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Proc.Nº 867/96 Sec. Plenário Rel. Cons. Vitor Nunes de Almeida Acordam, em Plenário, no Tribunal Constitucional: I - RELATÓRIO:
1. - A. P. veio embargar a execução por falta de pagamento de livrança que lhe foi movida pelo BANCO P...,SA, invocando que o título dado à execução não dispunha das características indispensáveis para poder ser considerado uma livrança ou outro tipo de título de crédito. Contestados os embargos, foi proferida decisão que julgou improcedentes os embargos, absolvendo o Banco. Não se conformando com o assim decidido, o executado recorreu para o Tribunal da Relação de Lisboa, pretendendo a revogação da decisão proferida. Na Relação, a questão suscitada sobre a natureza do título em causa foi decidida pelo acórdão de 14 de Março de 1995, que julgou os embargos procedentes e, em consequência revogou a sentença recorrida, declarando a inexequibilidade do título em que se baseou a acção executiva. O Banco, por sua vez inconformado com tal decisão, interpôs recurso para o Supremo Tribunal de Justiça (adiante, STJ), no qual formulou as seguintes conclusões:
'1............................................
2.............................................
3. O embargante recorrido, ao emitir a declaração de aval à subscritora, assumiu a obrigação cambiária correspondente à declaração de aval.
4. O embargante recorrido quis dar um aval à sociedade subscritora de uma livrança e declarou essa mesma vontade através de uma declaração de aval.
5. A declaração do embargante recorrido não é uma declaração hipotética, porque resulta da análise do próprio título.
6. O formalismo a que deverá obedecer a utilização dos títulos de crédito não permite que se prescinda da vontade conhecida das partes.
7. A utilização pelo embargante recorrido do invocado fundamento da existência na livrança da palavra pagará em lugar da palavra pagarei ou pagaremos, constitui uma forma de abuso de direito, porque a sua real vontade foi a de assumir uma obrigação cambiária e o seu comportamento ao assinar a declaração de aval não é compatível com a utilização de embargos de executado com fundamento na inexistência de título executivo.
8. A livrança dada à execução constitui título executivo, nos termos dos artºs
46º e 51º do C.P.Civil.'
Pelo seu lado, o embargante e ora recorrido, nas suas contra-alegações, conclui da seguinte forma:
'1 - O documento em que se baseia a execução, não é uma livrança.
2 - A livrança é um título de crédito que contém uma promessa de pagamento de uma quantia determinada.
3 - O documento dos autos não contém nenhum elemento que possa consagrar uma promessa de pagamento.
4 - De facto a palavra Letra nele impressa, foi considerada não escrita, e a expressão pagará V.Srª, não foi objecto de modificação.
5 - As características e princípios específicos que enformam os títulos de crédito - incorporação, literalidade, abstracção e autonomia - aliados à sua natureza e função, implicam que estes estejam submetidos a uma disciplina própria que afasta a possibilidade de lhes serem aplicados os princípios fundamentais do negócio jurídico.
6 - A vontade real ou hipotética das partes não prevalece perante o formalismo rigoroso que deve presidir em matéria de título de crédito.' O STJ, por acórdão de 31 de Janeiro de 1996, considerando que a questão tem sido controvertida na jurisprudência, quer dando-se prevalência à vontade real das partes quer ao rigor formal dos títulos de crédito, decidiu, ainda que com um voto de vencido, conceder a revista, concluindo que o título em questão é efectivamente uma livrança. O embargante, não se conformando com o assim decidido, resolveu interpor recurso por oposição de julgados para o Pleno do STJ, indicando como acórdão de oposição o proferido em outro processo, datado de 29 de Setembro de 1993 e publicado na Colectânea de Jurisprudência, Ano I, tomo III, pág. 34, de que juntou fotocópia. Sobre este requerimento de interposição de recurso, veio a recair um despacho do Conselheiro Relator, do teor seguinte:
'O acórdão recorrido foi proferido em 31 de Janeiro último e o recurso para o Tribunal Pleno foi interposto em 12 de Fevereiro seguinte. XXX Deste modo, considerando que o Dec.-Lei nº 329-A/95, de 12.112, no seu artigo
17º revogou, de imediato, os artºs 763º, a 770º do CPC, cuja entrada em vigor se processou em 8 de Janeiro p.p., isto é, anteriormente à prolação do acórdão recorrido e ao recurso que dele se interpôs para o Tribunal Pleno, entende-se, conforme posição dominante neste Supremo Tribunal de Justiça, que o recurso interposto não é admissível.'
Não tendo sido recebido o recurso interposto, o embargante e recorrido reclamou para a conferência, tendo aí suscitado várias questões, assim tratadas:
- O recorrente considera que a não apreciação do recurso interposto para o Plenário do STJ ofende o direito à segurança estabelecido na Constituição, pois, estando no caso em apreço verificados todos os pressupostos para a intervenção do Plenário, ela não ocorreu pelo facto de a revogação dos artigos 763º a 770º do CPC ter efeito imediato, segundo o artigo 17º, nº1, do Decreto-Lei nº
329-A/95, de 12 de Dezembro;
- Também o recorrente considera que, no caso, se violou o princípio da igualdade, consagrado no artigo 13º da Constituição, porquanto se a decisão judicial tivesse sido proferida pouco mais de um mês antes da data em que o foi, o recorrente teria a possibilidade de provocar um assento sobre a matéria em que se verificava a divergência jurisprudencial; e se viesse a se proferida uns meses mais tarde, também o recorrente poderia provocar uma decisão obrigatória para os tribunais judiciais, através da figura da revista ampliada, o que não sucede com o caso dos autos, por, no momento da decisão, o diploma que admite tal figura não ter entrado ainda em vigor, o que, seguramente, viola a igualdade de tratamento dos cidadãos perante a lei. Assim, o recorrente considera que, ao contrário da interpretação feita na decisão recorrida, a única interpretação não inconstitucional e não contrária aos princípios da ordem jurídica portuguesa é a de considerar que o artigo 17º, nº1, do Decreto-Lei nº 329-A/95, de 12 de Dezembro, deve ser objecto de interpretação restritiva, considerando-se plenamente em vigor os artigos 763º a
770º do CPC até à entrada em vigor da reforma processual civil que se encontra em «vacatio legis». O Banco reclamado, notificado para responder à reclamação, veio dizer que o recorrente e reclamante não tem qualquer razão pois é manifesta a vontade do legislador no sentido da imediata entrada em vigor do artigo 17º, isto é, da imediata revogação dos artigos 763º a 770º do CPC, referindo-se as ulteriores prorrogações da entrada em vigor das demais alterações às modificações do diploma, com excepção do artigo 17º em questão. O STJ, por acórdão de 30 de Outubro de 1996, decidiu não admitir o recurso para o Tribunal Pleno, aderindo à posição do relator de fls. 119.
