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Proc. n.º 536/98
2ª Secção Relator — Paulo Mota Pinto
Acordam em conferência no Tribunal Constitucional: I. Relatório:
1. M. F. intentou acção declarativa no Tribunal Judicial da Comarca de Guimarães, contra F. F. e mulher, com vista à denúncia de contrato de arrendamento urbano. O Mtmº Juiz do processo proferiu sentença em 27 de Julho de
1997, julgando a acção procedente. Inconformados com esta decisão, os demandados interpuseram recurso de apelação para o Tribunal da Relação do Porto que, por sentença de 2 de Março de 1998, julgou improcedente o recurso, confirmando a decisão recorrida.
2. Desta decisão, pretenderam os apelantes interpor recurso para o Tribunal Constitucional, ao abrigo 'do disposto na alínea g) do artigo 70º da Lei de Organização, funcionamento e processo do Tribunal Constitucional', com os seguintes fundamentos:
'1 – A decisão proferida nos presentes autos aplica ao caso ‘sub iudice’ a alínea a) do n.º 1 do artº 69º do R.A.U., na parte em que a mesma se refere à possibilidade de denúncia de um contrato de arrendamento para descendentes em 1º grau dos senhorios.
2 – Ora, tal preceito legal está ferido de inconstitucionalidade orgânica.
3 – Tal questão não foi suscitada até ser proferida a decisão.
3 – Porém, essa inconstitucionalidade foi já recentemente declarada e reconhecida por decisão do Tribunal Constitucional, constante do seu Acórdão n.º
127/98, proferido nos autos que com o n.º 316/96, correu termos pela 1ª Secção desse Tribunal.[...]'
3. Por despacho do Ex.mo Desembargador relator no Tribunal da Relação do Porto, de 30 de Março de 1998, este recurso não veio a ser admitido, com os seguintes fundamentos:
'Ora, prescreve-se no art. 70º, n.º 1, al. b) da Lei Orgânica do Tribunal Constitucional (Lei n.º 28/82 (alterações dos DL. 85/89, de 7-9, e 88/95 de
1-9), que «cabe recurso para o Tribunal Constitucional das decisões dos tribunais que apliquem norma cuja inconstitucionalidade haja sido suscitada durante o processo.» Ora, no caso concreto, não foi suscitada em altura alguma do processo, a questão da inconstitucionalidade daquela norma. Não se enquadra, portanto, naquela previsão.';
[...] Acresce ainda que o Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 127/98, que declarou a inconstitucionalidade orgânica do art. 1º, n.º 1, alínea a) do R.A.U., não tem força obrigatória geral.[...]. Assim, por tudo o exposto, não se admite o recurso interposto pelos recorrentes para o Tribunal Constitucional.'
4. Contra este despacho deduziram os requerentes a presente reclamação, tendo o Tribunal da Relação do Porto, por acórdão de 11 de Maio de 1998, decidido manter o despacho reclamado e ordenado a remessa dos autos ao Tribunal Constitucional.
5. Dada vista do processo ao Ministério Público, o Ex.mo Procurador- Geral Adjunto pronunciou-se no sentido de que, sendo a decisão do Tribunal da Relação do Porto puramente confirmatória da decisão proferida na 1ª instância, se solicite a remessa desta ao tribunal a quo, a fim de averiguar se a norma do Regime do Arrendamento Urbano invocada pelo recorrentes foi ou não aplicada pelas instâncias no julgamento da causa. Cumpre, agora, apreciar e decidir. II. Fundamentos:
6. Os reclamantes interpuseram recurso do acórdão do Tribunal da Relação do Porto de fls. 129, dizendo expressamente que o faziam 'nos termos do disposto na alínea g) do artigo 70º da Lei de Organização, funcionamento e processo do Tribunal Constitucional'. O despacho reclamado reporta-se, porém, ao artigo 70º, n.º 1, alínea b) (e não h), como refere o reclamante, como resulta da transcrição do texto da alínea efectuada no despacho), para se concluir que não se verifica o requisito, nela exigido, da suscitação da inconstitucionalidade durante o processo. Ora, considerando o teor formal do requerimento, conclui-se que este fundamento
é improcedente. O requisito de admissibilidade do recurso para o Tribunal Constitucional consistente na suscitação da inconstitucionalidade durante o processo refere-se apenas aos recursos interpostos ao abrigo da alínea b) do n.º
1 do artigo 70º, e não aos interpostos nos termos da alínea g).
