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Processo nº 179/95
1ª Secção Rel. Cons. Tavares da Costa
Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional
I
1.- A. intentou, na comarca de Lisboa, acção de divórcio litigioso contra seu marido, B., com fundamento no disposto no artigo
1779º do Código Civil - violação culposa dos deveres conjugais - e o objectivo de, por esse meio, obter a dissolução do casamento.
O réu, frustrada a tentativa de conciliação, contestou o pedido e, por sua vez, em reconvenção, pediu que seja decretado o divórcio mas com base na motivação por si alegada, de modo a declarar-se a autora como cônjuge culpado, para os efeitos do artigo 1787º do Código citado.
Na resposta, defendeu a autora a improcedência do pedido reconvencional, prosseguindo os autos seus termos, com vicissitudes várias que ora não interessa considerar.
Procedeu-se a julgamento e, na sessão de 21 de Janeiro de 1991, a autora deduziu articulado superveniente, invocando o disposto no artigo 507º do Código de Processo Civil (CPC), juntando documentos e arrolando testemunhas, articulado este que, não obstante a oposição do réu-reconvinte, veio a ser admitido (despacho da mesma data - a fls. 135-v - mantido posteriormente, após a análise da referida oposição, na sessão de 4 de Fevereiro, a fls. 152-v.).
Do assim decidido interpôs o réu recurso, admitido como de agravo, a subir deferidamente com o da decisão final, atribuindo-se-lhe efeito meramente devolutivo (despachos de fls. 154 e 217).
Seguidamente, encerrada a fase de discussão e assente a matéria de facto, por acórdão de 22 de Maio seguinte (a fls. 165 e segs.), foi lavrada sentença que julgou improcedente, por não provado, o pedido reconvencional, dele se absolvendo a autora, e procedente, por provada, a acção, desse modo se decretando o divórcio e declarando-se dissolvido o casamento, sendo o réu considerado o único culpado pela dissolução (fls. 171 e segs.).
Inconformado, recorreu este, de apelação, para o Tribunal da Relação de Lisboa, o que foi recebido, com efeito suspensivo
(despachos de fls. 185 e 217).
A Relação, por acórdão de 29 de Abril de 1993 (a fls. 246 e segs.) negou provimento ao agravo - assim mantendo o decidido quanto à admissão do articulado superveniente - e julgou improcedente a apelação, confirmando, por conseguinte, a decisão recorrida.
Recorreu, então, o réu-reconvinte para o Supremo Tribunal de Justiça e, nas respectivas alegações, concluíu do seguinte modo, quanto à admissibilidade daquele articulado:
'4º- O articulado superveniente não podia ter sido admitido por consubstanciar uma alteração da causa de pedir inadmissível em face do disposto nos artºs. 272º e 273º do CPC, constituindo entendimento diferente do artº 663º, nº 1, do CPC violação do princípio da estabilidade da instância e ofensa do princípio constitucional da protecção da confiança, o que, nessa hipótese, se argui para todos os efeitos legais.
5ª- O articulado superveniente não poderia ainda ter sido admitido por assentar em factos constantes de fotografias obtidas pela A. de forma ilegítima e sem autorização do R. que as detinha nem das pessoas delas constantes, sendo certo que tais fotografias retratam pessoas despidas ou em situações íntimas, pelo que a aceitação de tal articulado violou o direito à imagem e à reserva da intimidade da vida privada consagrados nos artº 79º do C.C. e nos artºs. 26º e 34º da Constituição.
6º- Entendimento diferente do artº 663º, nº 1, do CPC violaria tais princípios constitucionais, o que se argui para todos os efeitos legais'.
E mais adiante:
'11ª- Quanto ao articulado superveniente, não se aceita que possam ser apreciadas provas obtidas e utilizadas em termos que consubstanciam violação de direitos fundamentais, como já acima se referiu, arguindo-se a inconstitucionalidade do entendimento de quaisquer normas processuais que se julgue poderem permiti-lo, designadamente do preceito que admite genericamente a prova documental, isto é, do artº 523º do CPC'.
O Supremo Tribunal de Justiça, por acórdão de 5 de Maio de 1994 (fls. 310 e segs.) negou a revista.
Abordando o problema da admissibilidade do articulado superveniente, o Supremo entendeu ter sido bem decidida a sua aceitação: o artigo 663º, nº 1, do CPC manda que a sentença tome em conta os factos constitutivos, modificativos ou extintivos do direito produzidos posteriormente à proposição da acção, 'de modo que a decisão corresponda à situação existente no momento do encerramento da discussão' (cfr., ainda, o artº
506º, nº 1, do mesmo Código) sendo certo que mais entendeu o Supremo que o factualismo alegado no articulado superveniente é passível de se integrar na causa de pedir inicialmente formulada, sem que de tal resulte qualquer alteração da mesma.
