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Proc. nº 824/96 ACÓRDÃO Nº 315/97
1ª Secção
Rel: Cons. Ribeiro Mendes (Cons. Tavares da Costa)
Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional:
1. Nos autos à margem identificados, vindos do Supremo Tribunal de Justiça, em que é recorrente o A. e recorridos B. e sua mulher, C., o relator elaborou exposição, nos termos do art. 78º-A, nº 1, da Lei do Tribunal Constitucional, em que preconizou o não conhecimento do recurso de constitucionalidade por faltar, segundo o seu entendimento, 'um pressuposto
(...) exigido pelos artigos 280º, nº 5, da CR e 70º, nº 1, alínea g), da Lei nº
28/82: que a decisão tenha feito aplicação de norma anteriormente julgada inconstitucional pelo Tribunal Constitucional' (a fls. 92 dos autos).
Notificados do teor dessa exposição recorrente e recorridos, apenas o primeiro se pronunciou sobre a mesma, afirmando que a 2ª Secção do Tribunal Constitucional, no seu acórdão nº 1200/96, se debruçara sobre uma situação inteiramente idêntica - na medida em que as instâncias não haviam apurado 'o montante da pensão nem tão-pouco se o executado era pensionista', considerando que a pensão previdencial nomeada à penhora era totalmente impenhorável - entendendo que não faltava o pressuposto de admissibilidade de recurso e que se devia conhecer do seu objecto, sob pena de haver uma contradição com a jurisprudência firmada pelo Tribunal Constitucional nos acórdãos nºs. 411/93,
130/95 e 1200/96, entre outros, tendo efectivamente o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça aplicado a norma do art. 45º, nº 1, da Lei nº 28/84, por ter considerado desde logo o crédito do pensionista recorrido como totalmente impenhorável.
2. Corridos os vistos, foi apresentado pelo relator projecto de acórdão em consonância com a orientação constante da exposição de fls. 86 a 92.
Discutido o projecto, não logrou o mesmo vencimento, tendo, por isso, ocorrido mudança de relator.
Importa, por isso, relatar a tese que veio a triunfar quanto à questão prévia de não conhecimento do recurso suscitada pelo primitivo relator.
3. Da consulta dos autos, verifica-se que A. ora recorrente instaurou em 1993 uma execução de sentença na forma ordinária contra os ora recorridos, somando os créditos exequendos o total de 6.234.662$80. Citados os executados para pagar ou nomear bens à penhora em 26 de Novembro de 1993, nada disseram ou fizeram.
Tendo-se devolvido o direito de nomear bens à penhora ao exequente, nos termos do art. 836º, nº 1, alínea a), do Código de Processo Civil, veio este
último nomear todos os bens móveis existentes na residência dos executados, com o limite dos necessários e suficientes ao pagamento da quantia exequenda e custas e, caso esses móveis se mostrassem de valor insuficiente para o pagamento, desde logo se procedeu à nomeação à penhora de '1/3 da pensão de reforma auferida pelo executado marido através da Caixa Nacional de Pensões' (a fls. 9 e vº).
Como os executados tivessem mudado de residência, passando o executado marido a residir em casa da filha, o A. ora recorrente veio confinar a nomeação de bens à penhora apenas quanto à parte já indicada da pensão de reforma, mas esse requerimento foi indeferido por despacho de fls. 13 com o fundamento de que essas pensões são absolutamente impenhoráveis, nos termos do art. 45º, nº 1, da Lei nº 28/84, de 14 de Agosto (despacho de fls. 13).
Inconformado, interpôs o exequente recurso de agravo desse despacho, mas o mesmo veio a ser julgado improcedente por acórdão da Relação do Porto, proferido em 12 de Março de 1996, sem ter sido afrontada qualquer questão de constitucionalidade no mesmo.
De novo inconformado, interpôs o A. exequente novo recurso de agravo para o Supremo Tribunal de Justiça, mas este Alto Tribunal confirmou a decisão recorrida afirmando não haver dúvidas de que a impenhorabilidade prevista no referido artigo de lei abrangia as pensões de reforma pagas pela Segurança Social (acórdão de 9 de Outubro de 1996, a fls. 78 a 79 vº).
Face a este acórdão, veio o recorrente, 'ao abrigo do preceituado na alínea f) do nº 1 do art. 70 da Lei 28/82, de 15 de Novembro', interpor recurso de constitucionalidade do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, considerando que havia sido adoptada nesse acórdão 'interpretação que consagra um privilégio materialmente infundado', contrariando solução acolhida no Acórdão nº 411/93 do Tribunal Constitucional, publicado no Boletim do Ministério de Justiça, nº 428, pág. 250.
O recurso foi admitido por despacho de fls. 81.
