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Proc.Nº 59/98 Sec. 1ª Rel. Cons. Vitor Nunes de Almeida
Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional: I - RELATÓRIO:
1 - F... foi condenado na pena de 5 anos de prisão pela autoria dos crimes de falsificação e roubo, por acórdão proferido no Tribunal de Círculo de Santo Tirso, mas, inconformado com esta decisão, dela interpôs recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, invocando entre outros fundamentos, a existência de erro notório na apreciação da prova.
O Supremo Tribunal de Justiça, após passar em revista a matéria de facto dada como provada pelo colectivo, afastou a existência de tal erro na apreciação da prova, mais afirmando, no que interessa ao presente recurso:
'Diz o recorrente que foram violados os princípios da presunção de inocência e 'in dubio pro reo'.
Analisemos.
O princípio da presunção de inocência está consagrado no nº 2 do art. 32º da C.R.P.
Aí é referido: 'Todo o arguido se presume inocente até ao trânsito em julgado da sentença de condenação devendo ser julgado no mais curto prazo compatível com as garantias de defesa'.
Comentando este preceito, dizem os Prof.G. Canotilho e V. Moreira: 'O princípio da presunção de inocência surge articulado ao princípio
'in dubio pro reo'. Além de ser uma garantia subjectiva, o princípio é também uma imposição dirigida ao juiz no sentido de este se pronunciar de forma favorável ao réu, quando não tiver certeza sobre os factos decisivos para a solução em causa.'
Do exposto flui que um 'non liquet' na questão da prova deve ser sempre valorado a favor do arguido.
Ora, tem este Supremo Tribunal vindo a entender em diversos arestos que não pode ser sindicada pelo Supremo Tribunal de Justiça a utilização ou não utilização pelo Tribunal 'a quo' do princípio 'in dubio pro reo', em virtude de lhe estar vedado o conhecimento da matéria de facto e esse princípio estar ligado à produção da prova.
Mas mesmo que se afaste tal entendimento uma coisa é certa: tal princípio só será sindicável se da decisão recorrida resultasse que o tribunal
'a quo' chegou a um estado de dúvida insanável e que face a ele escolheu a tese desfavorável ao arguido. Porém, não é esta a situação que 'in casu' a decisão nos revela, já que, como acima tivemos ensejo de explicitar, nada no acórdão aponta para esse estado de dúvida e os factos integram os ilícitos pelos quais o arguido foi condenado.
Não se mostram violados, pois, aqueles princípios, improcedendo também, nesta parte, a tese do recorrente.'
2. - É desta decisão que vem agora interposto recurso para o Tribunal Constitucional ao abrigo da alínea b) do nº 1 do artigo 70º da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, com fundamento 'em se reputar de inconstitucional a norma do artigo 410º do Código do Processo Penal [nas alegações, mais concretamente, vem indicado o nº 2 do artigo 410º] quando aplicada com a interpretação e o alcance dados àquele normativo por aquele Tribunal [refere-se ao Supremo Tribunal de Justiça] com violação do art. 32º, nº
2 da Constituição de 'não poder ser sindicada pelo Supremo Tribunal a utilização ou não utilização pelo Tribunal 'a quo' do princípio 'in dubio pro reo' em virtude de lhe estar vedado o conhecimento da matéria de facto e esse princípio estar ligado à produção da prova'.
O recorrente acrescenta ainda as seguintes conclusões:
'- do Acórdão recorrido não resulta provada a consciência de ilicitude do arguido, ou pelo menos qualquer homem médio ou o comum dos observadores de tal consciência teria sérias dúvidas, dadas as circunstâncias que indiciavam a resolução do contrato - o não pagamento do preço e o afirmado pelo pai do ofendido nas conversas tidas com o arguido;
- o Tribunal, de acordo com o princípio 'in dubio pro reo' deveria decidir no sentido de dar como provado o facto que beneficia o arguido, isto é, a presunção da resolução do contrato, que fazia como coisa sua e não alheia o veículo que pretendeu trazer à sua posse;
- Atento o exposto, ficam sérias dúvidas que estão preenchidos os requisitos dos crimes de roubo e falsificação de que o arguido foi acusado e condenado.
