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Processo n.º 182/12
Plenário
Relator: Conselheiro José da Cunha Barbosa
Acordam, em Plenário, no Tribunal Constitucional
I. Relatório
1. O Presidente da República veio requerer, nos termos do n.º 1 do artigo 278.º da Constituição, bem como do nº 1 do artigo 51.º e n.º 1 do artigo 57.º da Lei n.º 28/82, de 15 de novembro (LTC), ao Tribunal Constitucional, a apreciação da conformidade com a mesma Constituição das seguintes normas constantes do Decreto n.º 37/XII da Assembleia da República:
«(…)
- a norma constante do n.º 1 do artigo 1.º, na parte em que adita o artigo 335.º-A ao Código Penal;
- a norma constante do n.º 2 do artigo 1.º, na parte em que altera o artigo 386.º do Código Penal;
- a norma constante do artigo 2.º, na parte em que adita o artigo 27.º-A à Lei n.º 34/87, de 16 de julho, alterada pelas Leis n.ºs 108/2001, de 28 de novembro, 30/2008, de 10 de julho, 41/2010, de 3 de setembro, e 4/2011, de 16 de fevereiro;
- a norma constante do artigo 10.º, quando conjugada com as normas anteriormente referidas.
(…)»
2. Para tanto, mostram-se invocados os seguintes fundamentos:
«(…)
1.º
Pelo Decreto n.º 37/XII, a Assembleia da República aprovou o regime que institui o crime de enriquecimento ilícito.
2.º
Este novo tipo criminal é aditado ao Código Penal, na formulação adotada pelo Decreto, sendo aplicável a todas as pessoas, singulares e coletivas (artigo 335.º-A), embora com moldura penal agravada quando praticado por funcionário (artigo 386.º).
3.º
Semelhante tipo criminal é aditado à Lei n.º 34/87, de 16 de julho, que aprovou o regime dos crimes de responsabilidade dos titulares de cargos políticos.
4.º
É a seguinte a formulação dada pelo Decreto ao n.º 1 do artigo 335.º-A do Código Penal: “Quem por si ou por interposta pessoa, singular ou coletiva, adquirir, possuir ou detiver património, sem origem lícita determinada, incompatível com os seus rendimentos e bens legítimos é punido com pena de prisão até três anos, se pena mais grave não lhe couber por força de outra disposição legal”.
5.º
De modo semelhante, dispõe o artigo 386.º do Código Penal na redação dada pelo Decreto: “O funcionário que, durante o período do exercício de funções públicas ou nos três anos seguintes à cessação dessas funções, por si ou por interposta pessoa, singular ou coletiva, adquirir, possuir ou detiver património, sem origem lícita determinada, incompatível com os seus rendimentos e bens legítimos é punido com pena de prisão de um a cinco anos, se pena mais grave não lhe couber por força de outra disposição legal”.
6.º
Finalmente, de acordo com o Decreto, é a seguinte a redação do crime de enriquecimento ilícito aditado à Lei n.º 34/87, de 16 de julho: “O titular de cargo político ou de alto cargo público que durante o período do exercício de funções públicas ou nos três anos seguintes à cessação dessas funções, por si ou por interposta pessoa, singular ou coletiva, adquirir, possuir ou detiver património, sem origem lícita determinada, incompatível com os seus rendimentos e bens legítimos é punido com pena de prisão de 1 a 5 anos, se pena mais grave não lhe couber por força de outra disposição legal”.
7.º
Nos termos das normas citadas e, tal como resulta do debate havido no Parlamento que consta dos trabalhos preparatórios, são três os elementos objetivos do tipo legal de crime, comuns à definição do crime em apreciação: i) «adquirir, possuir ou deter património»; ii) «sem origem lícita determinada»; iii) «incompatível com os rendimentos e bens legítimos» do agente.
8.º
Estabelece o artigo 10.º do Decreto que “Compete ao Ministério Público, nos termos do Código do Processo Penal, fazer a prova de todos os elementos do crime de enriquecimento ilícito”.
9.º
Coloca-se, assim, a questão de saber se estas normas conjugadas consubstanciam uma violação do princípio constitucional da presunção de inocência, decorrente do princípio do Estado de direito, consagrado no artigo 2º e com assento expresso no n.º 2 do artigo 32.º da Constituição.
10.º
Com efeito, a Constituição garante, no n.º 2 do artigo 32.º, que “todo o arguido se presume inocente até ao trânsito em julgado da sentença de condenação, devendo ser julgado no mais curto prazo compatível com as garantias de defesa”. Este princípio encontra a sua origem histórica na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 26 de agosto de 1789, na sequência da Revolução Francesa. Veio a ser inscrito nos mais relevantes textos internacionais de proteção de direitos humanos, designadamente na Declaração Universal dos Direitos do Homem (n.º 1 do artigo 11.º), no Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos (n.º 2 do artigo 14.º) e na Convenção Europeia dos Direitos do Homem (n.º 2 do artigo 6.º).
11.º
Uma das decorrências deste princípio é, segundo Gomes Canotilho e Vital Moreira, em anotação ao artigo 32.º da Constituição (cfr. Constituição da República Portuguesa Anotada, Coimbra, 2007, pág. 518), de resto amplamente citada na jurisprudência do Tribunal Constitucional a este propósito (cfr., entre outros, o acórdão n.º 426/91) a proibição de inversão do ónus da prova.