4. Como se sustentou na exposição do primitivo relator, tem de considerar-se, por interpretação do requerimento de interposição do recurso, que o ora recorrente pretendeu impugnar o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça por este aplicar norma já julgada inconstitucional pelo Tribunal Constitucional, tendo certamente por lapso indicado a alínea f) em vez da alínea g) do nº 1 do art. 70º da Lei do Tribunal Constitucional. Tal lapso material não obsta a que se tenha por correctamente interposto o recurso.
Assente, pois, que o recurso interposto se enquadra na alínea g) do nº
1 do art. 70º da Lei do Tribunal Constitucional, importa averiguar se estão verificados in casu os pressupostos ou requisitos de admissibilidade do recurso.
De harmonia com o nº 5 do art. 280º da Constituição, 'cabe ainda recurso para o Tribunal Constitucional, obrigatório para o Ministério Público, das decisões dos tribunais que apliquem norma anteriormente julgada inconstitucional ou ilegal pelo próprio Tribunal Constitucional'. Como referem Gomes Canotilho e Vital Moreira, em comentário a este artigo e número, este tipo de recurso 'assenta no princípio do primado da competência do TC em questões de constitucionalidade', estando aberto à parte interessada, independentemente de ter suscitado previamente a questão de constitucionalidade (Constituição da República Portuguesa Anotada, 3ª ed., Coimbra, 1993, pág. 1021).
Apesar de o recorrente não ter suscitado qualquer questão de constitucionalidade durante o processo e de as instâncias e o Supremo Tribunal de Justiça não terem formulado qualquer juízo sobre a constitucionalidade do art. 45º, nº 1, da Lei nº 28/84, tal não constitui óbice, como se viu, à abertura da via do recurso contemplado no nº 5 do art. 280º da Constituição e na alínea g) do nº 1 do art. 70º da Lei do Tribunal Constitucional. Ponto é que a norma aplicada haja já sido julgada inconstitucional pelo Tribunal Constitucional.
Ora, no acórdão indicado como fundamento da oposição de julgados pelo recorrente, o Tribunal Constitucional 'julgou inconstitucional, por violação do preceituado nas disposições conjugadas dos artigos 13º, nº 1, e 62º, nº 1, da Constituição, a norma do artigo 45º, nº 1, da Lei nº 28/84, de 14 de Agosto (Lei da Segurança Social), apenas na medida em que isenta de penhora a parte das prestações devidas pelas instituições de segurança social que excede o mínimo adequado e necessário a uma sobrevivência condigna' (in Diário da República, II Série, nº 15, de 19 de Janeiro de 1994). Quer dizer, em vez de julgar inconstitucional toda a norma, julgou apenas um segmento ideal da mesma. O Supremo Tribunal de Justiça, por seu turno, não suscitou o problema da inconstitucionalidade da norma, aplicando-a sem reservas, em termos de confirmar o indeferimento judicial da nomeação à penhora de um terço dessa pensão, sem curar de se saber se a pensão era efectivamente devida e qual o seu montante.
O Supremo Tribunal de Justiça aplicou, pois, a norma com um sentido que impedia uma ulterior ponderação judicial sobre se o montante da pensão era de tal modo exíguo que a efectivação da penhora de um terço dessa quantia poderia exceder o 'mínimo adequado e necessário a uma sobrevivência condigna'. Embora o juízo de inconstitucionalidade feito pelo Tribunal Constitucional abranja apenas um segmento ideal de norma aplicada pelo Supremo, a verdade é que aquela aplicação contradiz na prática o juízo de inconstitucionalidade que o Tribunal Constitucional fez em certos casos - nomeadamente no acórdão - fundamento nº
411/93.
Sendo certo que, como se afirmou na exposição do primitivo relator, houve 'uma mensuração da conjugação normativo-constitucional em causa, não extensível a toda a norma', no acórdão-fundamento, o certo é que, no acórdão recorrido, o juízo implícito sobre a plena validade de toda a norma do art. 45º, nº 1, da Lei da Segurança Social se situou num plano oposto e logicamente incompatível, na medida em que tal entendimento inviabilizaria, em todo e qualquer caso, um juízo da inconstitucionalidade parcial no aludido segmento.
A circunstância de não ter havido qualquer ponderação deste cariz - motivado pelo entendimento implícito de que o mesmo carecia de sentido, dada a plena conformidade constitucional da norma no seu todo - demonstra precisamente que o Supremo Tribunal de Justiça aplicou a norma de forma divergente ou contrária em relação à jurisprudência do Tribunal Constitucional, fixada em 1991 e reafirmada em sucessivas decisões a partir de 1993, já que esta exige que se faça uma ponderação em concreto da solução da impenhorabilidade para determinar os casos em que o preceito legal é conforme ou desconforme com os indicados preceitos constitucionais.
Verificam-se, assim, os pressupostos ou requisitos de admissibilidade deste recurso.