- Tendo a norma do nº 2 do art.410º do Código do Processo Penal sido interpretada e aplicada com o condicionalismo e alcance atrás descrito, violando o disposto no nº2 do art.32º da Constituição, mostra-se ela afectada de inconstitucionalidade material.
Neste termos, deve tal norma ser julgada inconstitucional, quando interpretada e aplicada em termos de se admitir que não pode ser sindicada pelo Supremo Tribunal a utilização ou não utilização pelo Tribunal 'a quo' do princípio 'in dubio pro reo' em virtude de lhe estar vedado o conhecimento de matéria de facto e esse princípio estar ligado à produção de prova', fazendo-se assim JUSTIÇA!'
É esta a tese sustentada pelo recorrente nas alegações que produziu neste Tribunal, enquanto o representante do Ministério Público, referindo que a jurisprudência do Tribunal Constitucional vem entendendo que o sistema de recursos vigente em processo penal é conforme à Constituição, tendo em conta o caso concreto, salienta, na conclusão 2ª das suas alegações:
'Não faz sentido invocar a violação do princípio 'in dubio pro reo' e pretender que o Supremo Tribunal de Justiça, ao abrigo dos poderes cogmitivos que lhe são conferidos pelo artigo 410º do Código de Processo Penal, sindique tal matéria, quando a matéria de facto considerada provada pelo colectivo é perfeitamente suficiente e concludente, em termos de preenchimento do tipo legal de crime imputado ao arguido'.
II - FUNDAMENTOS:
3. - Conforme acabou de se relatar, vem posta em causa a norma do nº 2 do artigo 410º do Código de Processo Penal, assinalando o recorrente, no requerimento de interposição, que houve prévia alegação de inconstitucionalidade nas alegações de recurso para o Supremo Tribunal de Justiça (STJ) nas conclusões 38ª a 43ª e 45º.
Não é exactamente essa a conclusão a que se chega por análise dos termos do processo. Com efeito, na motivação do recurso penal para o STJ, é iniludível que a inconstitucionalidade surge imputada em primeira linha à decisão e não é claro que se vise de forma inequívoca a norma questionada. Assim, sobretudo, nas conclusões, e aproveitáveis para a análise são tão só as conclusões 38ª e 45ª, o recorrente repete que a violação do nº 2 do artigo 32º da Constituição provem do acórdão. Só no corpo da motivação relaciona a violação do princípio da presunção da inocência do arguido com a alínea c) do nº 2 do artigo 410º do Código de Processo Penal.
Independentemente destas reservas que se deixam meramente advertidas, o certo é que o presente recurso não procede, como vai mostrar-se.
Na verdade, convém atentar em que o recorrente, nas conclusões das suas alegações, entende que o Supremo Tribunal de Justiça considerou que não poderia sindicar a utilização ou não utilização pelo Tribunal
'a quo' do princípio 'in dubio pro reo' em virtude de lhe estar vedado o conhecimento da matéria de facto e esse princípio estar ligado à produção da prova. Mas terá sido exactamente assim ?
Nos termos do acórdão recorrido, e que foram transcritos, o princípio 'in dubio pro reo' só será sindicável 'se da decisão recorrida resultasse que o tribunal 'a quo' [no caso o acórdão do colectivo] chegou a um estado de dúvida insanável e que face a ele escolheu a tese desfavorável ao arguido. Porém, não é esta a situação que 'in casu' a decisão nos revela, já que, como acima tivémos ensejo de explicitar, nada no acórdão aponta para esse estado se dúvida e os factos integram os ilícitos pelos quais o arguido foi condenado. Não se mostram violados, pois, aqueles princípios, improcedendo também, nessa parte, a tese do recorrente'.
Bem vistas as coisas, o Supremo Tribunal de Justiça, concluiu que o acórdão recorrido não violara o princípio do 'in dubio pro reo', visto que entendeu que o tribunal 'a quo' não se defrontara com um estado de dúvida insanável, em face do qual teria decidido em sentido desfavorável ao arguido. Mas fê-lo em conformidade com o que lhe era consentido pela lei aplicável, atendendo apenas aos termos que decorriam da peça condenatória, mas também dando aplicação às regras da experiência comum, como expressamente refere no acórdão agora sob recurso. O que o recorrente em última análise censura é que esse procedimento, sobre o qual não tem o Tribunal Constitucional de se pronunciar porque tal escapa aos seus poderes de cognição, não tenha implicado uma sindicância integral sobre a prova produzida. Não tenha implicado, por outras palavras, uma reavaliação da matéria de facto em termos que permitissem dar como não provados factos que a 1ª instância dera como provados.