Debruçando-se, num segundo momento, sobre a alegada violação dos direitos à imagem e à reserva da intimidade da vida privada, aquele Tribunal mais entendeu, em sede de apreciação necessariamente casuística, não ser passível de censura a decisão recorrida, dado se tratar de um processo litigioso de divórcio, não sujeito a divulgação, no qual, por exigências de justiça, 'devem ser trazidos ao processo todos os elementos de prova possíveis'.
Inconformado, o réu-reconvinte recorreu simultaneamente para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do disposto no artigo
70º, nº 1, alínea b), da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, e para o Tribunal Pleno, nos termos dos artigos 763º e segs. do CPC.
O Conselheiro Relator, por despacho de 5 de Julho de 1994, admitiu o recurso para o Pleno, a subir em separado, sem efeito suspensivo (artigo 765º, nº 2, do CPC), afastando, de momento, a possibilidade de recurso para o Tribunal Constitucional.
A fls. 367-v dos autos consta a informação segundo a qual 'os autos de Pleno nº 86 658 [...] já foi julgado e transitou em julgado', após o que o Relator, por despacho de 13 de Março de 1995, recebeu o recurso para o Tribunal Constitucional (artigo 723º do CPC e 78º, nº 2, da Lei nº 28/82). E, a fls. 370 e segs., encontra-se junto aos autos cópia do acórdão do Tribunal Pleno, de 26 de Janeiro de 1995, negando a alegada oposição de acórdãos.
Recebido o recurso de constitucionalidade por despacho de 31 de Maio de 1995, neste Tribunal, alegaram oportunamente recorrente e recorrida.
Formulou o primeiro as seguintes conclusões, em síntese do alegado:
'A- Nestes autos as instâncias admitiram e valoraram determinada prova fotográfica junta pela A. para prova de factos constantes de articulado superveniente deduzido na pendência da audiência de julgamento.
B- O R. sempre sustentou a inadmissibilidade de tal prova, não só atendendo à forma da sua obtenção, como à matéria do seu conteúdo - cf. conclusões 5ª, 6ª e 10º das alegações de 6/1/94, bem como conclusões 2ª e 6ª das alegações de 14/5/92.
C- Em sentido contrário pronunciou-se o Supremo Tribunal de Justiça que julgou que num processo de divórcio 'por exigências de justiça, devem ser trazidos ao processo todos os elementos de prova possíveis'.
D- A prova em apreço foi obtida e junta aos autos mais de dois anos depois da propositura da acção de divórcio e no contexto de uma situação de separação de facto dos cônjuges.
E- A A. obteve e utilizou as fotografias em apreço através da revelação não autorizada de um rolo fotográfico que sabia pertencer ao R., o qual estava por revelar, e após o R. ter expresso preocupação acerca do mesmo e de ter efectuado diligências para o recuperar.
F- A revelação e utilização não autorizada de um rolo fotográfico pertencente a outra pessoa, nas condições descritas, compreende uma inegável violação do direito à reserva da intimidade da vida privada que o art. 26º/1 da C.R.P. consagra.
G- O direito à reserva da intimidade da vida privada de cada um dos cônjuges perante o outro não é aniquilado pelo matrimónio, sendo certo que quaisquer limitações eventualmente ditadas por essa circunstância deixam de existir perante uma situação de separação de facto e de pendência de divórcio litigioso.
H- A ilicitude da apropriação de tal material fotográfico decorre ainda da aplicação analógica ao caso dos autos das regras relativas à inviolabilidade do domicílio, da correspondência e das telecomunicações que o art. 34º da C.R.P. consagra.
I- Obtidas determinadas provas com violação de direitos fundamentais, designadamente através de abusiva intromissão na vida privada das pessoas, é intolerável a sua admissibilidade e valoração em juízo, como decorre da aplicação analógica à situação da regra do art. 32º/6 da C.R.P., que por maioria de razão não pode deixar de se estender à lide civil.
J- A proibição da admissibilidade e valoração de tais provas não cede, neste caso concreto, em função dos dados factuais existentes, por virtude de qualquer ponderação entre os interesses afectados pelo acto da obtenção da prova e os interesses da A.