12.º
Tal proibição traduz-se na necessidade de a acusação fazer prova dos factos que alega, necessários ao preenchimento do tipo legal de crime e dos seus elementos.
13.º
Traduz-se ainda no direito ao silêncio do arguido e a recusar-se colaborar na sua incriminação. Este direito encontra-se previsto na alínea d) do n.º 1 do artigo 61.º do Código de Processo Penal, sendo considerado um corolário do princípio da presunção de inocência e das garantias fundamentais do arguido em processo penal (cfr. Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 695/95 e Maria Fernanda Palma, A constitucionalidade do artigo 342º do Código de Processo Penal (O direito ao silêncio do arguido), in Revista do Ministério Público, Ano 15º, Out./Dez. 1994, nº 60º, pág. 101 e segs.).
14.º
Sendo certo, como se viu, que o Decreto determina, nos termos gerais do Código de Processo Penal, que compete ao Ministério Público fazer a prova de todos os elementos do crime, importa apurar se a conjugação desta norma com a definição do tipo legal de crime comporta uma inversão do ónus da prova violadora do princípio constitucional da presunção de inocência.
15.º
São três, como acima mencionado, os elementos objetivos do tipo legal de crime. O Ministério Público deve, pois, nos termos do regime descrito, fazer prova da aquisição, posse ou detenção do património, de não ter esse património origem lícita determinada, bem como da sua incompatibilidade com os rendimentos e bens legítimos do arguido.
16.º
Resulta da conjugação dos citados preceitos que, para o preenchimento do tipo legal de crime, basta que o Ministério Público alegue que o enriquecimento não possui origem lícita determinada.
17.º
Sublinhe-se que a exigência de prova não se dirige à ilicitude da origem do património nem, tão-pouco, à licitude dessa origem.
18.º
Tal significa que, na circunstância de o Ministério Público não determinar a licitude da origem do património – por incapacidade de prova, insuficiência de factos, ou outra razão – o tipo legal deve ter-se por preenchido.
19.º
A única forma de o arguido garantir que a prova não se considera produzida é revelar, provando, a origem do património.
20.º
Contudo, uma tal exigência, admitindo que o arguido se encontra em condições de a cumprir, viola, por si só, o princípio da presunção de inocência na sua dimensão de proibição de inversão do ónus da prova e o direito ao silêncio do arguido.
21.º
Com efeito, o tipo legal de crime e os respetivos elementos não podem ser configurados de modo a promover a inércia do Ministério Público, exigindo, em consequência, a ação do arguido.
22.º
A conformação constitucional das garantias penais e processuais penais exige justamente o contrário: a atuação do Ministério Público “à charge et a décharge” e a faculdade, não autoincriminadora, de inação do arguido.
23.º
Poder-se-ia questionar se não deveria a norma ser interpretada no sentido de caber ao Ministério Público a prova da licitude da origem.
24.º
Contudo, tal interpretação não corresponde à letra da lei, uma vez que o elemento do tipo legal de crime definido é “sem origem lícita determinada”. Bastaria, nesse caso, afirmar “sem origem lícita”. Esta configuração do tipo criminal parece afastar a necessidade de prova pelo Ministério Público da licitude.
25º
A referida interpretação conduziria, de resto, ao resultado de forçar o Ministério Público a uma prova da não proveniência de origem lícita – inexistindo, como é evidente, uma enumeração taxativa de origens lícitas de bens.
26.º
Uma tal conceção que assentasse na existência de uma lista de fontes lícitas seria, de resto, contrária ao princípio da legalidade em geral e, em particular, ao princípio da tipicidade da lei penal. Com efeito, de acordo com este princípio, os destinatários da norma devem poder identificar as condutas que o legislador qualifica como ilícitas; não o contrário, aquelas que, por não serem lícitas, passariam, automaticamente, a ser ilícitas.
27.º
O crime de enriquecimento ilícito não encontra, no modo como está definido no Decreto, paralelo nos sistemas penais próximos do Português.
28.º
Com efeito, não obstante ter consagração, tal como referido nos trabalhos preparatórios, na Convenção das Nações Unidas contra a corrupção, o crime em causa encontra naquela Convenção uma configuração muito distinta.
29.º
Assim, o artigo 20.º da Convenção contém uma recomendação aos Estados partes para que, no respeito pela sua Constituição e direito internos, considerem a possibilidade de adotar medidas legislativas de incriminação de funcionário público por enriquecimento ilícito.
30.º
Deste modo, a Convenção não determina um modelo concreto de crime de enriquecimento ilícito nem, tão-pouco, exige a inversão do ónus da prova – bem ao contrário, remete a definição do crime em concreto para o direito interno dos Estados, no respeito pelas respetivas Constituições.
31.º
Nos sistemas jurídicos que nos são próximos não se encontra lugar paralelo para o modelo que o legislador português agora pretendeu definir. Podemos encontrar na Bélgica, em Espanha e em Itália uma procura crescente de criminalizar a corrupção, mas não o enriquecimento ilícito nos termos previstos no Decreto em apreciação.
32.º
Porventura o modelo que mais se aproxima do que aqui analisamos é o adotado pelo legislador francês. Todavia, de acordo com o disposto no artigo 321.º-6 do “Code Pénal”, a incriminação do enriquecimento ilícito depende da demonstração da existência de conexão entre o agente e outras pessoas condenadas pela prática de crimes graves. Exige-se, ainda, a prova de um benefício direto ou indireto para o agente o que, ao menos, pode ser qualificado como um crime de resultado.
