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Processo nº 314/95
1ª Secção Rel. Cons. Tavares da Costa
(Consª Maria Fernanda Palma)
Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional
I
1.- S..., Lda., instaurou, no Tribunal Judicial da Comarca de Braga, execução sumária contra E..., SA.
O Ministério Público, em representação da Fazenda Nacional, reclamou, nos termos do artigo 865º do Código de Processo Civil (CPC), um crédito privilegiado no montante de 179.167.658$00, resultante do não pagamento de dívidas provenientes de Imposto sobre o Valor Acrescentado (IVA), a cargo da executada, acrescido de juros compensatórios.
A executada impugnou o crédito reclamado, de acordo com o disposto no nº 2 do artigo 866º daquele Código, alegando já ter efectuado o pagamento de certa quantia - 92.240.972$00 - e que, por sua vez, seria credora de importância de montante igual ao da restante quantia em dívida - 108.956.945$00 - estando já reconhecido, pelos Serviços de Administração do IVA, o direito da executada ao reembolso de 91.650.953$00, encontrando-se o processamento da diferença dependente do despacho.
Pretenderia, assim, considerando a má situação financeira que atravessa, que a importância a ser-lhe reembolsada servisse de pagamento à sua dívida perante a Fazenda Pública.
Não foi, no entanto, atendida a sua pretensão pelos Serviços pelo facto de o processamento do reembolso se encontrar condicionado à apresentação de uma garantia, que a executada não está em condições financeiras de satisfazer, dada a exigência do nº 7 do artigo 22º do Código do Imposto sobre o Valor Acrescentado - doravante CIVA - norma que tem como materialmente inconstitucional, por violar o disposto no artigo 13º da Constituição da República (CR).
O Ministério Público, em resposta, embora reconhecendo já se encontrar paga a quantia de 92.240.972$00, considerou ser de improceder a pretensão da executada em fazer extinguir os créditos remanescentes por compensação com o seu crédito por a tal se opor o disposto na alínea c) do nº 1 do artigo 853º do Código Civil (CC).
2.- O Senhor Juiz, por decisão de 24 de Março de 1995, conheceu da suscitada questão de constitucionalidade e, por sua vez, oficiosamente e ao abrigo do disposto no artigo 207º da CR, conheceu de uma outra questão dessa natureza, referente à norma da alínea c) do nº 1 do artigo
853º, assim decidindo:
'a)- Considerar que o artigo 22º, nº 7 do Código do Imposto sobre o Valor Acrescentado não é inconstitucional por violação do princípio da igualdade;
b)- Recusar a aplicação do artigo 22º, nº 7 do Código do Imposto sobre o Valor Acrescentado - por violação do artigo 62º da Constituição da República Portuguesa - na medida em que possa ser interpretado como permitindo à Administração Fiscal exigir a um sujeito passivo de imposto a prestação de caução ou outra qualquer garantia, para além do prazo de três meses previsto no nº 8 do mesmo artigo, reconhecido que esteja o crédito ou havendo omissão de decisão pela Administração Fiscal naquele prazo.
b)- Recusar a aplicação do artigo 853º, nº 1, al. c) do Código Civil - por violação dos artigos 13º e 62º da Constituição da República Portuguesa -,na medida em que possa ser interpretado como excluindo a compensação dos créditos do Estado que tenham de operar no mesmo Ministério.'
3.- O Ministério Público interpôs recurso para o Tribunal Constitucional, nos termos do disposto nos artigos 70º, nº 1, alínea a), e 72º, nºs. 1, alínea a), e 3, da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro.
Admitido o recurso, apenas alegou o recorrente, concluindo do seguinte modo:
1.- Não viola o princípio constitucional da igualdade nem o direito do credor à satisfação do seu crédito (artigo 62º, nº 1, da Constituição da República Portuguesa) a circunstância de a Administração fiscal poder exigir, nos termos do nº 7 do artigo 22º do Código do Imposto sobre o Valor Acrescentado, quando a pretensão ao reembolso apresentado pelos sujeitos passivos de tal imposto exceder 100.000$00, a prestação de caução ou ou tra garantia idónea, como condição da imediata satisfação de tal pretensão.