5. Acrescente-se, aliás, que a norma aplicada pelo acórdão recorrido se acha revogada, a partir de 1 de Janeiro de 1997, por força da nova redacção no art. 824º, nº 1, alínea b), do Código de Processo Civil, explicitando-se no preâmbulo do Decreto-Lei nº 329-A/95, de 12 de Dezembro, que essa revogação decorreu da jurisprudência do Tribunal Constitucional, aludindo-se especialmente aos acórdãos nºs. 349/91 e 411/93.
6. Termos em que se decide desatender a questão prévia de não conhecimento do objecto do recurso, suscitada na exposição do primitivo relator, e ordenar a prossecução dos trâmites subsequentes do recurso de constitucionalidade.
Lisboa, 17 de Abril de 1997 Armindo Ribeiro Mendes Antero Alves Monteiro Diniz Maria da Assunção Esteves Maria Fernanda Palma Alberto Tavares da Costa (vencido, pelos termos da declaração de voto junta)
DECLARAÇÃO DE VOTO
Vencido, por continuar a entender, salvo o devido respeito, que a situação concreta não é subsumível à previsão da alínea g) do nº
1 do artigo 70º da Lei nº 28/82.
Nas decisões que deram origem aos acórdãos nºs
349/91, 411/93 e outros posteriormente lavrados - como o nº 1200/96 - houve recusa explícita de aplicação da norma do nº 1 do artigo 45º da Lei nº 28/84 (e, consequentemente, os recursos foram interpostos ao abrigo da alínea a) do nº 1 do artigo 70º da Lei nº 28/82). Não assim no caso sub judice em que se prescindiu da ponderação em concreto da solução de impenhorabilidade.
Continua-se, assim, a sustentar a tese do projecto de acórdão elaborado no desenvolvimento lógico da exposição oportunamente feita de acordo com o disposto no nº 1 do artigo 78º-A daquela Lei nº 28/82, transcrevendo-se, a este propósito, parte do que então se escreveu:
'No acórdão nº 411/93 que o recorrente invoca, considerou-se que a impenhorabilidade das prestações atribuídas pelas instituições de segurança social representa um sacrifício do direito do credor e, portanto, uma restrição ao direito à propriedade privada, garantido pelo artigo 62º, nº 1, da CR. Mas, ponderou-se ser esse sacrifício legítimo na medida em que for necessário para assegurar a sobrevivência condigna do devedor. E, desenvolvendo, remeteu-se para o exposto no acórdão nº 232/91
(publicado no Diário da República, II Série, de 17 de Setembro de 1991), confortado com o princípio da dignidade da pessoa humana, acolhido no artigo 1º da CR, só não sendo contitucionalmente legítimo o sacrifício do direito do credor 'na parte em que a pensão exceda o necessário e adequado para assegurar esse mínimo de sobrevivência condigna'.
E, após igualmente se afastar a tese da violação do artigo 13º da CR, uma vez que o princípio da igualdade não impede que se distingam situações, apenas impede distinções discriminatórias, sem um fundamento material bastante ou razoável, o que não se verifica no caso, como também se concluiu no acórdão nº 349/91, publicado na II Série do mesmo jornal oficial, de 2 de Dezembro de 1991, o aresto que vimos seguindo, nº 411/93, julgou a norma do citado nº 1 do artigo 45º inconstitucional, por violação do preceituado nas disposições conjugadas dos artigos 13º, nº 1, 62º, nº 1, da CR, mas tão só numa determinada dimensão: 'na medida em que isenta de penhora a parte das prestações devidas pelas instituições de segurança social que excede o mínimo adequado e necessário a uma sobrevivência condigna'.
Houve, assim, uma mensuração da conjugação normativo-constitucional em causa, não extensível a toda a norma sindicanda, o que foi possível porque, como se consignou no acórdão, 'o tribunal a quo teve em conta o montante da pensão, a norma do artigo 45º, nº 1, da Lei nº 28/84 e as normas do Código de Processo Civil que estabelecem os critérios gerais da penhorabilidade de pensões; e, face à ponderação que fez dos elementos de facto, concluiu que a norma em causa, quando aplicada na concreta situação em apreço, violava o princípio constitucional da igualdade'.
Identicamente se pronunciou já este Tribunal, em várias ocasiões: cfr., além dos já citados, os acórdãos nºs. 441/93, 94/95 e
130/95, publicados no Diário da República, II Série, de 19 de Janeiro de 1994 e
19 e 24 de Abril de 1995, respectivamente.
Não é esta a situação vertente.
Na verdade, no caso sub judicio, não houve, nas instâncias, qualquer ponderação deste cariz - e a competência do Tribunal Constitucional não lhe permite ir mais além. A decisão aplicou a norma, na sua globalidade, não se tendo sequer apurado o montante da pensão como decorre da consulta dos autos (aliás, nem tão pouco consta do processo se o executado é, na verdade, pensionista).'
Vítor Nunes de Almeida (vencido, pelos fundamentos da declaração de voto do Conselheiro Tavares da Costa) José Manuel Cardoso da Costa