4. - Chegados a este ponto, forçoso é entender que no presente recurso não está em causa, em primeira linha, a violação do princípio da presunção da inocência contido no nº 2 do artigo 32º, mas sim a eventual violação das garantias de defesa do arguido, asseguradas pelo nº 1 do mesmo artigo da Constituição, quando, em sede de recurso, os poderes de cognição da instância de recurso em matéria de facto não abarcam um novo juízo de confirmação ou de infirmação do sentido atribuído em julgamento anterior à prova de determinados factos. Só perante um segundo julgamento com essa amplitude se poderia colocar a questão da observância do princípio do 'in dubio pro reo', caso alegadamente existisse uma norma que alegadamente o contrariasse.
É a essa luz, ou seja à luz de uma possível violação do princípio das garantias de defesa do arguido por parte do nº 2 do artigo 410º do Código de Processo Penal, que a questão vai passar a ser analisada, atendendo a que, como resulta do artigo 79º-C da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, o Tribunal Constitucional não está vinculado à indicação feita pelos recorrentes das normas constitucionais alegadamente violadas.
5. - Sobre a questão dos poderes de cognição da instância de recurso em processo penal, tem o Tribunal Constitucional uma longa jurisprudência, que vem sendo seguida com uniformidade, embora com alguns votos de vencido. E entende-se que é de manter a orientação anterior, cujo fundamento não parece prejudicado pelas alterações introduzidas pela revisão constitucional de 1997 naquele nº 1 do artigo 32º, que passou a referir que as garantias de defesa em processo penal são extensivas ao recurso.
A questão básica que continua a pôr-se consiste em saber se da norma constitucional é possível derivar-se, quanto aos poderes de cognição em matéria de facto das instâncias de recurso, uma única concretização, que passe obrigatoriamente pela repetição da prova em audiência de novo julgamento, nomeadamente perante as Relações ou o Supremo Tribunal de Justiça. Não parece ser assim: decisivo é que o regime legal instituído proteja o arguido contra erros de julgamento e sentenças consequentemente injustas. Esse objectivo é servido por um recurso, como é o recurso penal interposto paro o Supremo Tribunal de Justiça do acórdão final do tribunal colectivo, estruturado como um recurso de revista ampliada, em que o Supremo é chamado a reapreciar a decisão da 1ª instância apenas no que à matéria de direito respeita, se bem que possa intervir quanto à matéria de facto nos casos contemplados nos nºs 2 e 3 do artigo 410º do Código de Processo Penal. Designadamente, quando verificar que houve erro notório na apreciação da prova
[alínea c) do nº 2 do artigo referido], que, no caso, foi fundamento de interposição do recurso, e que, a partir do texto da decisão e das regras da experiência comum, se entendeu não existir.
Conforme se sublinhou no Acórdão nº 1164/996, publicado no DR, IIS, de 14 de Março de 1997, ele próprio já uma síntese de anteriores tomadas de posição, no domínio da matéria de facto há 'razões de praticabilidade e outras, decorrentes da exigência da imediação da prova, justificativas de não poder o recurso penal assumir aí o mesmo âmbito e a mesma dimensão que em matéria de direito, bastando pensar que, nesse capítulo, uma identidade de regime conduziria, no limite, a ter de consentir-se sempre a possibilidade de uma repetição integral do julgamento perante o tribunal colectivo'
E continua o Acórdão nº 1164/96 sobre este ponto:
'No Acórdão nº 401/91 deste Tribunal (publicado no Diário da República, 1ª série-A, de 8 de Janeiro de 1992), ao declarar-se a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, da norma do artigo 665º do CPP de 1929, na interpretação que lhe foi dada pelo assento do STJ de 29 de Junho de 1934, teve-se em conta essa ponderação ao consignar-se expressamente que a inconstitucionalização desse regime não podia ser entendida «como significando que outra solução que não seja a repetição da prova em audiência perante as Relações está em conflito com a Constituição». E acrescentou-se: «É que, entre o sistema em questão (...), e o que ordenasse a repetição da prova em audiência perante o tribunal de recurso, outros há certamente (...) que não porão em causa as garantias de defesa que o processo criminal deve assegurar, por força do citado preceito constitucional.»