É, na verdade, isto que resulta do texto das diversas alíneas do n.º 1 do artigo
70, considerando que na alínea g) não se refere qualquer suscitação da inconstitucionalidade durante o processo. Por outro lado, é esta a solução que corresponde ao fundamento da exigência de suscitação da inconstitucionalidade durante o processo, e que é o facto de a intervenção do Tribunal Constitucional ter lugar, para controlar a constitucionalidade das normas aplicadas pelo tribunal a quo, em via de recurso, apreciando, portanto, uma questão que poderia e deveria já ter sido apreciada por um outro tribunal, por ter sido suscitada perante ele. Esta razão não vale, todavia, para o recurso da alínea g) do n.º 1 do artigo 70º - designadamente, porque, tendo a norma aplicada pelo tribunal recorrido sido anteriormente julgada inconstitucional pelo Tribunal Constitucional, e não podendo os tribunais aplicar normas que infrinjam o disposto na Constituição (artigo 206º da Constituição), se pode e deve legitimamente presumir que a questão de constitucionalidade não deixou de ser considerada pelo tribunal a quo. Não é, pois, de rejeitar o recurso interposto pelos ora reclamantes com o fundamento de a inconstitucionalidade do artigo 69º, n.º 1, alínea a) do Regime do Arrendamento Urbano (aprovado pelo Decreto-Lei n.º 321-B/90, de 15 de Outubro) não ter sido suscitada durante o processo. A decisão de não admissão do recurso também não pode ter como fundamento a circunstância de o Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 127/98, de 3 de Fevereiro (e publicado no Diário da República, II série, de 18 de Maio de 1998, com a declaração de rectificação n.º 1121/98, publicada no Diário da República, II série, de 28 de Maio de 1998), que declarou inconstitucional a norma do art.
69º, n.º 1, alínea a) do Regime do Arrendamento Urbano, não ter força obrigatória geral. É que o recurso previsto na alínea g) do n.º 1 do artigo 70º não cabe apenas de decisões que apliquem normas declaradas inconstitucionais pelo Tribunal Constitucional com força obrigatória geral. Dir-se-á, até, que esse recurso se encontra talhado sobretudo para reagir contra decisões que apliquem normas julgadas anteriormente inconstitucionais (ou ilegais) pelo Tribunal Constitucional num caso concreto, e não com força obrigatória geral
(pois que a aplicação de normas declaradas inconstitucionais com força obrigatória geral pressuporá, pelo menos em regra, a inobservância do dever de não aplicação de normas que, por terem sido declaradas inconstitucionais, deixaram de integrar o ordenamento jurídico).
É esta a posição que decorre da natureza do recurso da alínea g) do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional, quer se entenda que a finalidade desse recurso é fazer prevalecer as decisões do Tribunal Constitucional em matéria de constitucionalidade, quer se entenda que tem como finalidade precípua possibilitar a extensão do julgamento de inconstitucionalidade de uma norma num caso concreto a outros casos concretos idênticos, pelo menos enquanto não existe ainda uma decisão com força obrigatória geral (e não propriamente assegurar a observância, pelo tribunal recorrido, das decisões do Tribunal Constitucional com força obrigatória geral). Não se pode, pois, concordar com a exigência de que o acórdão invocado como fundamento do recurso da alínea g) do artigo 70º, n.º 1, da Constituição, seja um acórdão que tenha declarado a inconstitucionalidade com força obrigatória geral - foi, antes, a posição inversa (segundo a qual apenas estariam abrangidos na alínea g) do n.º 1 do artigo 70º casos em que já tivesse havido decisão a julgar inconstitucional uma norma, num caso concreto, e não a declarar a inconstitucionalidade com força obrigatória geral) que mereceu o acolhimento de alguma doutrina, não vindo, porém, a encontrar apoio na jurisprudência deste Tribunal (ver os Acórdãos n.ºs 257/89 e 214/90, publicados respectivamente no Diário da República, Iª série, de 18 de Março de 1987, e IIª série, de 17 de Setembro de 1990).