É deste acórdão que vem interposto o presente recurso de constitucionalidade, interposto ao abrigo da alínea b) do nº1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional (Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, alterada pelas Leis nºs 143/85, de 29 de Novembro, 85/89, de 7 de Setembro e 88/95, de 1 de Setembro). Segundo o requerimento de interposição do recurso é o seguinte o seu objecto:
'A decisão de que se recorre, ao aplicar o artigo 17º, do Dec.-Lei nº 329-A/95, de 12/12 viola, no entender do recorrente, o princípio Constitucional estabelecido no nº1 do artº 27º da C.R.P.. Pois essa norma impossibilitando o recurso ao Pleno do Supremo Tribunal para harmonização de julgados proferidos pelas secções do Tribunal de última instância, afecta toda uma previsibilidade de fenómenos, logo, o direito à segurança, numa das suas não menos importantes vertentes, que se consagrou no supra citado preceito constitucional. Viola ainda, na óptica do recorrente, o princípio constitucionalmente consagrado da igualdade dos cidadãos perante a Lei (artº 13º da C.R.P.).'
2. - Neste Tribunal, quer o recorrente quer o recorrido apresentaram as respectivas alegações, tendo o primeiro concluído as suas pela forma seguinte:
'1- O artº 17º, nº1, do Decreto-Lei nº 329-A/95, de 12 de Dezembro, ao tornar imediatamente aplicável a supressão dos assentos do ordenamento jurídico português, sem que tivesse compatibilizado o efeito da revogação dos artºs 763º a 770º, do CPC, com o início da vigência da reforma processual civil que aquele diploma consagrou, é violadora de direitos e princípios constitucionais que assistem aos cidadãos;
2 - Os assentos, efectivamente, constituíam uma garantia radicada na esfera jurídica dos cidadãos de que as suas causas poderiam ser reapreciadas se para elas fosse encontrada uma solução concreta contrária ao que seria de esperar, perante jurisprudência anterior;
3 - Essa garantia tinha a sua concretização prática na segurança das decisões judiciais, assegurada e sentida através da uniformidade da jurisprudência que os assentos acautelavam;
4 - A garantia que o recorrente tinha de ver a causa julgada pelo Pleno do Supremo Tribunal de Justiça é tutelada constitucionalmente;
5 - Com efeito, quando a lide se iniciou e mesmo quando o recurso de revista foi interposto, a questão de direito suscitada pelo recorrente nos seus embargos à execução ordinária instaurada pelo BPA, poderia vir a ser apreciada pelas secções cíveis do STJ reunida em plenário;
6 - Os pressupostos de que dependia o recurso para o tribunal pleno estavam verificados;
7 - Através desse recurso seria reapreciada a decisão proferida nos autos e, dessa forma, concretizado o direito à segurança da previsibilidade das decisões judiciais, só alcançável através da uniformização da jurisprudência;
8 - Era essa a expectativa que o recorrente tinha, pois eram essas as regras processuais ao tempo em vigor e estavam reunidos os pressupostos para que tal sucedesse;
9 - Porém, só porque o acórdão que decidiu a causa foi proferido depois da publicação e entrada em vigor do Decreto-Lei nº 329-A/95, o recorrente ficou impedido de recorrer para o Pleno do STJ;
10 - Ficou também sem possibilidade de requerer o julgamento ampliado da revista, previsto nos artºs 732º-A e 732ºB do CPC, porque estes preceitos não tinham ainda entrado em vigor;
11 - O direito que os cidadãos têm à segurança das decisões judiciais, concretizada na uniformização da jurisprudência e de que os assentos eram um garante, não foi ignorada nem postergada pelo legislador;
12 - Efectivamente, quando no domínio da mesma legislação e sobre a mesma questão fundamental de direito, venha a ser proferida uma decisão que esteja em oposição com jurisprudência anteriormente firmada, o acórdão deve ser tirado com intervenção do plenário das secções cíveis, como prevêem os artºs 732-A e 732-B do CPC;
13 - E assim é para assegurar a uniformidade das decisões judiciais;
14 - Através do novíssimo julgamento ampliado de revista continuará a ser atingida a segurança garantida pela previsibilidade da solução jurídica conferida a cada situação em concreto, no domínio da mesma legislação e versando a mesma questão fundamental de direito;
15 - Por outro lado, entre a revogação dos artºs 763º a 770º do CPC e a entrada em vigor e a entrada em vigor dos artºs 732-A e 732-B do mesmo diploma, medeou cerca de um ano;
16 - Durante esse lapso de tempo não foi possível aos cidadãos nem recorrer para o pleno do STJ nem requerer o julgamento ampliado da revista, ainda que verificados os pressupostos de que a lei adjectiva faz depender o recurso a essas instâncias;
17 - Contudo, se a prolação tivesse ocorrido um mês antes, ou se porventura tivesse sido proferido um ano depois, já ao recorrente era lícito assegurar a uniformização da jurisprudência, com a inerente e evidente segurança em que ela se traduz, através da apreciação do seu caso por todos os juízes das secções cíveis do Supremo, o que se atingiria quer por assento quer por acórdão tirado em revista ampliada;
18 - O preceito legal em causa neste recurso, coloca o recorrente numa situação de desfavor e de desigualdade perante os outros cidadãos que tiveram oportunidade de suscitar a reapreciação dos seus casos através do recurso ao tribunal pleno e daqueles que, nas circunstâncias, poderão requerer a intervenção do plenário das secções cíveis do Supremo para julgarem as suas causas;
19 - Quer numa quer noutra das hipóteses será sempre assegurada a uniformidade de julgados, evitando-se o arbítrio, a incerteza e a insegurança que a diversidade de soluções para idênticas questões de direito e tomadas no domínio da mesma legislação acarretam;
20 - Por estas razões considera o recorrente que o artº 17º, nº1, do Decreto-Lei nº 329-A/95, de 12 de Dezembro é inconstitucional, por não respeitar os artºs
13º,18º, nºs 1 e 3, e 27º, nº1 da Constituição da República Portuguesa, preceitos que foram violados pela decisão do Supremo Tribunal de Justiça que não recebeu a reclamação contra o indeferimento do recurso interposto para o tribunal pleno;
21 - Deve, assim, ser declarada a inconstitucionalidade do artigo 17º, nº1, do referido Decreto-Lei, com as consequências daí resultantes.' O recorrido, pelo seu lado, sem formular quaisquer conclusões, apresentou alegações em que defende a inexistência de qualquer inconstitucionalidade afectando o artigo 17º, nº1, do Decreto-Lei nº 329-A/95, de 12 de Dezembro. Cumpre apreciar e decidir.
