Imprimir acórdão
Processo nº 824/95
1ª Secção Rel. Cons. Tavares da Costa
Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional
I
O Banco A., requereu, no Tribunal Judicial da Comarca de Loures, que fosse decretada a falência de B., com fundamento no disposto no artigo 1174º, nº 1, alíneas a), b) e c), do Código de Processo Civil
(CPC).
A requerida foi citada editalmente e, após julgamento, foi decretada em estado de falência.
Inconformada, recorreu esta para o Tribunal da Relação de Lisboa, logo suscitando a questão da inconstitucionalidade da norma da alínea a) do nº 1 do artigo 712º do CPC, que só permite à Relação alterar as respostas dadas pelo tribunal colectivo aos quesitos se de processo constarem todos os elementos de prova que serviram de base às respostas, o que, em sua tese, ofende o disposto no artigo 32º, nº 1, da Constituição da República (CR), enquanto aplicável ao processo falimentar.
No entender da requerida, ao processo de falência devem ser aplicáveis, desde que mais favoráveis ao falido, normas idênticas às do direito processual penal, nomeadamente no que respeita ao direito ao duplo grau de jurisdição em matéria de facto.
A Relação, por acórdão de 22 de Outubro de 1992, afastou, no entanto, a alegada inconstitucionalidade e negou provimento ao recurso, confirmando a sentença recorrida.
Recorreu, então, a interessada para o Supremo Tribunal de Justiça (STJ) renovando a problemática de inconstitucionalidade anteriormente equacionada.
O STJ, no entanto, por acórdão de 22 de Novembro de
1995, desatendeu a sua pretensão e confirmou o acórdão recorrido.
É desta última decisão que B., recorre para o Tribunal Constitucional, ao abrigo da alínea b) do nº 1 do artigo 70º da Lei nº
28/82, de 15 de Novembro.
Como norma cuja inconstitucionalidade deseja ver apreciada indica a da alínea a) do nº 1 do artigo 712º do CPC, 'na parte em que impede o duplo grau de jurisdição em matéria de facto nos processos de falência', considerando violado o disposto no nº 1 do artigo 32º da CR.
Recebido o recurso, alegou a recorrente nos termos assim sintetizados nas respectivas conclusões:
'1.- Nos termos do artº 712º, nº 1, a), do C.P.C., a Relação só pode alterar as respostas dadas pelo Tribunal Colectivo se do processo constarem todos os elementos de prova.
2.- No caso concreto, não constando do processo o teor do depoimento das testemunhas, a Relação não poderia alterar as respostas dadas pelo colectivo, respostas que, no que respeita aos quesitos 3º e 6º, resultaram exclusivamente da prova testemunhal.
3.- A declaração de falência comporta limitações aos direitos do falido, tanto quanto a direitos de propriedade e de celebração de negócios jurídicos como quanto a direitos relativos à liberdade pessoal, nomeadamente tendo em conta a possibilidade de o comportamento do falido cair na alçada da lei penal.
4.- Assim, ao processo de falência devem ser aplicáveis, desde que mais favoráveis ao falido, normas idênticas às do direito processual penal, mormente no que respeita ao direito ao duplo grau de jurisdição em matéria de facto, direito este resultante do disposto no artº 32º, nº 1, C.R.P..
5.- Deve, consequentemente, declarar-se a inconstitucionalidade material da norma da alínea a), do nº 1, do artº 712º, do C.P.C., em quanto aplicável ao processo de falência, por violação do artº 32º, nº 1, da Constituição da República, na parte em que aqui se consagra o direito ao duplo grau de jurisdição em matéria de facto.'
Por sua vez, o Banco ora recorrido limitou-se a alegar:
'A Recorrente, depois de ter recorrido para todas as instâncias, tentando, desesperadamente, protelar os efeitos da Falência declarada em 1991, vem, mais uma vez levantar a questão de inconstitucionalidade material da norma do artigo 712º, nº 1, alínea a) do Código de Processo Civil.
Não acrescenta, porém, qualquer novo facto, ou preceito jurídico que altere as circunstâncias em que o pleito foi julgado, ou a matéria de direito analisada pelas diferentes Instâncias que sobre ela se debruçaram.'
Correram-se os vistos legais, cumprindo apreciar e decidir.
II
1.- Constitui assim objecto do presente recurso de fiscalização concreta de constitucionalidade a norma constante da alínea a) do nº 1 do artigo 712º do CPC, enquanto aplicada na fase cível do processo falimentar.
Respeitante à modificabilidade das decisões do colectivo pelo Tribunal da Relação, dispõe-se no preceito:
'1.- As respostas do tribunal colectivo aos quesitos não podem ser alteradas pela Relação, salvo:
a) Se do processo constarem todos os elementos de prova que serviram de base à resposta;
--------------------.'(redacção anterior à introduzida pelo Decreto-Lei nº 39/95, de 15 de Fevereiro, inobservável no caso concreto - cf. o artigo 12º, nº 1, desse diploma legal).
Considera a recorrente comportar a declaração de falência limitações ao direito do falido, nomeadamente dos direitos de propriedade e de celebração de negócios jurídicos, e, ainda, limitações aos direitos inerentes à liberdade pessoal, podendo conduzir à instauração de procedimento criminal com eventuais repercussões no domínio dos direitos fundamentais.
Por conseguinte, na sua perspectiva, deve aplicar-se ao falido o regime mais favorável, como o do processo penal, mormente no respeitante ao duplo grau de jurisdição em matéria de facto. A norma sindicanda, enquanto aplicável ao processo de falência, é, pois, inconstitucional nessa medida, por ofensa ao nº 1 do artigo 32º da CR.