L- Deve, em consequência, ser considerada inconstitucional, por violação do art. 26º/1 da C.R.P., bem como dos arts. 34º e 32º nº 6 da C.R.P., aplicados analogicamente à situação dos autos, a interpretação dada pelas instâncias recorridas aos arts. 523º e 663º do C.P.C., na parte em que tal entendimento conduziu à admissão no processo de meios de prova cuja obtenção constituiu uma abusiva intromissão na reserva da vida privada do R.
M- Por outro lado, as provas fotográficas em apreço representam pessoas nuas ou em outras situações íntimas.
N- A produção de tais provas em juízo implica uma intolerável lesão do direito à imagem das pessoas nelas retratadas e, simultaneamente, do direito à reserva da intimidade da sua vida privada, em termos que ofendem o preceituado no art. 26º/1 da C.R.P.
O- Quando se verifique que a produção dos meios de prova que as partes pretendem usar em juízo se traduz, em si mesma, num atentado a qualquer direito, liberdade ou garantia com tutela constitucional, independentemente do modo, lícito ou ilícito, como tais meios tenham sido obtidos, deve o juiz , por força do art. 18º/1 da C.R.P., rejeitar a respectiva admissão.
P- A proibição de produção de meios de prova cujo exame em juízo implique ofensa a direitos fundamentais não é afectada por quaisquer direitos das partes que com eles estejam em suposta colisão, dada a diferença entre o momento de produção e de valoração das provas e o momento em que deve ser apreciado o mérito das pretensões das partes.
Q- Finalmente, mesmo que se quisesse efectuar a apreciação de qualquer colisão de interesses, em ordem a apurar uma relação de prevalência, na situação dos autos, a análise do caso em si nunca poderia levar à afirmação da supremacia do direito de divulgar tais fotografias.
R- Deve, por isso, ser considerada inconstitucional, por violação directa do art. 26º/1 da C.R.P., bem como do art. 18º/1 da mesma C.R.P., a interpretação dada pelas instâncias recorridas aos arts. 523º e 663º do C.P.C., na parte em que tal entendimento conduziu à admissão no processo de meios de prova cuja produção implicou uma violação dos direitos fundamentais das pessoas afectadas por essa exposição.'
Por sua vez, nas respectivas contra-alegações, a recorrida disse:
'1
Não se verificam, no caso sub judice, os pressupostos legalmente exigidos para que esse Venerando Tribunal Constitucional conheça do recurso;
2
em qualquer caso, este improcede de direito;
3
o recorrente, por que falseou os factos e deduziu pretensão cuja falta de fundamento não ignorava, deve ser condenado, como litigante de má-fé, em multa e indemnização que cubra as despesas que causou, incluindo honorários do advogado a fixar segundo o prudente arbítrio do julgador.
4
Com estes fundamentos e invocando sempre o douto suprimento, se aplicará o Direito e se fará a Justiça que espera.'
Ouvido, ainda, o recorrente sobre a alegada não verificação dos pressupostos de admissibilidade do recurso e o pedido da sua condenação como litigante de má-fé veio refutar a hipotética existência de obstáculos ao conhecimento do objecto do pedido e, do mesmo passo, negar que a sua conduta processual se paute por critérios censuráveis.
Corridos que foram os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.
II
1.- A delimitação do objecto do recurso.
O réu-reconvinte recorreu para o Tribunal Constitucional do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 5 de Maio de 1994, ao abrigo do disposto na alínea b) do nº 1 do artigo 70º da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro.
O requerimento de interposição do recurso constitui o momento processual adequado para a sua correcta delimitação, nele se devendo indicar não só a alínea do nº 1 daquele artigo 70º que fundamenta a iniciativa, como, também, tratando-se da alínea b), a norma - na sua globalidade, num dado segmento ou numa certa interpretação - cuja inconstitucionalidade (ou ilegalidade) se pretende ver apreciada.
Colhe-se da leitura da peça processual apresentada que se pretende reagir, em sede de recurso de constitucionalidade, à interpretação dada por aquele Supremo Tribunal, na decisão recorrida, a duas normas do Código de Processo Civil, as normas constantes dos artigos 523º e
663º.
De acordo com o primeiro destes preceitos, os documentos destinados a fazer prova dos fundamentos da acção ou da defesa devem ser apresentados com o articulado em que se aleguem os factos correspondentes
(nº 1), se bem que o possam ser posteriormente, até ao encerramento da discussão em 1ª instância, sendo, então, a parte condenada em multa, excepto se provar que os não pôde oferecer com o articulado (nº 2).