II - FUNDAMENTOS:
3. - Da conjugação entre o requerimento de reclamação para o Presidente do STJ no qual foi levantada a questão de constitucionalidade e o de interposição de recurso, decorre claramente que não é exactamente a pura e simples aplicação da norma do nº1 do artigo 17º do Decreto-Lei nº 329-A/95, de 12 de Dezembro que está em causa, mas sim a interpretação desta norma feita na decisão recorrida e cuja conformidade constitucional o recorrente pretende ver confirmada ou infirmada. Esta interpretação é a seguinte: A norma do nº 1 do artigo 17º do Decreto-Lei nº 329-A/95 é inconstitucional se interpretada como impondo a revogação imediata das normas que regulam o recurso para o Pleno do STJ, por oposição de julgados, sem que esteja em vigor o sistema de uniformização de julgados, já constante do mesmo diploma mas cuja entrada em vigor foi protelada. A norma questionada nos autos pelo recorrente tem a seguinte redacção: Artigo 17º
1 - É imediatamente aplicável a revogação dos artigos 763º a 770º do Código de Processo Civil, sem prejuízo do disposto nos números seguintes.
2 - Os assentos já proferidos têm o valor dos acórdãos proferidos nos termos dos artigos 732º-A e 732º-B.
3 - Relativamente aos recursos para o tribunal pleno já intentados, o seu objecto circunscreve-se à resolução em concreto do conflito, com os efeitos decorrentes das disposições legais citadas no número anterior. Esta norma está em íntima relação com a norma anterior do Decreto-Lei nº
329-A/95, o artigo 16º, que rege sobre a entrada em vigor do diploma e cujo teor
é o seguinte:
Artigo 16º
1 - O presente diploma entra em vigor em 1 de Março de 1996 e só se aplica aos processos iniciados após esta data, salvo o estipulado no número seguinte.
2 - O disposto no capítulo VI do título II do livro III do Código de Processo Civil é aplicável aos recursos interpostos de decisões proferidas após a data a que se refere o número anterior, com excepção do preceituado nos artigos 725º e
754º, nº2. A esta norma foi dada nova redacção pelo Decreto-Lei nº 180/96, de 25 de Setembro: 'Sem prejuízo do disposto no artigo 17º, o Decreto-Lei nº 329-A/95, de
12 de Dezembro, com as modificações decorrentes do presente diploma, entra em vigor em 1 de Janeiro de 1997 e só se aplica aos processos iniciados após essa data, salvo o estipulado no artigo 13º e nos artigos seguintes.' Verifica-se, assim, que o diploma que introduziu profundas alterações no processo civil fixou a data da respectiva entrada em vigor - a qual, aliás, veio a ser alterada para 1 de Janeiro de 1997 - mas, no que respeita às normas reguladoras do recurso para o tribunal pleno por oposição de julgados (os artigos 763º a 770º), o diploma determinou que a sua revogação era imediatamente aplicável, fazendo acompanhar esta determinação de duas normas transitórias: por um lado, aos assentos já proferidos apenas é atribuído o valor dos acórdãos de uniformização de jurisprudência previstos nos artigos 732º-A e 732º-B, e, por outro lado, se houver recursos já interpostos para o tribunal pleno, o respectivo objecto limita-se à resolução do conflito com os efeitos do recurso de uniformização de jurisprudência a que se reportam as disposições citadas atrás. A revogação dos artigos 763º a 770º consta do artigo 3º do Decreto-Lei nº
329-A/95 e, caso não existisse a norma do nº1 do artigo 17º, tal revogação só entraria em vigor com o restante diploma. Com a separação das datas do início de vigência do diploma e da revogação das normas que regulavam o recurso para o tribunal pleno gerou-se uma situação propiciatória de um caso não directamente previsto nas normas transitórias: um recurso para o tribunal pleno interposto depois de terem sido revogadas aquelas normas e antes de ter entrado em vigor o regime constante dos artigos 732º-A e
732º-B.
É uma situação idêntica que os autos indiciam e na qual, segundo o recorrente, a interpretação feita pela decisão recorrida viola não só o nº1 do artigo 27º (o direito à segurança) como também o artigo 13º (o princípio da igualdade). Vejamos.