33.º
Deste modo, o modelo de incriminação do enriquecimento ilícito através de uma inversão do ónus da prova seria uma singularidade do modelo português no contexto europeu.
34.º
Não está, assim em causa a criminalização do enriquecimento ilícito – que tem assento nos instrumentos internacionais já citados – mas uma eventual inversão do ónus da prova operada pelo legislador e a consequente violação do princípio da presunção de inocência.
35.º
Este princípio encontra-se também violado na sua dimensão ou sub-princípio “in dubio pro reo”.
36.º
Com efeito, outro corolário do princípio da presunção de inocência é a necessidade de condenação “beyond a reasonable doubt”. Tal significa que, em caso de dúvida, o juiz deve declarar não se encontrarem provados os factos e, neste caso, o “non liquet” favorece o arguido (cfr. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, I, Lisboa, 2000, pág. 83).
37.º
Assim, caso o Ministério Público não demonstre a origem lícita do enriquecimento, cria-se a dúvida sobre a licitude ou ilicitude desse enriquecimento.
38.º
Ora, uma vez que a definição do tipo legal de crime se encontra desenhada de tal forma que a não demonstração da licitude da origem dá lugar ao seu preenchimento, a dúvida mencionada conduzirá, inelutavelmente, à condenação do arguido o que consubstancia uma violação ao princípio da presunção de inocência.
39.º
As normas objeto do pedido são, ainda, suscetíveis de violar o princípio constitucional da proporcionalidade, na dimensão necessidade.
40.º
Com efeito, não entrando aqui na controvérsia sobre a qualificação do crime como de perigo, concreto ou abstrato, sempre se dirá, em linha com o afirmado pelo Tribunal no citado acórdão n.º 426/91 que “a constitucionalidade de uma norma que preveja um crime de perigo — e, sobretudo, um crime de perigo abstrato – deve ser julgada, em primeiro lugar, à luz do princípio da necessidade das penas e das medidas de segurança, implicitamente consagrado no n.º 2 do artigo 18.º da Constituição. Com efeito, em relação às incriminações de perigo (e, especialmente, às de perigo abstrato), sempre se poderá entender que não é indispensável a imposição dos pesados sacrifícios resultantes da aplicação de penas e de medidas de segurança, visto que não está em causa, tipicamente, a efetiva lesão de qualquer bem jurídico”. A imposição de penas e de medidas de segurança implica, evidentemente, uma restrição de direitos fundamentais, como o direito à liberdade e o direito de propriedade, que é indispensável justificar ante o disposto no n.º 2 do artigo 18.º da Constituição. Assim, uma tal restrição só é admissível se visar proteger outros direitos fundamentais e na medida do estritamente indispensável para esse efeito”.
41.º
A restrição que a criminalização desta conduta importa para os bens jurídicos constitucionalmente protegidos como o direito à liberdade e o direito de propriedade deve justificar-se num teste rigoroso de proporcionalidade. Seria necessário demonstrar que só criminalizando o enriquecimento se conseguiria atingir o resultado visado pelo legislador (cfr. Germano Marques da Silva, Direito Penal Português, I, Lisboa, 1997, pág. 75). Ora, como se viu, podem ser encontradas outras formas de, protegendo os mesmos bens jurídicos, salvaguardar princípios constitucionais fundamentais, ademais quando aplicável a todas as pessoas.
42.º
Acresce que, na formulação adotada pelo Decreto, não são claros os bens jurídicos a proteger pela norma e pela respetiva incriminação. Tal indeterminação coloca em crise não só o juízo de proporcionalidade como a própria possibilidade concreta de definição do tipo legal. Com efeito, e o citado acórdão n.º 426/91 é paradigmático disso mesmo, a definição dos crimes não pode nunca surgir desligada dos bens jurídicos que se pretende proteger (cfr., sobre o tema e sobre a necessidade de revisitar a jurisprudência do acórdão n.º 426/91, Jorge de Figueiredo Dias, O “Direito Penal do Bem Jurídico” como princípio jurídico-constitucional, in XXV Anos de Jurisprudência Constitucional Portuguesa, Coimbra, 2009, pág. 39).
43.º
Não menos relevante é a possível violação do princípio da legalidade penal e do seu sub-princípio “nullum crimen, nulla poena sine lege praevia”.
44.º
Do Decreto não resulta com suficiente precisão o momento da prática do facto, legitimando a interpretação segundo a qual a norma é aplicável a factos ocorridos em momento anterior ao da sua entrada em vigor.
45.º
Com efeito, uma vez que a norma se refere a aquisição, posse ou detenção e sendo a posse um facto aparente e continuado, pode bem suceder que a posse atual se tenha iniciado em momento muito anterior o que implicaria uma aplicação retroativa ou, ao menos, retrospetiva da lei penal o que sempre seria inadmissível à luz do disposto no artigo 29º da Constituição.
46.º
Finalmente, razões de confiança, princípio ínsito ao Estado de direito consagrado no artigo 2.º da Constituição, militam a favor da decisão de inconstitucionalidade do Decreto em causa.