2.- Não ofende qualquer princípio ou preceito constitucional a circunstância de o Código de Imposto sobre o Valor Acrescentado não estabelecer um prazo máximo de 90 dias para a apreciação os pedidos de reembolso apresentados por sujeitos passivos do IVA, findo o qual ocorreria verdadeiro
'deferimento tácito' de tal pretensão, limitando-se o nº 8 do citado artigo 22º a prescrever que, a partir do fim do terceiro mês seguinte à apresentação do pedido de reembolso, serão devidos juros de mora, se se confirmar a existência e montante do crédito invocado.
3.- Não viola qualquer preceito ou princípio constitucional a circunstância de a Administração fiscal poder opor ao sujeito passivo do IVA, que pretende operar a compensação entre créditos fiscais e o seu pretenso direito a deduções e reembolsos, a excepção resultante da não prestação de caução ou outra garantia idónea, consagrada no nº 7 do artigo 22º do Código do Imposto sobre Valor Acrescentado.
Termos em que deverá ser julgado procedente o presente recurso, em conformidade com o juízo de constitucionalidade das normas desaplicadas na decisão recorrida.'
Corridos os vistos legais, cumpre agora apreciar e decidir, após mudança de relator, uma vez que não logrou maioria o projecto de acórdão apresentado pelo primitivo Relator.
II
1.- Delimitação do objecto do recurso.
A decisão recorrida enuncia explicitamente as normas que entendeu feridas de vício de inconstitucionalidade: recusou aplicar ao caso concreto a norma do nº 7 do artigo 22º do C.I.V.A., na medida em que exige a prestação de uma caução ao sujeito passivo credor para a satisfação do crédito deste, o que tem por inconstitucional por violar a 'garantia constitucional do credor à satisfação do seu crédito - artigo 62º, nº 1, da Constituição da República Portuguesa'; recusou aplicar a norma do artigo 853º, nº 1, alínea c), do Código Civil, por violação não só desse artigo 62º, como também do artigo
13º, da lei fundamental, 'na medida em que possa ser interpretado como excluindo a compensação dos créditos do Estado que tenham de operar no mesmo Ministério'.
No entanto, e se bem que as mesmas normas tenham sido indicadas no requerimento de interposição de recurso, ao abrigo da alínea a) do nº 1 do artigo 70º da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, da autoria do competente magistrado do Ministério Público, o certo é que o Senhor Procurador-Geral Adjunto neste Tribunal, nas alegações apresentadas considerou que a única norma efectivamente desaplicada foi a do nº 7 do artigo 22º, tudo o mais não sendo mais do que meros obiter dicta, nessa óptica tendo modelado as respectivas conclusões, limitadas à norma do C.I.V.A..
Ocorreu, assim, uma delimitação objectiva do recurso, a ter em conta na medida em que as conclusões das alegações fixam o âmbito e o objecto do recurso, considerando o disposto no nº 3 do artigo 684º do Código de Processo Civil, observável ex vi do artigo 69º da Lei nº 28/82.
Em face do exposto, delimita-se esse objecto à norma do nº 7 do artigo 22º do C.I.V.A..
2.1.- O imposto sobre o valor acrescentado - IVA - criado pelo Decreto-Lei nº
394-B/84, de 26 de Dezembro, no uso da autorização legislativa conferida pelo artigo 22º da Lei nº 42/83, de 31 de Dezembro, em substituição do imposto de transacções, visa tributar todo o consumo em bens materiais e serviços, de modo a atingir qualquer fase do circuito económico, desde a produção ao retalho, sendo a base tributável, no entanto, limitada ao valor acrescentado em cada fase.