Nos termos do segundo dos normativos em causa, respeitante à atendibilidade dos factos jurídicos supervenientes, prescreve-se dever a sentença - sem prejuízo das restrições estabelecidas noutras disposições legais, nomeadamente quanto às condições em que pode ser alterada a causa de pedir - tomar em consideração os factos constitutivos, modificativos ou extintivos do direito que se produzam posteriormente à proposição da acção, de modo que a decisão corresponda à situação existente no momento do encerramento da discussão (nº 1). O nº 2 diz-nos, por seu turno, só serem atendíveis os factos que, segundo o direito substantivo aplicável, tenham influência sobre a existência ou conteúdo da relação controvertida, acrescentando o nº 3 que a circunstância de o facto jurídico relevante ter nascido ou se haver extinguido no decurso do processo é levada em conta para o efeito da condenação em custas.
Face a este quadro normativo defende o recorrente:
a) que a interpretação dada aos artigos
523º e 663º, 'na parte em que tal entendimento conduziu à admissão no processo de meios de prova cuja obtenção constituiu uma abusiva intromissão da vida privada do R.' é inconstitucional, na medida em que viola o disposto nos artigos 26º, nº 1, 34º e 32º, nº 6 da Constituição da República (CR);
b) que a produção de meios de prova assim atentatórios de um direito, liberdade ou garantia constitucionalmente tutelado, deve ser respeitada pelo juiz, por força do artigo 18º, nº 1, da Constituição;
c) que a interpretação dada àqueles preceitos, 'na parte em que tal entendimento conduziu à admissão no processo de meios de prova cuja produção implicou uma violação dos direitos fundamentais das pessoas afectadas' é de igual modo inconstitucional, 'por violação directa', do artigo 26º, nº 1, bem como do artigo 18º, nº 1, da CR.
O objecto do recurso abrange, assim, e para utilizar as próprias palavras do recorrente, 'por um lado, a norma que, em sede geral, admite a junção pelas partes de prova documental - artº 523º do C.P.C.
-, por outro, e acessoriamente, a norma que, em sede geral, mandou atender à prova de factos supervenientes - artº 663º do C.P.C. -, em ambos os casos no segmento em que leva que possam ser admitidas tais provas sem restrições de qualquer espécie mesmo que a sua produção implique a violação dos direitos constitucionalmente consagrados, tal como o R. os identificou nestes autos'.
Será este, por conseguinte, o objecto do recurso, sobre o qual deve o Tribunal pronunciar-se, sem deixar de se sublinhar reportarem-se as questões de constitucionalidade a normas e não a decisões judiciais o que nem sempre é de fácil diferenciação, mormente quando, como é o caso, não são as normas em si que estão em causa, mas uma certa dimensão delas, numa dada óptica interpretativa. Como já se observou, tais questões podem respeitar não apenas a normas, ou a uma sua dimensão parcelar, em si considerada, mas também, e mais restritamente, à interpretação e sentido com que foram tomadas no caso concreto e aplicadas na decisão recorrida, nem sempre se recortando nitidamente a fronteira entre norma e decisão (cfr. Gomes Canotilho, 'Fiscalização da Constitucionalidade e da Legalidade, in - Dicionário Jurídico da Administração Pública, 4º vol., Lisboa, 1991, pág. 366, e Direito Constitucional, 6ª ed., Coimbra, 1993, pág. 953; J.M. Cardoso da Costa, A Jurisdição Constitucional em Portugal, 2ª ed., 1992, págs, 24 e segs. e 50 e segs.; Armindo Ribeiro Mendes, Recurso em Processo Civil, 2ª ed., Lisboa, 1994, págs. 325 e segs.. Na jurisprudência do Tribunal Constitucional, fortemente sedimentada, têm expressão, entre tantos outros, os acórdãos nºs. 26/85 e 336/85, publicados no Diário da República, II Série, de 26 de Abril de 1985 e 31 de Julho de 1995, respectivamente).
2.- A questão prévia do não conhecimento do recurso.
Defende, com efeito, a recorrida, não se congregarem os pressupostos legalmente exigidos para a admissibilidade do recurso.
Em sua tese, a matéria de constitucionalidade assume, no caso sub judice, natureza incidental, só nessa medida e enquanto tal tendo influído na decisão sobre o mérito, o que, atenta a instrumentalidade deste tipo de recurso, irrelevaria, mais não se tratando do que mera questão académica. E, a não se entender assim, de qualquer modo sempre seria a decisão ju dicial em si que se pretenderia impugnar e não quaisquer normas jurídicas, em si consideradas, numa certa leitura ou numa dada interpretação.
