aliás não existindo na redação da alínea p), do n.º 1, do artigo 165.º, da Constituição, qualquer referência a bases, nunca poderia o legislador parlamentar optar por apenas restringir a sua intervenção a uma lei de simples enunciação de princípios normativos, uma vez que estamos num domínio em que existe uma reserva de densificação total (vide, neste sentido, Jorge Miranda, em “Manual de direito constitucional”, tomo V, pág. 377-378, da 3.ª ed., da Coimbra Editora, e Blanco de Morais, em “Curso de direito constitucional”, tomo I, pág. 326, da ed. de 2008, da Coimbra Editora)
Contudo, o facto de não se ter aderido à qualificação da Lei n.º 52/2008, de 28 de agosto, como lei de bases, não invalida que o decreto-lei aqui sob fiscalização não deva respeitar a reserva da competência legislativa da Assembleia da República estabelecida na alínea p), do n.º 1, do artigo 165.º, da Constituição.
Conforme resulta da descrição que acima se fez das normas específicas da Lei n.º 52/2008, de 28 de agosto, sobre a sua aplicação no tempo, o regime por ela consagrado, relativo à organização e funcionamento dos tribunais judiciais, foi instituído numa primeira fase, a título experimental, em determinadas comarcas piloto, visando-se testar ou ensaiar a aplicação das suas normas, limitando tal aplicação no tempo e no espaço, de modo a permitir uma avaliação dos efeitos e resultados dela decorrentes.
Este «método» de legislação tem na sua base uma indecisão do legislador, que adota uma atitude de prudência.
Como se disse no Acórdão n.º 69/2008 deste Tribunal (acessível em www.tribunalconstitucional.pt) relativamente a uma lei que adotou igual metodologia, “a «normação experimental» pressupõe antes do mais um legislador indeciso, ou ao qual faltam certezas quanto à regulação definitiva a adotar para o cumprimento de certas políticas públicas ou para a disciplina de certos domínios da vida coletiva. Ao invés, por isso, de esperar que a adequação do Direito às realidades se faça, na continuidade, pela jurisprudência, ou na descontinuidade, por reformas legislativas sucessivas – como sucede com o método, chamemos-lhe assim, ‘clássico’ de normação –, o «legislador experimental» testa ou ensaia primeiro, num espaço e num tempo limitados, a aplicação e os efeitos da aplicação das suas normas, a fim de evitar os riscos que, em situações de elevado grau de incerteza quanto aos efeitos de certa regulação, geraria porventura a adoção de sistemas normativos ‘definitivos’. (Pierre-Henri Bolle, «Lois Expérimentales et Droit Pénal», em Boletim da Faculdade de Direito, vol. LXX, 1994, pp. 321-335). Assim, o legislador que «experimenta» – tal como o legislador que toma ‘medidas’ para situações que não são nem gerais nem abstratas – parece ser movido por uma racionalidade técnico-económica que será diversa daquela que orienta os métodos ‘comuns’ de legiferação.”
Daí que o artigo 187.º, da Lei n.º 52/2008, de 28 de agosto, na redação que lhe foi conferida pelo artigo 162.º, da Lei n.º 3-B/2010, de 28 de abril, tenha determinado que a entrada em vigor da nova organização judiciária, ao restante território nacional, para além das comarcas piloto, se faria de forma faseada, durante um período de 4 anos, a partir de 1 de setembro de 2010, tendo incumbido o Governo de executar essa aplicação faseada, através de decretos-lei que definissem as comarcas a instalar em cada fase, tendo em atenção a avaliação do impacto da sua vigência nas comarcas piloto, a efetuar nos termos do artigo 172.º, do mesmo diploma.
O legislador parlamentar remeteu, pois, para o Governo, a tarefa de avaliar os resultados da aplicação da lei nas comarcas piloto e, de acordo com a avaliação efectuada, faseadamente, durante um período de quatro anos, determinar a sua aplicação a outras comarcas do país.
Esta atividade legislativa do Governo não é conformadora do regime da organização e funcionamento dos tribunais judiciais, situando-se claramente num domínio de mera execução e aplicação do regime consagrado na Lei n.º 52/2008, de 28 de agosto, pelo que se encontra fora da reserva relativa de competência legislativa da Assembleia República estabelecida na alínea p), do artigo 165.º, da Constituição, sendo, por isso, legítima a remissão para o exercício das funções legislativas do Governo.
E o Decreto-Lei n.º 113-A/2011, de 29 de novembro, ao revogar o Decreto-Lei n.º 74/2011, de 20 de junho, impedindo que se efetivasse o alargamento do novo mapa judiciário às comarcas de Lisboa e Cova da Beira, o qual havia sido determinado por este último diploma, mantém-se no referido domínio da mera execução e aplicação do regime consagrado na Lei n.º 52/2008, de 28 de agosto, não invadindo a competência legislativa reservada ao legislador parlamentar nesta matéria.
Na verdade, o diploma sob fiscalização em nada altera a estrutura judiciária construída pela Lei n.º 52/2008, de 28 de agosto, tendo apenas recuado na sua aplicação a novas comarcas, a qual havia sido determinada por um anterior decreto-lei, emitido em cumprimento de acordo de apoio financeiro a Portugal que incluía uma cláusula nesse sentido, após o Estado Português se ter libertado desse específico compromisso e o Governo ter entendido que existiam elementos fornecidos durante a fase experimental que aconselhavam uma reponderação da malha judiciária.
Note-se que, apesar de estar subjacente ao Decreto-Lei n.º 113-A/2011, de 29 de novembro, a necessidade de uma redefinição da estrutura judiciária criada pela Lei n.º 52/2008, de 28 de agosto, ele não procede a qualquer alteração dessa estrutura, limitando-se a suster a sua aplicação às comarcas de Lisboa e da Cova da Beira, até que se encontre definido e consensualizado o novo paradigma de organização judiciária. E tendo intervindo apenas no campo executivo da aplicação no tempo e no espaço daquela lei, manteve-se fora da área reservada à intervenção legislativa da Assembleia da República, não sofrendo, por isso, do vício da inconstitucionalidade orgânica.
Assim se concluindo, deve o recurso ser julgado procedente.
Decisão
Pelo exposto, decide-se:
a) Não julgar inconstitucional o artigo 1.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 113-A/2011, de 29 de novembro de 2011;
b) e consequentemente, julgar procedente o recurso interposto pelo Ministério Público, determinado a reforma da decisão recorrida em conformidade com o precedente julgamento de não inconstitucionalidade.
Sem custas.
Lisboa, 28 de março de 2012.- João Cura Mariano – Catarina Sarmento e Castro – Joaquim de Sousa Ribeiro – Rui Manuel Moura Ramos.