47.º
Foram publicamente expressas, por diversos meios, as dúvidas de juristas sobre a conformidade constitucional do Decreto em apreciação, nas suas sucessivas versões. Tal foi o caso, entre outros, dos Professores Vital Moreira e Costa Andrade. No âmbito do procedimento legislativo tais dúvidas foram também suscitadas nas declarações de voto apresentadas, designadamente na do Partido Socialista e, com especial interesse pela sua clareza de argumentação jurídica, na dos Senhores Deputados Paulo Mota Pinto e Maria Paula Cardoso. Ainda, no mesmo sentido se pronuncia o parecer do Conselho Superior do Ministério Público, nos termos do qual, é aconselhado que “qualquer que venha a ser a formulação aprovada pela Assembleia da República, se faça submeter a lei a fiscalização preventiva do Tribunal Constitucional”.
48.º
Numa área com a sensibilidade do Direito Penal, onde estão em risco valores máximos da ordem jurídica num Estado de direito como a liberdade, não pode subsistir dúvida sobre a incriminação de condutas.
(…)».
3. No seguimento de tais fundamentos, conclui-se requerendo, “nos termos do n.º 1 do artigo 278.º da Constituição, bem como do nº 1 do artigo 51.º e nº 1 do artigo 57.º da Lei n.º 28/82, de 15 de novembro, a fiscalização preventiva da constitucionalidade das normas do n.º 1 do artigo 1.º, do nº 2 e do artigo 10.º constantes do Decreto nº 37/XII da Assembleia da República, por violação dos artigos 2.º, 18.º, n.º 2, 29.º e 32.º, n.º 2 da Constituição”.
4. Notificada que foi, a Autora das normas em causa limitou-se a oferecer o merecimento dos autos.
Nada obstando, cumpre proceder à apreciação solicitada.
II. Fundamentação
5. O objeto da presente fiscalização abstrata preventiva, dependendo do requerimento formulado, consiste na “fiscalização … da constitucionalidade das normas do n.º 1 do artigo 1.º, do nº 2 do artigo 1.º, do artigo 2.º, no que respeita aos aditamentos e alterações aí previstos, e do artigo 10.º, todos constantes do Decreto nº 37/XII da Assembleia da República, por violação dos artigos 2.º, 18.º, n.º 2, 29.º e 32.º, n.º 2 da Constituição”, ou seja, importa saber se as normas sindicadas podem ser tidas como desconformes à Constituição, designadamente por violação dos princípios consagrados nas normas constitucionais identificadas.
Tais normas apresentam o seguinte teor:
“(…)
Artigo 1.º
27.ª alteração ao Código Penal
1 - É aditado à secção II do capítulo I do título V do livro II do Código Penal, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 400/82, de 23 de setembro, e alterado pela Lei n.º 6/84, de 11 de maio, pelos Decretos-Leis n.ºs 101-A/88, de 26 de março, 132/93, de 23 de abril, e 48/95, de 15 de março, pelas Leis n.ºs 90/97, de 30 de julho, 65/98, de 2 de setembro, 7/2000, de 27 de maio, 77/2001, de 13 de julho, 97/2001, 98/2001, 99/2001 e 100/2001, de 25 de agosto, e 108/2001, de 28 de novembro, pelos Decretos-Leis n.ºs 323/2001, de 17 de dezembro, e 38/2003, de 8 de março, pelas Leis n.ºs 52/2003, de 22 de agosto, e 100/2003, de 15 de novembro, pelo Decreto-Lei n.º 53/2004, de 18 de março, e pelas Leis n.ºs 11/2004, de 27 de março, 31/2004, de 22 de julho, 5/2006, de 23 de fevereiro, 16/2007, de 17 de abril, 59/2007, de 4 de setembro, 61/2008, de 31 de outubro, 32/2010, de 2 de setembro, e 40/2010, de 3 de setembro, o artigo 335.º-A, com a seguinte redação:
“Artigo 335.º-A
Enriquecimento ilícito
1 - Quem por si ou por interposta pessoa, singular ou coletiva, adquirir, possuir ou detiver património, sem origem lícita determinada, incompatível com os seus rendimentos e bens legítimos é punido com pena de prisão até três anos, se pena mais grave não lhe couber por força de outra disposição legal.
2 - Para efeitos do disposto no número anterior, entende-se por património todo o ativo patrimonial existente no país ou no estrangeiro, incluindo o património imobiliário, de quotas, ações ou partes sociais do capital de sociedades civis ou comerciais, de direitos sobre barcos, aeronaves ou veículos automóveis, carteiras de títulos, contas bancárias, aplicações financeiras equivalentes e direitos de crédito, bem como as despesas realizadas com a aquisição de bens ou serviços ou relativas a liberalidades efetuadas no país ou no estrangeiro.
3 - Para efeitos do disposto no n.º 1, entendem-se por rendimentos e bens legítimos todos os rendimentos brutos constantes das declarações apresentadas para efeitos fiscais, ou que delas devessem constar, bem como outros rendimentos e bens com origem lícita determinada.
4 -Se o valor da incompatibilidade referida no n.º 1 não exceder 100 salários mínimos mensais a conduta não é punível.
5 - Se o valor da incompatibilidade referida no n.º 1 exceder 350 salários mínimos mensais o agente é punido com pena de prisão de um a cinco anos.”