7. A alínea g) do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional apenas admite recurso de decisões que tenham aplicado normas que o Tribunal Constitucional haja anteriormente julgado inconstitucionais. Constituem, pois, pressupostos deste tipo de recurso de constitucionalidade:
que o tribunal a quo aplique certa norma; e
que a norma aplicada já antes tivesse sido julgada inconstitucional pelo
Tribunal Constitucional. A decisão de constitucionalidade tem, obviamente, de ser anterior à própria decisão recorrida. Segundo jurisprudência uniforme do Tribunal Constitucional, a data relevante para a anterioridade à decisão recorrida não é, porém, a data da decisão do Tribunal Constitucional sobre a questão de constitucionalidade. Como se escreveu no Acórdão deste Tribunal n.º 105/85 (publicado no Diário da República, II série, de 6 de Agosto de 1985; no mesmo sentido, os Acórdãos n.ºs
107/85 e 120/86, publicados, respectivamente, no Diário da República, II série, de 3 de Maio e 4 de Agosto de 1986): 'não existirá, todavia, anterioridade relevante apenas por esta decisão ter precedido aquela no tempo. É indispensável que, à data da aplicação da norma, o tribunal que a aplica já tivesse tido conhecimento por meios públicos do julgamento de inconstitucionalidade do Tribunal Constitucional. A anterioridade terá assim de ser reportada à data do conhecimento, e não à data da decisão. Normalmente, e em regra, esse conhecimento advirá da publicação da decisão do Tribunal Constitucional no Diário da República [artigo 122º, n.º 1, alínea g) da Constituição]. Então, é a anterioridade da decisão referida à data da publicação, a qual corresponderá assim à data do conhecimento.
(...) Do mesmo modo, se um tribunal tem conhecimento do acórdão do Tribunal Constitucional, através de autos de recurso que lhe foram devolvidos, bastará tal conhecimento oficioso para suportar o segundo pressuposto em exame. Existe, então e daí por diante, uma anterioridade de conhecimento, coincidente com a data em que o processo vindo do Tribunal Constitucional deu entrada na secretaria do tribunal a quo, justificativa do recurso de constitucionalidade, caso, é evidente, este último tribunal, a partir daí, utilize em qualquer processo a norma precedentemente desaplicada pelo Tribunal Constitucional.' A exigência da anterioridade de conhecimento da decisão de inconstitucionalidade
– isto é, de que a anterioridade exigida para o recurso da alínea g) seja referida à publicação da decisão que julgou inconstitucional ou ilegal a norma aplicada, ou, pelo menos, à data da entrada no tribunal a quo do processo onde esse julgamento ocorreu – justifica-se, pois só nesses casos se pode dispensar a exigência de suscitação durante o processo, pelo recorrente, da inconstitucionalidade da norma aplicada: só se a decisão de inconstitucionalidade tiver sido publicada ou se o processo respectivo tiver dado entrada na secretaria do tribunal a quo se poderá presumir que a questão de constitucionalidade poderia ou deveria ter sido apreciada pelo tribunal a quo. Só quando esta anterioridade de conhecimento se verificar o tribunal recorrido está, efectivamente, em posição de, independentemente do cumprimento pelo recorrente do ónus de suscitação da inconstitucionalidade da norma durante o processo, dever apreciar a questão da constitucionalidade, com fundamento no julgamento de inconstitucionalidade formulado pelo Tribunal Constitucional. Ora, no caso sub iudice, o Acórdão recorrido foi proferido em 2 de Março de
1998, não tendo antes os demandados, ora reclamantes, suscitado a inconstitucionalidade da norma da alínea a) do n.º 1 do artº 69º do Regime do Arrendamento Urbano. É certo que, a essa data, já o Tribunal Constitucional tinha proferido o Acórdão n.º 127/98, assinado na 1ª Secção deste Tribunal em 2 de Fevereiro de 1998. Todavia, este Acórdão n.º 127/98, proferido em recurso de constitucionalidade interposto de decisão do Tribunal da Relação de Lisboa, só veio a ser publicado, na II série do Diário da República, em 18 de Maio de 1998. Na data da decisão recorrida, o Tribunal da Relação do Porto ainda não estava, portanto, em posição de conhecer tal julgamento de inconstitucionalidade. E, não tendo os reclamantes cumprido o ónus de suscitação durante o processo da inconstitucionalidade da norma aplicada, para poderem interpor recurso de constitucionalidade ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional, não podem querer agora beneficiar da anterioridade da data de uma decisão do Tribunal Constitucional que o tribunal recorrido não tinha ainda meio de conhecer, para recorrerem nos termos da alínea g). Não se torna, pois, sequer necessário requisitar a decisão de 1ª instância, confirmada pelo Tribunal da Relação, já que, de todo o modo, ainda que a norma do Regime do Arrendamento Urbano invocada pelos recorrentes tenha efectivamente sido aplicada na decisão recorrida, não pode considerar-se verificado o segundo pressuposto do recurso da alínea g) do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional. A presente reclamação tem, pois, de ser indeferida. III. Decisão:
8. Nestes termos, embora por fundamentos diversos dos invocados no despacho reclamado, decide-se indeferir a presente reclamação, e condenar o reclamante em custas, fixando-se a taxa de justiça em 10 unidades de conta
Lisboa, 20 de Outubro de 1998 Paulo Mota Pinto Guilherme da Fonseca José Manuel Cardoso da Costa