Não se professa, no entanto, semelhante entendimento, sem prejuízo de se reconhecer que o caso vertente não constituirá meridiana exemplaridade.
Como resulta do exame dos autos, a autora, ora recorrida, ao apresentar um articulado superveniente, acompanhado de documentos
- entre eles figurando as fotografias de fls. 125 a 133 - pretendeu demonstrar que 'também com base nos factos que nele [articulado] se contêm
[deve] ser decretado o divórcio e o Réu considerado seu único culpado [...]', para utilizar a expressão do próprio requerimento, ditado para a acta relativa à sessão de julgamento do dia 21 de Janeiro de 1991 e aí registado (fls. 134 e
135).
O Tribunal deferiu o requerido e, em consequência, aditou ao primitivo questionário novos artigos, relativos à matéria de facto supervenientemente alegada pela autora - e que integrariam os nºs. 27º a 38º do questionário - e pelo réu-reconvinte, na sua resposta - artigos 39º a
46º.
Produzida a prova, foi a matéria de facto articulada pelas partes dada como parcialmente provada - acórdão de fls. 1565 e segs. - em termos que a sentença viria a sintetizar (fls. 173 e 174), dando como assente, no tocante aos quesitos 27º a 38º:
'Para assistir à sessão de julgamento realizada em 17 de Dezembro a A. veio, expressamente, de Inglaterra.
Precisando da máquina fotográfica do casal, para, com fotografias, completar a sua tese, levou-a consigo.
Acontece que nela estava um rolo por revelar, pertencente ao R.
A A. mandou-o revelar, levantando-o em 14 de Janeiro último, data de uma sessão de julgamento.
Voltou a A. de Inglaterra em 13 de Janeiro último, agora definitivamente, para em Lisboa retomar a sua vida de docente e de arquitecta da ------.
É, então, informada, a 14 de Janeiro seguinte, da preocupação do R. pelo rolo que estava na máquina e nas diligências, através da sua advogada e de amigos do casal, para a sua recuperação.
Da revelação do rolo referido atrás, resultaram as fotografias de fls. 125, sendo a cama a do casal e os lençóis os bordados pela mãe da A.
Uma das pessoas representadas na fotografia de fls. 133 - doc. XX -
é o R.
Esta fotografia foi obtida a partir de um 'slide' produzido durante uma viagem a Itália feita pelo R. e pelas testemunhas C. e a mulher deste, a testemunha D..
A descoberta das fotografias que estão nos autos causaram perturbação à A. que, então, se empenhava nas provas do seu doutoramento em
York.'
Por sua vez, em relação aos quesitos do réu-reconvinte (39º a 46º) deu o Tribunal como provado:
'Como é do conhecimento da A. e até do conhecimento público, o R. dedicava-se à fotografia, tendo já participado em diversas exposições.
Tem, por esse motivo, um pequeno laboratório fotográfico na casa onde trabalha.
Este laboratório era utilizado pelo R. e a testemunha C..
Os negativos das fotografias de fls. 126 e segs. encontravam-se arquivados no laboratório referido.'
Pode dizer-se que o complexo fáctico apurado não terá logrado satisfazer cabalmente o que as partes - cada uma por seu lado e à sua maneira - pretendiam demonstrar. Certo é, no entanto, que a autora alcançou o fim visado ao utilizar o expediente técnico do articulado superveniente: consta expressamente da sentença que a 'A. descobre na máquina do casal as fotografias de fls. 125: uma mulher está deitada na cama do casal'.
E, desta 'espantosa realidade' (na expressão adoptada), reconhece-se ter-se gerado uma situação intolerável para a autora, fundamento essencial para se decretar o divórcio e se declarar o réu como único culpado.
Em face do exposto, improcedem as considerações da recorrida quanto ao não conhecimento do objecto do recurso pela alegada não essencialidade do problema de constitucionalidade, razão pela qual se passará a conhecer desse objecto, assim se desatendendo a questão prévia suscitada pela recorrida.
III
1.- No entender do recorrente, as provas juntas com o articulado superveniente - no que às fotografias respeita - foram obtidas de
'forma ilegítima' e sem a sua autorização. No seu ponto de vista, a revelação não autorizada do material fotográfico que detinha consubstancia um comportamento ilícito, violador do seu direito à reserva da intimidade da sua vida privada.