2 -A secção VI do capítulo IV do título V do livro II do Código Penal, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 400/82, de 23 de setembro, e alterado pela Lei n.º 6/84, de 11 de maio, pelos Decretos-Leis n.ºs 101-A/88, de 26 de março, 132/93, de 23 de abril, e 48/95, de 15 de março, pelas Leis n.ºs 90/97, de 30 de julho, 65/98, de 2 de setembro, 7/2000, de 27 de maio, 77/2001, de 13 de julho, 97/2001, 98/2001, 99/2001 e 100/2001, de 25 de agosto, e 108/2001, de 28 de novembro, pelos Decretos-Leis n.ºs 323/2001, de 17 de dezembro, e 38/2003, de 8 de março, pelas Leis n.ºs 52/2003, de 22 de agosto, e 100/2003, de 15 de novembro, pelo Decreto-Lei n.º 53/2004, de 18 de março, e pelas Leis n.ºs 11/2004, de 27 de março, 31/2004, de 22 de julho, 5/2006, de 23 de fevereiro, 16/2007, de 17 de abril, 59/2007, de 4 de setembro, 61/2008, de 31 de outubro, 32/2010, de 2 de setembro, e 40/2010, de 3 de setembro, passa a denominar-se “Enriquecimento ilícito por funcionário”, sendo composta pelo artigo 386.º, que passa a ter a seguinte redação:
“Artigo 386.º
Enriquecimento ilícito por funcionário
1 - O funcionário que, durante o período do exercício de funções públicas ou nos três anos seguintes à cessação dessas funções, por si ou por interposta pessoa, singular ou coletiva, adquirir, possuir ou detiver património, sem origem lícita determinada, incompatível com os seus rendimentos e bens legítimos é punido com pena de prisão de um a cinco anos, se pena mais grave não lhe couber por força de outra disposição legal.
2 - Para efeitos do disposto no número anterior, entende-se por património todo o ativo patrimonial existente no país ou no estrangeiro, incluindo o património imobiliário, de quotas, ações ou partes sociais do capital de sociedades civis ou comerciais, de direitos sobre barcos, aeronaves ou veículos automóveis, carteiras de títulos, contas bancárias, aplicações financeiras equivalentes e direitos de crédito, bem como as despesas realizadas com a aquisição de bens ou serviços ou relativas a liberalidades efetuadas no país ou no estrangeiro.
3 - Para efeitos do disposto no n.º 1, entendem-se por rendimentos e bens legítimos todos os rendimentos brutos constantes das declarações apresentadas para efeitos fiscais, ou que delas devessem constar, bem como outros rendimentos e bens com origem lícita determinada, designadamente os constantes em declaração de património e rendimentos.
4 - Se o valor da incompatibilidade referida no n.º 1 não exceder 100 salários mínimos mensais a conduta não é punível.
5 - Se o valor da incompatibilidade referida no n.º 1 exceder 350 salários mínimos mensais o agente é punido com pena de prisão de um a oito anos.”
3 -A atual secção VI do capítulo IV do título V do livro II do Código Penal passa a ser a secção VII, sendo composta pelo atual artigo 386.º, que passa a ser o artigo 387.º.
(...)
Artigo 2.º
Quinta alteração à Lei n.º 34/87, de 16 de julho
É aditado à Lei n.º 34/87, de 16 de julho, alterada pelas Leis n.ºs 108/2001, de 28 de novembro, 30/2008, de 10 de julho, 41/2010, de 3 de setembro, e 4/2011, de 16 de fevereiro, o artigo 27.º-A, com a seguinte redação:
“Artigo 27.º-A
Enriquecimento ilícito
1 - O titular de cargo político ou de alto cargo público que durante o período do exercício de funções públicas ou nos três anos seguintes à cessação dessas funções, por si ou por interposta pessoa, singular ou coletiva, adquirir, possuir ou detiver património, sem origem lícita determinada, incompatível com os seus rendimentos e bens legítimos é punido com pena de prisão de 1 a 5 anos, se pena mais grave não lhe couber por força de outra disposição legal.
2 - Para efeitos do disposto no número anterior, entende-se por património todo o ativo patrimonial existente no país ou no estrangeiro, incluindo o património imobiliário, de quotas, ações ou partes sociais do capital de sociedades civis ou comerciais, de direitos sobre barcos, aeronaves ou veículos automóveis, carteiras de títulos, contas bancárias, aplicações financeiras equivalentes e direitos de crédito, bem como as despesas realizadas com a aquisição de bens ou serviços ou relativas a liberalidades efetuadas no país ou no estrangeiro.
3 - Para efeitos do disposto no n.º 1, entendem-se por rendimentos e bens legítimos todos os rendimentos brutos constantes das declarações apresentadas para efeitos fiscais, ou que delas devessem constar, bem como outros rendimentos e bens com origem lícita determinada, designadamente os constantes em declaração de património e rendimentos.
4 - Se o valor da incompatibilidade referida no n.º 1 não exceder 100 salários mínimos mensais a conduta não é punível.
5 - Se o valor da incompatibilidade referida no n.º 1 exceder 350 salários mínimos mensais o agente é punido com pena de prisão de 1 a 8 anos.”
(...)
Artigo 10.º
Prova
Compete ao Ministério Público, nos termos do Código do Processo Penal, fazer a prova de todos os elementos do crime de enriquecimento ilícito.
(…)”.
6. Afigura-se de toda a pertinência, com vista à sua compreensibilidade global, proceder a um curto enquadramento da matéria objeto da presente fiscalização abstrata, quer no âmbito do direito internacional e comparado, quer no domínio do direito interno.
6.1 Ao nível do direito internacional, nos ‘trabalhos preparatórios’, faz-se, essencialmente, referência à Convenção das Nações Unidas contra a Corrupção (doravante, “Convenção”), a qual entrou em vigor, na ordem internacional, em 12 de julho de 2003, e viria a ser aprovada pela Resolução da Assembleia da República n.º 47/2007, de 21 de setembro.