4. - O recurso para o Tribunal Pleno do STJ, que se encontrava regulado nos artigos 763º a 770º do Código de Processo Civil (adiante, CPC), tem uma tradição muito antiga no ordenamento processual português e os «assentos» que, em caso de procedência de tal recurso eram tirados, constituem, em regra, elementos valiosos para a fixação doutrinal do direito no nosso país (veja-se, sobre as origens históricas do instituto, Ribeiro Mendes, Recursos em processo civil, Lisboa,1992,pág.273.). Não interessando aqui expor o regime de tal recurso, interessa apenas reter que, no caso de serem proferidas pelo STJ (ou pelas Relações), no domínio da mesma legislação, duas decisões que, sobre a mesma questão de direito, assentem sobre soluções opostas, era admissível recurso do acórdão proferido em último lugar para o tribunal pleno. Este recurso, numa primeira fase que decorria na própria secção que proferira a decisão recorrida, era objecto de uma decisão prévia que resolvia, por forma definitiva, se se verificavam ou não os pressupostos de sua admissibilidade. Admitida a existência de um conflito de jurisprudência, o recurso subia a plenário para aí se proceder ao julgamento do objecto do recurso. No caso em apreço, o recorrente invocando a contradição de julgados interpusera recurso para a sua resolução. Mas, pelo simples facto de se ter verificado entretanto a revogação das normas que regulavam tal recurso, não foi o mesmo admitido, protestando o recorrente a violação do princípio da igualdade, pois, se a decisão recorrida tivesse sido proferida pouco mais de um mês antes, ainda podia ter visto o recurso admitido e, se porventura, ela tivesse sido proferida uns meses depois, então já o recorrente poderia utilizar o recurso a que chama de «revista ampliada» e que tal como o recurso por oposição de julgados permitiria uma última apreciação da questão e uniformização da jurisprudência. A interpretação atribuída na decisão recorrida ao nº1 do artigo 17º do Decreto-Lei nº 329-A/95, de 12 de Dezembro, viola o princípio da igualdade? Vejamos.
5. - De acordo com o preceituado no artigo 13º da Constituição, todos os cidadãos têm a mesma dignidade social e são iguais perante a lei (nº1) não podendo ninguém ser privilegiado, beneficiado, prejudicado, privado de qualquer direito ou isento de qualquer dever em razão da ascendência, sexo, raça, língua, território de origem, religião, convicções políticas ou ideológicas, instrução, situação económica ou condição social (nº2). Princípio estruturante do Estado de direito democrático e do sistema constitucional, o princípio da igualdade vincula directamente os poderes públicos, tenham eles competência legislativa, administrativa ou jurisdicional
(cf. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 3º Ed. Coimbra, 1993,pág.125 e ss). Essencialmente e para o que ao caso interessa, o princípio da igualdade, enquanto princípio de conteúdo pluridimensional, postula várias exigências, entre as quais a de obrigar a um tratamento igual das situações de facto iguais e a um tratamento desigual das situações de facto desiguais, por forma a que
«aquilo que é igual seja tratado igualmente, de acordo com o critério da sua igualdade e aquilo que é desigual seja tratado desigualmente, segundo o critério da sua desigualdade», vinculando em primeira linha o legislador ordinário, na sua dimensão material. Assim, dentro da liberdade de conformação legislativa, a igualdade não impede o
órgão legislativo de definir as circunstâncias e os factores que tem como relevantes e que podem, na sua óptica, justificar uma desigualdade concreta de um dado regime jurídico, mas veda-lhe o arbítrio e a discricionaridade legislativa, proibindo tratamentos desiguais em igualdade de circunstâncias objectivas e subjectivas e impõe o tratamento desigual em situações desiguais, salvo se ocorrerem motivos razoáveis que justifiquem diferente actuação. No caso que, em concreto, resulta dos autos, a fixação, num dado momento, da revogação das normas dos artigos 763º a 770º do CPC, apenas poderia brigar com o princípio da igualdade se houvesse tratamentos desiguais para situações iguais e sincrónicas, o que não acontece em relação à norma questionada: na sua aplicação a falta do elemento de «simultaneidade» dos tratamentos sempre arredaria a subsumpção da norma ao vício da inconstitucionalidade por violação do princípio da igualdade, que, como o Tribunal tem afirmado, não opera diacronicamente (cf. Acórdãos nºs 34/86 e 309/93, in Acórdãos do Tribunal Constitucional, respectivamente, Vol.7º, Tomo I, pág. 37, e Vol.24,pág.185 e Acórdão nº563/96, ainda inédito). Tem, pois, de se concluir que a norma do nº1 do artigo 17º do Decreto-Lei nº
329-A/95, de 12 de Dezembro, na interpretação feita na decisão recorrida, não padece de inconstitucionalidade por violação do princípio da igualdade. Mas padecerá tal norma, como pretende o recorrente, de «défice» de constitucionalidade, por violação do princípio da segurança?
6. - A norma do artigo 27º, nº1, da Constituição refere-se, sem dúvida, ao direito à liberdade e à segurança; só que esta norma não pode ser o parâmetro que o recorrente pretende para a violação que invoca e tal como a desenha. De facto, o nº1 do artigo 27º garante não só o direito à liberdade como também a segurança pessoal, isto é, o exercício seguro e tranquilo dos direitos, liberto de ameaças e agressões (cf. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 3º Ed.,pág. 184), concretizado num direito subjectivo à segurança (direito de defesa),por um lado, e por outro, no direito
à protecção contra ameaças ou agressões de outrem. Ora, a violação que o recorrente concretiza nas suas alegações e que vem suscitando desde a reclamação para o Presidente do STJ não tem a ver com a segurança pessoal a que se reporta o nº1 do artigo 27º, mas antes com a segurança jurídica ou mais especificamente com o princípio da protecção da confiança ínsito na ideia do Estado de direito democrático, consagrado no artigo
2º da Constituição. Com efeito, existindo no nosso direito processual civil, onde tem profundas tradições, um sistema de resolução de conflitos jurisprudenciais, através da instituição de um recurso ordinário com fundamento em oposição de julgados que terminava, quando se constatava judicialmente tal oposição, pela emissão de uma
«assento», a imediata revogação das normas que integravam tal instituto, sem que o novo «instituto» criado no ordenamento jurídico para 'substituir' aquele venha a entrar em vigor em simultaneidade com aquela revogação, configura-se a possibilidade de quem pretender accionar tal mecanismo ficar de um momento para o outro sem possibilidade de recurso e, em tal situação, poder hipotizar-se a violação da confiança que os cidadãos devem ter na estabilidade do ordenamento jurídico para realização das respectivas finalidades. A protecção da confiança dos cidadãos e da comunidade na ordem jurídica na actuação do Estado obriga este, para que a vida em comunidade decorra com normalidade e sem sobressaltos, à garantia de um mínimo de certeza e de segurança do direito das pessoas e das expectativas que lhes são juridicamente criadas, pelo que uma alteração legislativa que modifique de forma intolerável, arbitrária ou demasiado opressiva aqueles mínimos de certeza e segurança que devem ser respeitados não pode deixar de contender com tal princípio constitucional. O cidadão deve poder prever que as intervenções legislativas do Estado se façam segundo uma certa lógica racional e por forma a que ele se possa preparar para adequar a sua futura actuação a tais intervenções e de tal modo que uma tal actuação possa ser reconhecida na ordem jurídica e tenha os efeitos e consequências que são previsíveis face à decorrência lógica da modificação realizada. Porém, para esta previsão de actuação, não é despicienda a situação de facto preexistente e que acaba por determinar a intervenção legislativa. No caso dos autos, as partes e, por isso, o recorrente não podia ignorar qual a situação que se desenhava em relação ao recurso para o tribunal pleno que nos ocupa, ou melhor, no que se refere aos «assentos» prolatados, em regra, na sequência da procedência daquele recurso, v.g., quanto à sua conformidade constitucional.