Nesta leitura, a interpretação da decisão recorrida quanto às normas dos artigos 523º e 663º do CPC, na medida em que se mostra irrestrita, admitindo a junção de prova documental e a atendibilidade de factos supervenientes, sem cuidar de preservar os direitos constitucionalmente tutelados, viola directamente o disposto nos artigos 26º, nº 1 e 18º, nº 1, da CR e, bem assim, o disposto nos artigos 34º e 32º, nº 6, do mesmo texto analogicamente aplicados. Na mesma perspectiva, a ilícita revelação do material fotográfico provocou, de igual modo, 'intolerável lesão' do direito à imagem das pessoas retratadas nesses documentos.
No entanto, ao debruçar-se sobre a matéria, a Relação, no seu acórdão que o Supremo confirmou, não considerou que a admissão do articulado e a correlativa junção de prova tivessem traduzido violação de qualquer desses direitos.
Assim, ponderou-se, em primeiro lugar, visarem estes, desde logo, impedir a patenteação pública do retrato de uma pessoa ou de factos da vida íntima de qualquer cidadão sem o consentimento do visado, e, a propósito, convocou-se o disposto no artigo 79º do Código Civil, cujo nº 1 proíbe que o retrato de uma pessoa possa ser exposto, reproduzido ou lançado no comércio sem o consentimento dela, o que, na tese do acórdão, não abrange a apresentação, em processo judicial e como meio de prova necessária à afirmação de um direito, de fotografias de terceiros.
A protecção desses direitos - defende-se na argumentação desenvolvida - é eficazmente assegurada pelo Código de Processo Civil que, no seu artigo 168º, restringe drasticamente a possibilidade de consulta de um qualquer processo de divórcio pendente ou arquivado - o processo só pode ser mostrado, na secretaria, às partes e seus mandatários - e que, no artigo 174º, apenas tolera a emissão de certidão de qualquer acto ou termo judicial do mesmo processo desde que o admita despacho do juiz, após justificação, em requerimento escrito, da sua necessidade.
De qualquer modo, a apresentação de fotografias, no processo, sempre estaria coonestada pelas exigências de justiça que concorrem no caso vertente, o mesmo se podendo dizer da alegação dos factos constantes do articulado superveniente.
Igualmente a ponderação da natureza do caso levaria a ter por excluídos da reserva os factos alegados, acrescentando que nem a identidade nem a 'condição' das pessoas fotografadas - para além da do ora recorrente - são determináveis.
Enfim, sempre aqueles direitos colidiriam com o direito à integridade moral da autora, que esta pretendeu salvaguardar com a alegação dos factos constantes do articulado superveniente e a apresentação de fotografias - direito igualmente com assento constitucional (nº 1 do artigo
25º da CR) - devendo aqueles ceder o passo a este.
2.- Não compete ao Tribunal Constitucional exercer qualquer censura sobre o decidido quanto à matéria de facto dada como provada, havendo tão só que ajuizar, no âmbito de uma fiscalização concreta de constitucionalidade, se é constitucionalmente correcta a interpretação feita das normas em sindicância na concreta acção de divórcio.
A esta luz, mesmo admitindo, no tocante à eventual ilicitude na obtenção e apropriação do material fotográfico, ser observável o disposto no nº 6 do artigo 32º da CR, o certo é que a matéria de facto dada como provada não permite a este Tribunal emitir qualquer juízo de inconstitucionalidade sobre o entendimento adoptado a este respeito, implicitamente, pelo Supremo Tribunal de Justiça.
3.- Nos termos do nº 1 do artigo 26º da CR, a todos são reconhecidos, como direitos pessoais, o direito à imagem e o direito à reserva de intimidade da vida privada e familiar - a destacar do elenco aí previsto -
cabendo à lei ordinária estabelecer garantias efectivas contra a utilização abusiva ou contrária à dignidade humana de informações relativas às pessoas e famílias, de acordo com o nº 2 do mesmo preceito.
Comentando aquela norma, Gomes Canotilho e Vital Moreira observam estarem estes direitos pessoais 'directamente ao serviço da protecção da esfera nuclear das pessoas e da sua vida, abarcando fundamentalmente aquilo que a literatura juscivilistica designa por direitos de personalidade' (cfr. Constituição da República Portuguesa Anotada, 3ª ed., Coimbra, 1993, pág. 179).