No seu artigo 20.º, cuja epígrafe é, precisamente, “Enriquecimento ilícito”, pode ler-se o seguinte: «Sem prejuízo da Constituição e dos princípios fundamentais do respetivo ordenamento jurídico, cada Estado parte deve adotar as medidas legislativas ou de outro tipo que se revelem necessárias para criminalizar o enriquecimento ilícito, quando praticado intencionalmente, ou seja, o aumento significativo do património de um funcionário público não explicável tendo em conta os rendimentos declarados.”
Ora, constituindo a Convenção um instrumento normativo produtor de efeitos jurídicos vinculativos, os seus preceitos contêm deveres jurídicos para os Estados Partes, concretamente, o dever de criminalização de certas condutas. Sucede que, ao contrário de Portugal, alguns Estados Partes formularam reservas ao artigo 20.º. Foi o caso do Vietname e do Canadá, essencialmente com fundamento no mesmo argumento, a saber, o princípio da presunção de inocência, reconhecido não só nas leis fundamentais destes Estados, como no artigo 14.º, n.º 2 do Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos.
Isto não implica, note-se, que os Estados signatários da Convenção que (ainda) não tenham criminalizado o enriquecimento ilícito e que não hajam formulado reservas ao conteúdo da mesma estejam a incumprir as obrigações assumidas. Com efeito, é o próprio artigo 20.º que possibilita aos Estados a não incriminação do enriquecimento ilícito com fundamento na Constituição ou em princípios fundamentais dos respetivos ordenamentos jurídicos. Assim se explicam, por exemplo, as declarações da Finlândia, do Reino-Unido e dos Estados-Unidos da América ao abrigo do “Mechanism for the Review of Implementation of the United Nations Convention against Corruption” (disponível em www.unodc.org).
A Finlândia considera desnecessária a previsão de um tipo legal de crime como o enriquecimento ilícito, pois assevera que os mecanismos legais e regulamentares já existentes são suficientes. Já os Estados-Unidos – e, no mesmo sentido, o Reino Unido - sublinham impressivamente que “a implementação do artigo 20.º, “Enriquecimento ilícito”, implicaria a transferência para o arguido do ónus da prova relativamente ao estabelecimento da natureza legítima da fonte de rendimento em causa. Uma vez que a Constituição dos Estados-Unidos prevê a presunção de inocência do arguido, é impossível criminalizar o enriquecimento ilícito.”
Vale por dizer que uma eventual não criminalização do enriquecimento ilícito por parte do legislador nacional – ou de qualquer outro Estado que não haja formulado reservas ao artigo 20.º da Convenção - não implica inelutavelmente o incumprimento de uma obrigação convencional internacional. Portugal pode invocar princípios fundamentais do seu ordenamento jurídico-constitucional – inclusivamente princípios que incorporam igualmente normas de ius cogens de direito internacional – desde que isso não o afaste de um necessário combate à conduta visada através de outros meios. Isto mesmo se confirma a partir da leitura do Parecer do Conselho Superior da Magistratura, de 9 de fevereiro de 2011, que apreciou o Projeto de Lei n.º 494/XI/2.ª (PCP):
“[O artigo 20.º da Convenção] não implica necessariamente que haja um crime designado de enriquecimento ilícito, mas sim que a legislação permita punir esse enriquecimento ilícito, o que pode ser efetivado através de outros tipos legais de crime.”
Esta flexibilidade, aliás, está bem patente na página oficial da Convenção, onde se pode ler que “os Estados Partes devem obrigatoriamente tipificar como crime: o suborno a funcionários públicos, a corrupção ativa a oficiais estrangeiros, a fraude e a apropriação indébita, a lavagem de dinheiro e a obstrução da justiça”, e devem “procurar tipificar as condutas de corrupção passiva de oficiais estrangeiros, tráfico de influências, abuso de poder, enriquecimento ilícito, suborno no setor privado e desvios de recursos no setor privado.”
6.2 No espaço da União Europeia, a qual é parte da Convenção, por decisão do Conselho de 25 de Setembro de 2008 (2008/801/CE), existem instrumentos que, não se referindo à incriminação do ‘enriquecimento ilícito’ em si, não podem deixar de se considerar com ele correlacionados (vg., a Convenção relativa à luta contra a Corrupção em que estejam implicados funcionários das Comunidades Europeias ou dos Estados-membros da União Europeia, de 1997, que foi aprovada pela Resolução da Assembleia da República n.º 72/2001 e a Decisão-Quadro 2008/841/JAI do Conselho, de 24 de outubro de 2008, relativa à luta contra a criminalidade organizada).
6.3 No plano do direito comparado, refira-se que, apesar das dificuldades colocadas à incriminação, alguns Estados admitem o crime de enriquecimento ilícito ou injustificado. É o caso, sem pretensões de exaustividade, de Hong-Kong (v. o Capítulo 201, Secção 10 da Prevention of Bribery Ordinance), do Chile, (v. artigo 241-bis do respetivo Código Penal) da Argentina (v. artigo 268.º, parágrafo 2 do respetivo Código Penal, na redação que lhe conferiu a Lei n.º 25.188, de 1999), de El Salvador (v. artigo 333.º do respetivo Código Penal), do Equador (v. artigo 296.1 do respetivo Código Penal), da China (v. artigo 395.º do respetivo Código Penal), e da Região Administrativa Especial de Macau.