7. - Com efeito, desde que o Tribunal Constitucional, pelo seu Acórdão nº
810/93, de 7 de Dezembro (in Diário da República, IIª Série, de 2 de Março de
1994) julgou inconstitucional, por violação do nº 5 do artigo 115º da Constituição, o artigo 2º do Código Civil, na parte em que atribui aos tribunais competência para fixar doutrina com força obrigatória geral, tornou-se claro que os artigos 763º a 770º do CPC teriam de ser sujeitos a uma qualquer modificação legislativa, pois a forma de resolução de conflitos de jurisprudência através da emissão de «assentos» estava posta em causa, tanto mais que o Tribunal tirou, entretanto, mais dois acórdãos sobre tal matéria, o que permitiu que se viesse a declarar tal inconstitucionalidade normativa, na dimensão referida, com força obrigatória geral (cf. Artigo 281º, nº 3, da Constituição). Tal veio a suceder, de facto, através do Acórdão nº 743/96, de 28 de Maio de 1996 (in Diário da República, Iª Série-A, de 18 de Julho de 1996). Tudo isto significa que a partir da publicação de tais acórdãos, desaparece a expectativa de proferimento de «assentos» com o valor de fixação de doutrina com força obrigatória geral, pelo que, enquanto se mantiver o direito ao recurso para o tribunal pleno, a decisão a proferir não poderia ir além da uniformização jurisprudencial. De qualquer modo, uma intervenção legislativa que torne impossível a utilização daquele meio processual de reapreciação dum caso concreto - reapreciação essa que a lei anterior à referida intervenção garantia - será uma actuação intolerável para o Estado de direito democrático? A resposta não pode deixar de ser negativa. Desde logo, importa referir que não existe na Lei Fundamental um preceito ou princípio que imponha, dentro do processo civil, a existência de um recurso para uniformização de jurisprudência. Com efeito, a Constituição não se refere «qua tale» sequer à garantia do duplo grau de jurisdição ou à previsão da existência de recursos em processo civil. Mas, garantindo a todos o acesso ao direito e aos tribunais para defesa dos seus direitos e interesses legítimos e reconhecendo a Constituição a existência de tribunais de recurso, entre as várias categorias de tribunais, não pode deixar aceitar, mesmo que implicitamente, a existência de um sistema de recursos judiciais. No Acórdão nº 359/86 (in Acórdãos do Tribunal Constitucional, 8º V., pág. 605) o Tribunal Constitucional decidiu que a Constituição não garantia um triplo grau de jurisdição, ou seja, o direito geral de recurso ao STJ, doutrina que foi repetida, nos Acórdãos nºs 202/90 e 330/90 (in Diário da República,IIª Série, respectivamente, de 21 de Janeiro de 1991 e de 15 de Novembro de 1991). Pode, assim, concluir-se que o legislador ordinário, em matéria de recursos de natureza não penal, goza de ampla liberdade de conformação, podendo criar ou suprimir certos recursos judiciais desde que não proceda à abolição do sistema de recursos in totum. Portanto, mesmo que se reconheça a vantagem e a necessidade de uma fixação uniforme da jurisprudência com vista à unidade do direito, nada na Constituição impõe a existência do recurso para o pleno com essa finalidade. Neste contexto, a intervenção legislativa traduzida na revogação imediata das normas que regulavam o recurso para o tribunal pleno sem a simultânea entrada em vigor das normas que regulam o novo regime desse recurso, não contende com a Constituição, antes se insere na liberdade de conformação do legislador, neste aspecto. E tanto assim é que ao determinar tal revogação, com efeitos imediatos, e prevendo-se a substituição do referido meio processual por outro de natureza e finalidades similares, ainda que, por razões de dificuldades da imediata entrada em vigor de todo o diploma não tenha sido possível evitar uma «décalage» temporal entre as duas datas, o legislador procurou atenuar os efeitos de tal revogação através da inserção de dois preceitos de carácter transitório (os nºs
2 e3 do artigo 17º). Destas normas de transição, uma regula o valor dos assentos já proferidos - a que atribui o valor dos acórdãos que forem proferidos ao abrigo dos artigos
732º-A e 732º-B (nº2) - e a outra (nº3)delimita o objecto dos recursos intentados antes da revogação, circunscrevendo-o à resolução do conflito em concreto e atribuindo-lhes os efeitos que decorrem dos artigos 732º-A e B.
É certo que o legislador não previu qualquer norma para regular o regime dos recursos a interpor no período que decorreu desde a revogação até à entrada em vigor do novo sistema de uniformização de jurisprudência, privando assim os interessados deste meio de impugnação de certas decisões que lhes estava anteriormente garantido.
De facto, ao prever-se um regime de recurso para uniformização de jurisprudência, com eficácia dentro da ordem judiciária em que foi proferido o acórdão para substituir o anterior regime de recurso para o tribunal pleno e ao preverem-se normas de transição que regulam o objecto e os efeitos dos recursos entretanto interpostos, está a garantir-se o mínimo de certeza e segurança da ordem jurídica quanto aos direitos das pessoas e às expectativas que lhes são criadas, assim se respeitando o princípio da confiança, o qual só é violado quando modificações da ordem jurídica existente se repercutem por forma excessivamente onerosa, injustificada ou intolerável nas situações existentes, o que não é o caso.