Estão estes direitos fundamentais estreitamente ligados à própria personalidade, devendo o seu exercício moldar-se e consolidar-se pela observância do princípio da dignidade da pessoa humana, a ponto de o respeito por eles e a garantia da sua efectivação os colocarem ao abrigo dos limites materiais da revisão constitucional [cfr. os artigos 1º e 2º e a alínea d) do artigo 288º da Lei Fundamental]. Visa-se que a dignidade da pessoa seja expressão dirigida ao homem, concreta e individualmente considerado, não entendida apenas formalmente, mas, e de modo essencial, materialmente, como bem tutelado por esses direitos - que constituem 'a base jurídica da vida humana no seu nível actual de dignidade', que têm a sua 'fonte ética na dignidade da pessoa, de todas as pessoas' (cfr. João de Castro Mendes,
'Direitos, Liberdades e Garantias - Alguns Aspectos Gerais', in - Estudos sobre a Constituição, 1º vol., Lisboa, 1977, pág. 102; Jorge Miranda, Manual de Direito Constitucional, vol. IV, Coimbra, 1988, pág. 167; J.C. Vieira de Andrade, Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976, Coimbra,
1987, pág. 85; Rabindranath Capelo de Sousa, O Direito Geral de Personalidade, Coimbra, 1995, págs. 96 e segs.).
No tocante ao direito à intimidade da vida privada já este Tribunal ponderou pretender-se prevenir de intromissões alheias o espaço interior da pessoa ou do seu lar, assim se acautelando um núcleo íntimo onde ninguém penetre salvo autorização do próprio titular (cfr., inter alia, os acórdãos nºs. 128/92 e 319/95, publicados no Diário da República, II Série, de
24 de Julho de 1992 e de 2 de Novembro de 1995, respectivamente).
Com o direito à imagem, por sua vez, visa-se salvaguardar o direito de cada um a não ser fotografado nem ver o seu retrato exposto em público, sem o seu consentimento e, bem assim, o direito a não ser apresentado 'em forma gráfica ou montagem ofensiva e malevolamente distorcida ou infiel' (cfr. J.J. Gomes Canotilho e Vital Moreira, ob. cit., pág. 181. Entre os acórdãos deste Tribunal, vejam-se os já citados nºs. 128/92 e 319/95. Estão em causa, não apenas o retrato mas igualmente todas as outras captações possíveis do corpo do indivíduo, da sua protecção imagética, nas palavras de Orlando de Carvalho (in Teoria Geral da Relação Jurídica, Coimbra, 1970, pág.
72), o que possibilita uma ingerência abusiva atentatória de valores constitucionalmente protegidos.
De qualquer modo, e como o Tribunal Constitucional reconheceu logo num dos seus primeiros arestos, o direito a proteger, pois que relacionado com a dignidade da pessoa humana, tem ele mesmo de ser exercido com dignidade, pois todas as liberdades, todos os direitos sofrem as restrições impostas pelo respeito da liberdade e dos direitos dos outros (cfr. acórdão nº
6/84, publicado no Diário citado, II Série, de 2 de Maio de 1994). Ou, se se preferir, a autonomia dos direitos fundamentais é limitada na medida dos deveres de solidariedade para com os outros homens e para com a sociedade, pois o seu titular vive em comunidade e, como tal, obriga-se a suportar as restrições e as compressões indispensáveis à acomodação dos direitos dos outros e à realização dos direitos comunitários, ordenados ao bem comum de todos (cfr. J.C. Vieira de Andrade, ob. cit., pág. 86).
A circunstância de se tratar de pessoas unidas matrimonialmente não aniquila, certamente, o direito à reserva da intimidade, mas não deixa de, pela própria natureza das coisas, atenuar a sua intensidade, mormente se os cônjuges partilham as suas vidas; e, mesmo em contexto de separação de facto, pode haver circunstâncias que impliquem essa atenuação.
Ponto é surpreender, na singularidade do caso concreto, até onde o titular - ou os titulares - daqueles direitos são, incondicionadamente, os titulares da própria tutela jurídica dos seus interesses juridicamente protegidos (Capelo de Sousa, ob. cit., pág. 396), ou seja, em que grau as exigências de tutela não haverão de ser limitadas 'pelo funcionamento de outros direitos e deveres' (arts cit., pág. 518).
Com efeito, impõe-se uma apreciação ponderada dos interesses em causa no pressuposto de que a protecção concedida aos direitos em questão não pode limitar intoleravelmente outros direitos: a salvaguarda de outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos há-de obedecer ao princípio da proporcionalidade em sentido amplo, proibindo o excesso, devendo, por isso, as restrições estabelecidas serem necessárias, adequadas e proporcionais (cfr. o artigo 18º da Constituição, 2ª parte do seu nº 2).