É porventura conveniente atentar na evolução sofrida pelo regime jurídico da figura do enriquecimento ilícito em Macau, pela proximidade relativamente ao ordenamento jurídico português. Ora, o destaque cabe, desde logo, ao artigo 7.º, n.º 1, da Lei n.º 14/87/M, de 7 de dezembro (Regime Penal da Corrupção), que previa a punição disciplinar pelo ilícito de “Sinais exteriores de riqueza”.
Seguiu-se a Lei n.º 3/98/M, de 29 de junho, entretanto revogada pela Lei n.º 11/2003, de 28 de junho. Aí se prevê não só o dever de apresentação, por parte de titulares de cargos políticos e demais trabalhadores da função pública, de uma “declaração de rendimentos e interesses patrimoniais” (artigo 1.º), como o crime de “Riqueza injustificada” (artigo 28.º), configurado nos seguintes termos:
“Os obrigados à declaração nos termos do artigo 1.º que, por si ou por interposta pessoa, estejam na posse de património ou rendimentos anormalmente superiores aos indicados nas declarações anteriores prestadas e não justifiquem, concretamente, como e quando vieram à sua posse ou não demonstrem satisfatoriamente a sua origem lícita, são punidos com pena de prisão até três anos e multa até 360 dias” (n.º 1).
É mister concluir, portanto, que a grande maioria dos Estados não admite a criminalização do enriquecimento ilícito ou injustificado, seja porque o reputam desnecessário no quadro de outros instrumentos de combate à corrupção, seja porque têm dificuldades em sustentá-lo à luz do princípio (fundamental) da presunção de inocência. Exceção a este quadro mais ou menos estável é o crime de “não justificação de rendimentos”, previsto no artigo 321-6 do Código Penal Francês, introduzido pela Loi n.º 2006-64, de 23 de janeiro de 2006:
“Le fait de ne pouvoir justifier de ressources correspondant à son train de vie ou de ne pas pouvoir justifier de l’origine d’un bien détenu, tout étant en relations habituelles avec une ou plusieurs personnes quis soit se livrent à la commission de crimes ou de délits punis d’au moins cinq ans d’emprisonnement et procurant à celles-ci un profit direct ou indirect, soit sont les victimes d’une de ces infractions, est puni d’une peine de trois ans d’emprisonnement et de 75 000 d’amende.”
6.4 O facto de o chamado “enriquecimento ilícito” ter uma expressão praticamente nula no contexto jurídico-penal europeu contrasta, no domínio do direito fiscal, com um conjunto de institutos normativos que pretendem atingir ‘determinados acréscimos patrimoniais não justificados’ que são desvelados a partir da existência de uma desproporção entre o rendimento declarado e certas “manifestações de fortuna”, os quais, assim, se encontram funcionalmente dirigidos “à deteção de situações anómalas onde se verifique uma dissonância entre a capacidade contributiva revelada pelo contribuinte na aquisição de determinados bens e aqueloutra que é possível extrair a partir dos rendimentos por ele declarados” (cf. E. DE MITA, Fisco e Costituzione II, Milão, 1993, pp. 1174 e ss., MARIO TRIMELONI, “Le presunzione tributarie”, in AA. VV. (dir. ANDREA AMATUCCI), Tratatto di diritto tributário, II, Pádua, 1994, p. 235; JOÃO RODRIGUES, Critérios normativos de predeterminação da matéria tributável, Coimbra, 2003, pp. 37 e ss.).
Assim sucede, v.g., em Espanha (cfr. artigo 39.º da Ley del Impuesto sobre la Renta de las Personas Físicas), em França (cfr. artigo 168.º do Code Générale des Impôts) e em Itália, (com o redditometro instituído pelo Decreto del Presidente della Repubblica 29 settembre 1973, n. 600).
6.5 Já, entre nós, podemos encontrar, no mesmo âmbito, não só iniciativas ao nível do direito fiscal como, ainda, no domínio de previsões não fiscais.
No que ao primeiro se refere, temos, desde logo, a avaliação indiciária do rendimento tributável em função do confronto com certas manifestações de fortuna a qual veio a ser introduzida, sob proposta do Relatório da Comissão para o Desenvolvimento da Reforma Fiscal de 1996, pela Lei n.º 30-G/2000, de 29 de setembro, que aditou à Lei Geral Tributária (LGT) a alínea d) do artigo 87.º e o artigo 89.º-A, passando a prever-se o recurso aos métodos indiretos quando “os rendimentos declarados em sede de IRS se afastarem significativamente para menos, sem razão justificada, dos padrões de rendimento que razoavelmente possam permitir as manifestações de fortuna evidenciadas pelo sujeito passivo nos termos do artigo 89.º-A” (sendo estas: 1) a aquisição de imóveis de valor igual ou superior a € 250.000,00; 2) a aquisição de automóveis ligeiros de passageiros de valor igual ou superior a € 50.000,00 e motociclos de valor igual ou superior a € 10.000,00; 3) a aquisição de barcos de recreio de valor igual ou superior a € 25.000,00; 4) a aquisição de aeronaves de turismo; e, por fim, a realização de suprimentos e empréstimos feitos no ano de valor igual ou superior a € 50.000,00, como resulta da conjugação da alínea d) do artigo 87.º, com o n.º 4, do artigo 89.º-A da LGT).