Não foi esse, como já se aludiu, o entendimento da Relação, que o Supremo confirmou.
Como então se observou, não está em causa, no caso concreto, reportado à fase declarativa do processo de falência, matéria de enquadramento jurídico-penal. Comportando o processo de falência uma fase declarativa e uma fase executiva, poderá esta dar lugar, não inevitavelmente, a processo criminal, pelo que não faz sentido convocar as normas processuais penais para aquela primeira fase.
Adiante-se, desde já, não assistir razão à recorrente.
2.- De acordo com o nº 1 do artigo 32º da CR, o processo criminal assegurará todas as garantias de defesa.
O Tribunal Constitucional, tendo em conta este preceito, conjugadamente com o artigo 27º, nº 1, da mesma lei fundamental, criou uma firme orientação jurisprudencial, vinda já da Comissão Constitucional, de acordo com a qual se acha constitucionalmente assegurado o duplo grau de jurisdição quanto às decisões condenatórias e às respeitantes à situação do arguido face à privação ou restrição da liberdade ou de quaisquer outros direitos fundamentais (cfr., inter alia, os acórdãos nºs. 31/87, 178/88, 340/91,
401/91 e 447/93, publicados, o primeiro nos Acórdãos do Tribunal Constitucional,
9º vol., págs. 463 e segs., e os demais no Diário da República, II Série, de 30 de Novembro de 1988, 19 de Março de 1991, I Série-A, de 8 de Janeiro de 1992, e II Série, de 23 de Abril de 1994, respectivamente). Garantia que, de resto, não abrange outras decisões proferidas em processo penal.
No entanto, fora desse específico âmbito, entende-se não se achar constitucionalmente garantido o duplo grau de jurisdição, reconhecendo-se ao legislador ampla liberdade de conformação para estabelecer requisitos de admissibilidade dos recursos. De um modo geral, e como expoente de uma linha de jurisprudência que não se considera de alterar, pode afirmar-se que, fora do domínio penal, o princípio da efectividade do direito ao recurso, a implicar duplo grau de jurisdição, não constitui garantia constitucional, tendo apenas - como se observou no acórdão nº 310/94, publicado no Diário da República, II Série, de 29 de Agosto de 1994 - 'o alcance de uma proibição ao legislador de eliminar pura e simplesmente a faculdade de recorrer em todo e qualquer caso ou de a inviabilizar na prática'.
No caso sub judice - e considerando o regime legal que lhe é aplicável - os autos encontram-se na fase inicial em que se declara a falência, sujeita à disciplina do Código de Processo Civil e, por conseguinte, não vinculada garantisticamente nos termos constitucionalmente exigidos para o processo criminal.
É certo que a declaração judicial de falência não tem apenas, como observa Lebre de Freitas, 'o único efeito de abrir a sucessiva fase executiva e assim proporcionar a satisfação possível - e igualitária - dos direitos dos credores comuns, mediante a actuação do mecanismo da garantia geral das obrigações' (cfr. 'Apreensão, Restituição, Separação e Venda de Bens no Processo de Falência' in Revista da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, vol. XXXVI, pág. 373, sem prejuízo de o autor se debruçar sobre o regime aprovado pelo Decreto-Lei nº 132/93, de 23 de Abril) pois resultam da mesma outros efeitos, nomeadamente de direito substantivo, repercutindo-se no estatuto do falido, e, bem assim, de natureza conservatória e executiva. Entre eles, os efeitos penais.
Não obstante, é uma fase em que não há, ainda, lugar para intervenção penal, logo, para observância do disposto no artigo 32º da CR.
Com efeito, a ocorrência de uma situação de falência - ou de insolvência, considerando o regime do CPC - constitui pressuposto da declaração judicial de falência - ou de insolvência - e desta declaração, por sua vez, depende o pressuposto de punibilidade dos crimes falenciais, sendo, por conseguinte, em face dessa declaração que se alcançará juízo sobre o âmbito da realidade penalmente tutelável e o momento oportuno da intervenção penal (cfr. Pedro Caeiro, Sobre a Natureza dos Crimes Falenciais, Coimbra, 1996, págs. 254 e segs.).
De resto, sempre a declaração de falência permitiria ao recorrente deduzir embargos, com fundamento no disposto no nº 1 do artigo 1184º do CPC (no actual Código dos Processos Especiais de Recuperação da Empresa e de falência, aprovado pelo Decreto-Lei nº 132/93, de 23 de Abril, cfr. o artigo 129º) e aí ter oportunidade para, como já se escreveu, 'de novo verificar a legalidade do uso do processo de falência aberto pela sentença falimentar anterior, com referência aos factos-índices que foram seu fundamento'
(cfr. Pedro de Sousa Macedo, Manual de Direito das Falências, vol. II, Coimbra,
1968, pág. 248).
Assim, não há que censurar, na óptica jurídico-constitucional, o acórdão recorrido que avalizou a interpretação dada
à alínea a) do nº 1 do artigo 712º do CPC. III
Em face do exposto, decide-se negar provimento ao recurso.
Lisboa, 17 de Abril de 1997 Alberto Tavares da Costa Antero Alves Monteiro Diniz Maria da Assunção Esteves Maria Fernanda Palma Vítor Nunes de Almeida Armindo Ribeiro Mendes José Manuel Cardoso da Costa