É certo que a não previsão de norma, destinada a vigorar durante o espaço de tempo entre a revogação dos artigos 763º a 770º do CPC e a entrada em vigor do novo diploma que aprovou aquele código, impediu a interposição de recursos para o tribunal pleno, nesse período. Nestas circunstâncias, poderia parecer que o estabelecimento da regulação transitória tal como consta do Decreto-Lei nº
329-A/95, não era uma regulação justa, adequada e proporcionada à boa resolução dos problemas que sempre poderiam advir da revogação imediata da lei anterior e da não entrada imediata em vigor da lei nova. Todavia, não é assim e não se considera tal solução violadora do princípio da segurança jurídica, na vertente da protecção da confiança, na medida em que foi intenção manifesta do legislador eliminar um quarto grau de jurisdição, tal como resulta claro do seguinte passo do preâmbulo do diploma: 'a solução encontrada baseou-se, no essencial, no regime da revista ampliada, instituída e regulada no projecto do Código de Processo Civil como sucedâneo do actual recurso para o tribunal pleno: considera-se tal solução claramente vantajosa em termos de celeridade processual, eliminando uma quarta instância de recurso e propiciando, mais do que o remédio a posteriori de conflitos jurisprudenciais já surgidos, a sua prevenção'. Estando na liberdade de conformação do legislador a eliminação de um grau de jurisdição, não pode deixar de se considerar também ali abrangido o diferimento do início de vigência do sistema substitutivo do regime de recursos eliminado, sendo certo que as disposições transitórias eram suficientes, justas e adequadas para regular o regime e os efeitos dos recursos interpostos. Assim, não se considera, no caso, que a interpretação atrás definida do artigo
17º, nº1, do Decreto-Lei nº 329-A/95, de 12 de Dezembro, e que o recorrente imputa à decisão recorrida tenha violado quer o princípio da segurança jurídica ou o princípio da protecção da confiança que integram o princípio do Estado de direito democrático, consagrado no artigo 2º quer o princípio da igualdade constante do artigo 13º, ambos da Constituição da República Portuguesa. III - DECISÃO: Nos termos do que fica exposto, o Tribunal Constitucional decide negar provimento ao recurso, confirmando a decisão recorrida quanto ao julgamento da questão de constitucionalidade que nela se contem. Lisboa, 13 de Outubro de 1998 Vítor Nunes de Almeida Maria dos Prazeres Beleza Bravo Serra Artur Maurício Messias Bento Maria Helena Brito José de Sousa e Brito Alberto Tavares da Costa Luís Nunes de Almeida (vencido, nos termos da declaração de voto junta) Maria Fernanda Palma (vencida, pelas razões essenciais da declaração de voto do Conselheiro Luís Nunes de Almeida) Paulo Mota Pinto (vencido nos termos da declaração de voto que junto). Guilherme da Fonseca (vencido, conforme declaração de voto do Exmº. Cons. Luis Nunes de Almeida) José Manuel Cardoso da Costa
Declaração de Voto Votei vencido, nos termos e com os fundamentos seguintes:
1. O artigo 17º do Decreto-Lei nº 329-A/95 dispõe o seguinte:
1 - É imediatamente aplicável a revogação dos artigos 763º a 770º do Código de Processo Civil, sem prejuízo do disposto nos números seguintes.
2 - Os assentos já proferidos têm o valor dos acórdãos proferidos nos termos dos artigos 732º-A e 732º-B.
3 - Relativamente aos recursos para o tribunal pleno já intentados, o seu objecto circunscreve-se à resolução em concreto do conflito, com os efeitos decorrentes das disposições legais citadas no número anterior. Por sua vez, o artigo 16º, na redacção dada pelo Decreto-Lei nº 180/96, determina: Sem prejuízo do disposto no artigo 17º, o Decreto-Lei nº 329-A/95, de 12 de Dezembro, com as modificações decorrentes do presente diploma, entra em vigor em
1 de Janeiro de 1997 e só se aplica aos processos iniciados após esta data, salvo o estipulado no artigo 13º e nos artigos seguintes.
2. Suscitam-se duas questões de inconstitucionalidade da norma resultante da conjugação destas disposições legais, interpretadas com o sentido de que os recursos ainda não intentados, à data da entrada em vigor daquele artigo 17º, ficam excluídos do regime dos recursos para o pleno, bem como do de julgamento ampliado:
- por violação do princípio da igualdade, pois poderiam surgir situações de desigualdade decorrentes da celeridade processual, em casos que tivessem sido submetidos aos tribunais ao mesmo tempo e em idênticas circunstâncias;
- por ofensa do princípio constitucional da confiança, ínsito no do Estado de direito, por afectar de modo ilegítimo e desproporcionado as legítimas expectativas das partes quanto àquela hipótese de recurso, na medida em que se estabelece a supressão imediata do recurso para o pleno, nos processos pendentes, mas em que tal recurso ainda não tenha sido intentado. Estas, pois, as questões fundamentais a apreciar.
3. A apontada violação do princípio da igualdade, consagrado no artigo 13º, nº
1, da Constituição, decorreria, desde logo, da imediata eliminação do recurso para o pleno nos processos em curso, desde que tal recurso ainda não tivesse sido intentado. Com efeito, o legislador optou por, intencionalmente, «antecipar» a entrada em vigor da revogação daquele específico tipo de recurso, que visava a uniformização de jurisprudência; e isto, mesmo em relação à entrada em vigor da reforma global do processo civil. Aquela revogação operou, com efeito, antes e sem dependência da entrada em vigor do diploma que globalmente reviu e reformou o processo civil. E, assim sendo, aqueles que viram tal faculdade coarctada também lhes viram negada a possibilidade de recorrerem ao novo regime de julgamento ampliado, que apenas viria a entrar em vigor aquando daquela reforma. Assim, conforme a duração real de diferentes processos iniciados no mesmo momento, enquanto nuns poderia ter havido lugar àquele recurso para o tribunal pleno, noutros, apenas por a sua tramitação ter sido mais longa, aquela alteração legislativa veio coarctar tal possibilidade de recurso, com base apenas no critério de o mesmo ainda não ter sido interposto à data da entrada em vigor daquela revogação. Como o legislador não optou por, simultaneamente, antecipar a entrada em vigor do novo regime de revista ampliada, ficaram as partes impedidas de qualquer recurso a um ou outro mecanismo de uniformização de jurisprudência.