E, mais tarde, a Lei n.º 55-B/2004, de 30 de dezembro, aditou ao artigo 87.º da LGT a alínea f), onde atualmente se dispõe haver lugar a avaliação indireta quando se verificar um “acréscimo de património ou despesa efetuada, incluindo liberalidades, de valor superior a € 100.000,00, verificados simultaneamente com a falta de declaração de rendimentos ou com a existência, no mesmo período de tributação, de uma divergência não justificada com os rendimentos declarados”, de modo a abranger outras “manifestações de fortuna” para além das tipificadas no n.º 4 do artigo 89.º-A da LGT (cf., sobre a questão, CASALTA NABAIS, “A Avaliação indireta e manifestações de fortuna na luta contra a evasão fiscal”, em Direito e Cidadania, n.º 20/21, 2004, Cabo Verde).
De notar, por pertinente à análise do problema de (in)constitucionalidade que nos ocupa, dois aspectos que decorrem desse regime legal.
Em primeiro lugar, a tributação decorrente das referidas manifestações de fortuna não é automática, dependendo sempre da ausência, por parte do contribuinte, de razões justificativas para o desvio. Para esse efeito, dispõe-se no artigo 89.º-A, n.º 3, da LGT, que “cabe ao sujeito passivo a prova de que correspondem à realidade os rendimentos declarados e de que é outra a fonte das manifestações de fortuna ou do acréscimo de património ou da despesa efetuada” (a redação inicial da norma contemplava a seguinte exemplificação: “herança ou doação, rendimentos que não esteja obrigado a declarar, utilização do seu capital ou recurso ao crédito”).
Por outro lado, resulta do n.º 10 do artigo 89.º-A, da LGT, que “a decisão de avaliação da matéria coletável com recurso ao método indireto constante deste artigo, após tornar-se definitiva, deve ser comunicada pelo diretor de finanças ao Ministério Público e, tratando-se de funcionário ou titular de cargo sob tutela de entidade pública, também à tutela destes para efeitos de averiguações no âmbito da respetiva competência”.
Como se compreende, tal preceito leva imanente, ao nível da sua configuração teleológica, que o rendimento desvelado pela existência das manifestações de fortuna resultantes da lei pode resultar da prática de atos penalmente censuráveis, não apenas na esfera dos crimes fiscais, mas também no âmbito de certos crimes contra o Estado, com o que se permite o desencadear de eventuais investigações nesses âmbitos.
Por sua vez, no que se refere às previsões não fiscais, deparamos, entre outros, com o crime de branqueamento de capitais (artigo 368.º-A do Código Penal), perda de vantagens (artigo 111.º do Código Penal) e perda de bens/confisco (artigo 7.º da Lei n.º 5/2002, de 11 de janeiro - Medidas de Combate à Criminalidade Organizada).
7. Posto este enquadramento, importa abordar as questões de (in)constitucionalidade suscitadas pelo requerimento sob apreciação, não havendo que seguir o iter traçado pelo requerente, mas sem o deixar, naturalmente, de ter no horizonte e, consequentemente, apreciar e decidir as mesmas.
Vejamos.
7.1 À apreciação de tais questões importa, desde logo, uma abordagem da legitimidade jurídico-constitucional da incriminação.
No seu pedido, o requerente invoca que o regime aprovado pela Assembleia da República viola o artigo 18.º, n.º 2 da Constituição, considerando que “podem ser encontradas outras formas de, protegendo os mesmos bens jurídicos, salvaguardar princípios constitucionais fundamentais, ademais quando aplicável a todas as pessoas” e que “na formulação adotada pelo Decreto, tanto mais que não são claros os bens jurídicos a proteger pela norma e pela respetiva incriminação”, sendo sempre que “tal indeterminação coloca em crise não só o juízo de proporcionalidade como a própria possibilidade concreta de definição do tipo legal”.
No que importa ao disposto no artigo 18.º, n.º 2 da CRP , enquanto parâmetro para aferir da legitimidade constitucional das incriminações, o Tribunal pronunciou-se, designadamente, no Acórdão n.º 426/91, onde, deixou explícito que “o objetivo precípuo do direito penal é, com efeito, promover a subsistência de bens jurídicos da maior dignidade e, nessa medida, a liberdade da pessoa humana.” Nessa medida, “a imposição de penas e medidas de segurança implica, evidentemente, uma restrição de direitos fundamentais, como o direito à liberdade e o direito de propriedade, que é indispensável justificar ante o disposto no n.º 2 do artigo 18.º da Constituição. Assim, uma tal restrição só é admissível se visar proteger outros direitos fundamentais e na medida do estritamente indispensável para esse efeito.”, e, igualmente de forma impressiva, no Acórdão n.º 108/99 em que destacou que “o direito penal, enquanto direito de proteção, cumpre uma função de ultima ratio. Só se justifica, por isso, que intervenha para proteger bens jurídicos – e se não for possível o recurso a outras medidas de política social, igualmente eficazes, mas menos violentas do que as sanções criminais. É, assim, um direito enformado pelo princípio da fragmentariedade, pois que há de limitar-se à defesa das perturbações graves da ordem social e à proteção das condições sociais indispensáveis ao viver comunitário. E enformado, bem assim, pelo princípio da subsidiariedade, já que, dentro da panóplia de medidas legislativas para a proteção e defesa dos bens jurídicos, as sanções penais hão de constituir sempre o último recurso.”.