Sem prejuízo de serem os consumidores finais dos bens e serviços quem suporta economicamente o imposto, antes de se atingir a fase de consumo, 'os bens e serviços percorrem normalmente um circuito mais ou menos longo, através de vários agentes económicos, que torna possível surpreender o valor com que entraram e saíram de cada uma das diferentes fases percorridas'
(cfr. Joaquim Silvério Mateus, 'Regime e Natureza do Direito à Dedução no Imposto Sobre o Valor Acrescentado' in - Fisco, nº 12/13 - Outubro de 1989 - pág. 36). Com efeito, se o imposto de transacções era monofásico, tributando apenas o consumo na fase do produtor ou grossista e nas importações, o imposto sobre o valor acrescentado, na sua incidência sobre toda a actividade económica, configura-se como plurifásico, alcançando quaisquer transmissões de bens e prestações de serviços, seja com outros sujeitos passivos do imposto, seja com consumidores finais.
Estabelece-se, em consequência, uma teia na qual todo o interveniente no circuito, no exercício de uma actividade de produção, comércio ou prestação de serviços, torna-se sujeito passivo do imposto e vai facturando o imposto a quem se lhe segue. De acordo com a descrição do nº 4 do Relatório preambular do Código, a dívida tributária de cada operador é calculada pelo método do crédito de imposto, traduzido na seguinte operação: aplicada a taxa ao valor global das transacções da empresa, em determinado período, deduz-se ao montante assim obtido o imposto por ela suportado nas compras desse mesmo período, revelado nas respectivas facturas de aquisição, correspondendo o resultado ao montante a entregar ao Estado.
Como observa um autor, encontrando-se todos os agentes económicos, integrados no processo de produção, distribuição e prestação de serviços, sujeitos à tributação, devem fazer incidir o IVA em todas as transmissões de bens e prestações de serviços que efectuem, quer as realizem com outros sujeitos passivos de imposto, quer com consumidores finais, sendo-lhes concedido, do imposto assim liquidado, o direito de deduzirem o imposto que suportaram com aquisições de bens e serviços económicos ao exercício da sua actividade (cfr. Mário Alberto Alexandre, 'Imposto sobre o Valor Acrescentado - Exclusões e Limitações do Direito à Dedução' in - Ciência e Técnica Fiscal, nº
350, pág. 31).
Deste modo, o IVA pressupõe, na sua aplicação em todo o circuito económico, 'a repercussão total do imposto para a frente'. Ou seja, transitou-se, como se explicita no nº 5 do aludido Relatório, de uma técnica de suspensão do imposto a montante - vigente no imposto de transacções, em que os contribuintes eram apenas os produtores e grossistas - para uma outra, de crédito de imposto, em que os bens de produção são tributados quando da sua aquisição pelos sujeitos passivos do imposto, correspondendo o imposto devido por cada agente económico, em princípio, à diferença positiva entre o imposto que ele próprio liquida aos seus clientes e o imposto que lhes foi liquidado pelos seus fornecedores num mesmo período (cfr. Nuno Sá Gomes, Manual de Direito Fiscal, vol. I, Lisboa, 1993, pág. 240).
2.2.- Assim, aplicada a taxa ao valor global das transacções efectuadas por um dado sujeito passivo em determinado período, tem este o direito a descontar o imposto que teve de liquidar na operação efectuada de aquisição de bens ou serviços nesse período, que as respectivas facturas revelarão, de modo a entregar ao Estado só a diferença.
Este direito à dedução efectiva-se através de reembolso sempre que haja excesso e o sujeito passivo, titular do direito, solicite, na sua qualidade de credor, à Administração Fiscal que proceda à restituição do que desembolsou. Por este meio, 'cada sujeito passivo vai deduzir todo o imposto entregue ao Estado nas várias fases anteriores àquela em que ele próprio intervém, entregando apenas uma parcela que, adicionada àquele, será por sua vez repercutida para os sujeitos seguintes' (cfr. Joaquim Silvério Mateus, ob. cit., pág. 37).