Ora, o sistema de revista ampliada, instituído pelo CPP de 1987, deve considerar-se como um desses sistemas constitucionalmente compatíveis, pois que protege o arguido dos perigos de um erro de julgamento (designadamente, de erro grosseiro na decisão da matéria de facto), assim o defendendo do risco de uma sentença injusta.
Estando em causa o recurso para o STJ dos acórdãos finais dos tribunais colectivos, há-de, desde logo, assinalar-se que o tribunal colectivo, tendo em conta as regras do seu próprio funcionamento e as que presidem à audiência de julgamento, constitui, ele próprio, uma primeira garantia no julgamento da matéria de facto.
A respeito da garantia resultante da estrutura dos tribunais colectivos, pode dizer-se, com Cunha Rodriges, que «assegurada a efectiva colegialidade do tribunal, garantido o contraditório e obtida uma tanta quanta possível imediação, o recurso do tribunal colectivo tem características particularmente nítidas de remédio jurídico. A previsão de um mecanismo de reapreciação dos factos não pode - não deve - ser senão uma válvula de segurança» (cf. «Recursos», in Jornadas de Direito Penal - O Novo Código de Processo Penal, Coimbra, 1992, p.393). Sem esquecer, por outro lado, que sempre o STJ poderá decretar a anulação da decisão recorrida ou determinar o reenvio do processo para novo julgamento quando apure a existência de insuficiência da matéria de facto, contradição insanável da fundamentação ou erro notório na apreciação da prova (cf., quanto ao reenvio, o disposto nos artigos 426º e 436º do CPP).
Entende-se que este quadro garantístico oferece uma protecção constitucionalmente adequada e defende os cidadãos, tanto quanto é legítimo extrair dos princípios, da prolação de sentenças injustas.'
Estas considerações permitem assim concluir pela não inconstitucionalidade da norma constante do nº 2 do artigo 410º do Código de Processo Penal, quando vista em confronto com o nº 1 do artigo 32º da Constituição. Mas as conclusões obtidas são imediatamente transponíveis para o plano da consideração de uma eventual violação da regra constante do nº 2 da mesma disposição constitucional, por uma norma, que é aquela que se extrai da alínea c) do nº 2 do artigo 410º do Código, que limita os poderes de cognição da instância de recurso à verificação da existência de erro notório na apreciação da prova, documentado no texto da decisão recorrida ou apurado pelas regras da experiência comum.
Com efeito, e não discutindo que o princípio da presunção de inocência tem como corolário o princípio do 'in dubio pro reo', o juízo a formular em sede de contencioso da constitucionalidade de normas tem de ter em conta o instituto da condenação penal na sua unidade de sentido, a que se subordinam as respectivas articulações e fases processuais. Neste contexto a aplicação do duplo grau de jurisdição no processo penal nos termos consagrados pela lei, continua a assegurar o respeito pela presunção de inocência do arguido. Esta é actuante na sua plenitude em sede de julgamento realizado com imediação da prova, mas, na fase recursória, continua a estar presente, designadamente quando, como é o caso, o tribunal 'ad quem' se pronuncia sobre o erro notório na apreciação da prova. É que, em face de erro notório, o STJ, se entender que não é possível decidir da causa, determinará o reenvio do processo para novo julgamento relativamente à totalidade do objecto do processo ou a questões concretamente identificadas na decisão de reenvio.
Esta orientação foi recentemente confirmada pelo Acórdão nº573/98, tirado em Plenário e publicado no 'Diário da República', II série, de
13 de Novembro de 1998.
Assim sendo, o presente recurso não pode proceder. III - DECISÃO
6. - Nos termos e pelos fundamentos expostos, o Tribunal Constitucional decide negar provimento ao recurso e, em consequência, confirmar o acórdão recorrido, na parte impugnada. Lisboa,1999.01.19 Vítor Nunes de Almeida Artur Maurício Maria Helena Brito Luís Nunes de Almeida José Manuel Cardoso da Costa