4. O princípio da igualdade traduz-se numa exigência de tratamento igual do que
é igual e diferente do que é diferente, proibindo nomeadamente discriminações intoleráveis ou não justificadas racionalmente. O que aqui se discute é a questão de saber, reportando-se ao princípio da igualdade, se é legítimo que, em processos semelhantes, à data da revogação em causa, consoante já tivesse ou não sido interposto o recurso, o mesmo fosse admitido ou não (ainda que, na primeira hipótese, com os efeitos 'mitigados'). Ou seja, questiona-se a aparente «desigualdade» resultante da sujeição a regimes diferentes de decisões que, embora se incluam em acções propostas na mesma altura, vieram a ser proferidas em momentos diferentes. Com efeito, ainda que intentadas na mesma ocasião (ou até em momento anterior), conforme o respectivo
«andamento» ou vicissitudes processuais, ou até em virtude de motivos inerentes ao próprio funcionamento do órgão judicial em causa, algumas acções foram objecto de decisões num momento em que a ordem jurídica previa ainda o tipo de recurso para uniformização de jurisprudência para o Pleno do STJ, enquanto outras já só vieram a obter tais decisões ( as passíveis desse específico tipo de recurso) em momento posterior, no qual tal tipo de recurso deixara de ser admitido; e isso sem que, simultaneamente, se previsse um outro tipo de mecanismo processual com vista à uniformização de jurisprudência.
5. Constata-se assim, efectivamente, um tratamento diferenciado, eventualmente desfavorável, porquanto certas acções se arrastaram no tempo sem qualquer culpa ou responsabilidade das partes. Mas essa diferenciação não se revela arbitrária ou infundada.
O legislador não está, em regra, obrigado a manter as soluções jurídicas que anteriormente adoptou, sendo característica essencial da função legislativa a auto-revisibilidade, para além da própria liberdade constitutiva. Seria impensável 'prender' o legislador às soluções consagradas, inviabilizando qualquer evolução ou adaptação do sistema (cfr., nomeadamente, Acórdão nº
352/91, Acórdãos do Tribunal Constitucional, 19º vol., pág. 549). Claro está que sempre se verificarão situações em que haverá que deixar intocados direitos adquiridos entretanto consubstanciados, mas fora desses casos é a própria necessidade de evolução do sistema e das soluções nele consagradas que impõem a revisão das soluções jurídicas anteriormente adoptadas. Por outro lado, o princípio da igualdade não opera diacronicamente, como este Tribunal vem sucessivamente afirmando (cfr., nomeadamente, o citado Acórdão nº
352/91), sendo certo que o direito ao recurso só surge, na verdade, com a prolação da decisão desfavorável. Consequentemente, não existe, no caso, qualquer arbitrariedade na escolha do momento a partir do qual se operam os efeitos da nova solução jurídica adoptada, pelo que se não mostra, assim, violado o princípio da igualdade. Neste ponto, portanto, acompanhei a tese maioritária.
6. Quanto à apreciação da questão de uma eventual violação do princípio da confiança, há que sublinhar que não estamos, in casu, perante uma situação de verdadeira rectroactividade, ou em que a lei viesse retirar um direito já exercido, situação que seria manifestamente intolerável. Estamos, sim, perante uma rectroactividade inautêntica, ou retrospecti-vidade. Todavia, como este tribunal tem de forma constante afirmado (cfr., por todos, o Acórdão nº 303/90 deste Tribunal, publicado no Diário da República, I Série, nº
296, pág.s 5212), o princípio da confiança traduz uma ideia de protecção da confiança dos cidadãos e da comunidade na ordem jurídica e na actuação do Estado, o que implica um mínimo de certeza e de segurança no direito das pessoas e nas expectativas que a elas são juridicamente criadas (cit. Acórdão nº
303/90). Assim, perante uma afectação concreta de legítimas expectativas dos cidadãos, haverá que averiguar se tal afectação é inadmissível, por arbitrária ou demasiado onerosa. O que sucederá, nomeadamente, quando essa afectação constitua uma alteração da ordem jurídica com que, razoavelmente, os destinatários de tal normação não pudessem contar, ou ainda, quando se não verificar a existência de direitos ou interesses constitucionalmente protegidos que, ditando essa alteração, devam ser considerados prevalecentes sobre tais expectativas.
7. A existência de um recurso para o Tribunal Pleno, e a tradição jurídica daí decorrente no nosso regime processualista, ainda que se trate de um recurso específico orientado para a resolução de conflitos através da uniformização de jurisprudência, criou expectativas legítimas e fundadas em todos aqueles que recorrem aos tribunais, escudados em anterior jurisprudência do STJ favorável às respectivas pretensões, expectativas que resultaram necessariamente frustradas com a sua eliminação de forma imediata nos processos em curso. Seria razoável, porém, contar com essa eliminação, dada a função dos assentos e a orientação constitucional que sobre esta matéria veio a vingar, resultando no julgamento de inconstitucionalidade feito no Acórdão nº 810/93 deste Tribunal
(Diário da República, II Série, de 2 de Março de 1994) da norma constante do artigo 2º do Código Civil e posterior declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral, constante do Acórdão nº 743/96 (Diário da República, I Série-A, de 18 de Julho de 1996)? Justificou a Comissão Revisora do Processo Civil esta sua opção relativamente ao referido artigo 17º do Decreto--Lei nº 329-A/95 (cfr. Carlos Lopes do Rego, A Uniformização da Jurisprudência no Novo Direito Processual Civil, Lex, pág. 8 e segs.), nas 'dificuldades de ordem prática sentidas na aplicação da jurisprudência constitucional contida no acórdão nº 810/93 e nos vários que se lhe seguiram, de idêntico conteúdo, por inexistirem manifestamente mecanismos processuais susceptíveis de permitir o preenchimento das 'condições' estabelecidas pelo Tribunal Constitucional para a legitimação constitucional dos assentos'. Entendeu, assim, a Comissão que 'a revogação imediata, mesmo nas acções pendentes, do recurso para o Tribunal Pleno - com ressalva naturalmente dos recursos já interpostos - radicou na ideia de que se não justificava a manutenção de quarto grau de jurisdição em processo civil, que, ademais, passaria a ser insusceptível de conduzir e culminar num acto normativo de interpretação autêntica da lei, dotado de força vinculativa genérica' (ob. cit., pág. 24). Ou seja, encarado este tipo de recurso, no seu núcleo essencial, como um
'instrumento adjectivo ao serviço do instituto dos assentos', e postos estes irremediavelmente em causa, nomeadamente como fontes de direito, resultaria o mesmo despojado de função e objectivo. Atentas as consequências e as necessidades de revisão do sistema, optou, pois, o legislador por proceder à supressão imediata deste recurso.