Não sendo fácil formular um juízo de relação apropriada (angemessen Verhältnis) parece razoável partir de uma directriz determinada por critérios resultantes das valorações sociais correntes sobre a questão, como propõe um Autor, 'desde que harmonizáveis com os princípios gerais do ordenamento jurídico nesta matéria, e, portanto, que além de a própria noção de vida privada ser em certa medida dependente do indivíduo, é também função das valorações de cada formação social' (cfr. Paulo Mota Pinto, 'O Direito à Reserva sobre a Intimidade da Vida Privada' in - Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, vol. LXIX, Coimbra, 1993, pág. 527).
Nesta leitura, o estado de saúde da pessoa faz parte da sua vida privada, 'bem como a vida conjugal, amorosa e afectiva do indivíduo, isto é, os projectos de casamento e de divórcio, aventuras amorosas, afectos e ódios, etc.' (ob. cit. págs. 527-528). Também outro Autor faz compreender, na esfera da privacidade constitucionalmente tutelada, o passado da pessoa, os seus sentimentos, factos atinentes à sua saúde, a respectiva situação patrimonial, os seus valores ideológicos, o domicílio (cfr. Rita Amaral Cabral, 'O Direito à Intimidade da Vida Privada (Breve reflexão acerca do artigo
80º do Código Civil' in - Estudos em Memória do Professor Doutor Paulo Cunha, Lisboa, 1989, pág. 399). Ou, ainda, as peripécias da vida conjugal e familiar, as causas e as circunstâncias de um divórcio, a vida amorosa fora e ao lado do casamento (Capelo de Sousa, ob. cit., pág. 318).
No entanto, e como este último Autor logo ressalva após os exemplos dados - 'sem prejuízo, neste último caso, dos direitos do cônjuge ofendido' - torna-se necessário convocar a 'relação apropriada', ponderável casuisticamente. Em cada caso, escreveu-se no acórdão nº 156/92 deste Tribunal, seguindo Vieira de Andrade (ob. cit. pág. 219) será averiguado
'se a esfera normativa do preceito em causa inclui ou não uma certa situação ou modo de exercício, isto é, até onde vai o domínio de protecção (a hipótese) da norma' (acórdão publicado no Diário da República, II Série, de 2 de Setembro de
1992). O mesmo sentido é expresso, v.g., no acórdão nº 176/92, publicado no mesmo jornal oficial, II Série, de 18 de Setembro do mesmo ano.
Ora, no caso vertente, a autora, ora recorrida, pretende justificar a junção do material fotográfico para prova dos factos por si alegados, dado ter requerido o divórcio com base no disposto no artigo 1779º do Código Civil, ao invocar violação culposa dos deveres conjugais por parte do marido, de modo a comprometer a possibilidade da vida em comum.
Será esta uma daquelas situações em que os critérios relativos à condição das pessoas e à natureza das coisas, a que a Doutrina alude (cfr. Rita Amaral Cabral, ob.cit., pág. 400; Ricardo Leite Pinto, 'Liberdade de Imprensa e Vida Privada' in - Revista da Ordem dos Advogados, ano 54, vol. I de 1994, págs. 108 a 113) servirão para a ponderação da distribuição dos custos do conflito. E em que a recolha de elementos probatórios em acção de divórcio poderá justificar a observação e a documentação da vida amorosa extra-conjugal do outro cônjuge, para utilizar o exemplo avançado por Capelo de Sousa (ob.cit., pág. 347).
Nesta óptica desencadeadora de uma apreciação ponderada dos interesses em causa, em que se visa impedir uma intolerável afectação da protecção concedida constitucionalmente, a interpretação dada pelo Supremo às normas processuais controvertidas situa-se nos parâmetros da adequação constitucional, atenta a natureza da acção e a sua causa de pedir, o
ónus de prova que sobre a autora impendia para fundamentar o pedido e as exigências de justiça daí decorrentes, sendo certo que, como foi salientado, existem normativos legais adequados que vedam a publicitação dos elementos de prova para além dos limites processuais (caso dos artigos 168º e 174º do Código de Processo Civil).
Não se perfila, por conseguinte, a 'intolerável lesão' alegada pelo recorrente - sendo ainda certo que, tocantemente ao disposto no artigo 34º da CR, relativo à inviolabilidade do domicílio e da correspondência, nada se provou. IV
Em face do exposto, nega-se provimento ao recurso e confirma-se a decisão recorrida, no que respeita às suscitadas questões de constitucionalidade.
Lisboa, 19 de Março de 1997 Alberto Tavares da Costa Vítor Nunes de Almeida Armindo Ribeiro Mendes Antero Alves Monteiro Diniz Maria Fernanda Palma José Manuel Cardoso da Costa