É verdade que o legislador consagrou, na revisão do processo civil, um outro mecanismo de uniformização de jurisprudência - o julgamento ampliado de revista, previsto nos actuais artigos 732º-A e 732º-B do CPC -, mas optou, todavia, por não o aplicar de imediato às acções pendentes, ou seja, não antecipou a entrada em vigor deste regime face à revisão do processo civil, embora tenha optado por aquela eliminação imediata do anterior recurso para o Pleno. O que se consubstancia assim num 'vazio' temporal em que as partes se viram desprovidas de qualquer tipo de mecanismo tendente à uniformização de jurisprudência, e não na eliminação pura e simples de todo e qualquer tipo de mecanismo processual para esse fim específico.
8. O direito ao recurso não constitui um direito ilimitado e absoluto, podendo o seu concreto conteúdo ser definido pelo legislador ordinário. Assim, a existência de limitações aos recursos - nomeadamente através do estabelecimento de alçadas - é uma prática necessária para a racionalização e bom funcionamento do próprio sistema judicial (cfr., por todos, Acórdão nº 287/90, Acórdãos do Tribunal Constitucional, 17º vol, págs. 159). Por outro lado, não está constitucionalmente vedado ao legislador eliminar vias de recurso. Assim, neste caso, em que se visou uma instância de recurso que correspondia a um quarto grau de jurisdição, e que se inseria num específico mecanismo de uniformização da jurisprudência - os assentos -, já declarado inconstitucional, uma tal eliminação, na lógica de uma mais ampla reforma do processo civil, pareceria fundamentada. Só que, a sua aplicação imediata aos processos pendentes, mesmo quando as partes, no momento da respectiva introdução em juízo, confiavam, de forma legítima e fundada - por existir anterior jurisprudência do STJ favorável aos respectivos interesses - que, em caso de insucesso, poderiam ainda socorrer-se de tal via de recurso, vem afectar de forma inadmissível as expectativas dos cidadãos. E isto, por duas ordens de razões. Em primeiro lugar, porque tal eliminação, ao contrário do que se tem afirmado, não foi «ditada pela necessidade de salvaguardar direitos ou interesses constitucionalmente protegidos que devam considerar-se prevalecentes» (cfr. cit. Acórdão nº 287/90), pois que, e desde logo, a eliminação dos assentos não impunha, obrigatoriamente, a eliminação do recurso para o Pleno, tal como, aliás, decorre do regime previsto para os recursos já pendentes para o Pleno no artigo 17º, nº 3, do Decreto-Lei nº 329-A/95. E, ainda, porque sempre seria possível encontrar um sucedâneo para aquele recurso, nos casos de alteração de jurisprudência do STJ, como veio a ser consignado para o futuro, através do julgamento ampliado. Em segundo lugar, porque não estavam os cidadãos perante uma alteração com que razoavelmente pudessem contar, dada a grande tradição de que, na nossa ordem jurídica, gozava a garantia da existência de um específico meio processual para uniformização de jurisprudência. Assim sendo, a norma impugnada vem frustrar, de forma excessiva e demasiadamente onerosa, as fundadas expectativas daqueles que, confiados na existência de anterior jurisprudência favorável do STJ, intentaram acções judiciais, na convicção de que uma alteração dessa mesma jurisprudência só poderia vir a ocorrer através de um específico mecanismo processual, assegurando a intervenção de um número qualificado de juízes do mesmo STJ. Luís Nunes de Almeida
Declaração de voto Votei vencido pelo essencial das razões explanadas na declaração de voto do Sr. Conselheiro Luís Nunes de Almeida. Considero que as normas dos artigos 16º e 17º, nº 1 do Decreto-Lei n.º 329-A/95, interpretadas no sentido de entrar em vigor imediatamente a revogação dos artigos 763º a 770º do Código de Processo Civil (e não apenas no de ela ser imediatamente aplicável aos processos pendentes, logo que entrasse em vigor a reforma do processo civil nos termos do artigo 16º desse decreto-lei), ao eliminarem, no hiato entre essa revogação e a entrada em vigor da possibilidade de julgamento ampliado da revista, a possibilidade de intentar recurso para o Tribunal Pleno, violaram o princípio da confiança sem que isso fosse necessário para salvaguarda de outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos. A existência de um recurso, com longa tradição no nosso direito, que tinha como fundamento específico a existência de certa jurisprudência de um Tribunal superior, e com a finalidade de a uniformizar, permitia a quem foi levado a intentar uma acção (ou a interpor recurso) com base em tal jurisprudência fundar a legítima expectativa de apenas não obter ganho de causa se ela viesse a ser alterada num recurso especificamente a isso dirigido, a decidir pelo Plenário do Supremo Tribunal de Justiça - expectativa, esta, que é frustrada pelas normas em apreço sem que com isso se pudesse razoavelmente contar (e relembre-se que a declaração de inconstitucionalidade dos assentos não tinha esse alcance) e sem que se tenha mostrado que a eliminação imediata de tal possibilidade de recurso (para mais, subsistente apenas num 'intervalo', cujo fundamento se não descortina, até à entrada em vigor das normas que vieram a introduzir o julgamento ampliado da revista) era necessária para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos. Paulo Mota Pinto