A norma do nº 7 do artigo 22º do C.I.V.A. insere-se no
âmbito deste direito à dedução que os sujeitos passivos do imposto podem exercer em dadas circunstâncias; neste artigo 22º, particularmente, o legislador cuida de definir o regime do direito à dedução e, concretamente, trata dos reembolsos de imposto, se e quando devidos.
Nesta conformidade, o nº 1 do artigo 22º prescreve que o direito à dedução nasce no momento em que o imposto dedutível se torna exigível, nos termos dos artigos 7º e 8º do Código, efectuando-se mediante subtracção ao montante global do imposto devido pelas operações tributárias do sujeito passivo, do montante do imposto dedutível, reportados a um período de declaração, e o nº 2 do mesmo normativo estabelece que a dedução deverá ser efectuada na declaração do período em que se tiver verificado a recepção das facturas, documentos equivalentes ou recibo de pagamento de IVA que fizer parte das declarações de importação.
Cria-se, assim, como que uma conta-corrente entre a Administração Fiscal e o sujeito passivo do imposto, transparecendo, nesta mecânica de contínuo acerto de contas, a assinalada característica de reporte para os períodos seguintes, em detrimento do reembolso imediato (isto, obviamente, no caso do montante apurado se traduzir em crédito perante o Estado).
Diz-nos, a este propósito, o nº 4:
'Sempre que a dedução de imposto a que haja lugar supere o montante devido pelas operações tributárias, no período correspondente, o excesso será deduzido nos períodos de imposto seguintes.'
O sistema comporta, no entanto, compreensíveis limitações, bastando pensar, como observam J.Xavier de Basto e J.L. Saldanha Sanches ('O Novo Regime de Reembolsos do IVA. Um Despacho Normativo Ilegal' in Fisco, nº 62 - Fevereiro de 1994 - pág. 4), nas 'actividades que geram situações de crédito «estrutural», como as exportações, ou de crédito muito prolongado, como sejam as empresas com longos períodos de instalação ou com importantes investimentos em curso'.
Para estes casos, em que 'o reporte para diante ou não resolve, em definitivo, o problema, ou constitui solução inaceitável, tão grande a duração do financiamento que as empresas teriam de suportar', prevêm os nºs. 5 e 6 do artigo 22º a liquidação do crédito através de um reembolso efectivo, a solicitação do contribuinte:
- no caso do crédito ser superior a 50.000$00 (valores fixados pelos Decretos-Leis nº 166/94, de 9 de Junho) e persistir durante doze meses;
- se o crédito for superior a 1.500.000$00, mesmo antes do fim desse período (o que se compreende, atendendo aos montantes em causa e à excessiva onerosidade sobre a 'tesouraria' dos contribuintes).
2.3.- É neste momento que importa destacar a norma em sindicância, objecto de desaplicação pelo juiz recorrido e única a considerar neste recurso:
'Em qualquer caso, a Direcção-Geral das Contribuições e Impostos poderá exigir, quando a quantia a reembolsar exceder 100.000$00, caução, fiança bancária ou outra garantia adequada, que deverá ser mantida pelo prazo de um ano.'
A estrutura peculiar do imposto explica esta norma. Com efeito, resultará naturalmente da 'conta-corrente' criada a possibilidade de os sujeitos passivos do imposto ficarem numa situação de crédito perante o Estado e, consequentemente, terem direito a ser reembolsados desse créditos. A exigência - ou a possibilidade da exigência - de garantia decorre, sem dúvida, da necessidade de acautelar as receitas do Estado, como, de resto, o legislador reconhece.
A esta luz, o Despacho Normativo nº 342/93, de 18 de Outubro - publicado no Diário da República, I Série-B, de 30 de Outubro de 1993
- editado ao abrigo do nº 9 deste mesmo artigo 22º - que permite a Administração Fiscal efectuar reembolsos em condições diferentes das estabelecidas no preceito
- admite ser esta uma área particularmente sensível do mecanismo de aplicação do imposto em que se deverá ter em conta, por um lado, a necessidade de exercer uma acção eficaz no sentido de apurar a legitimidade dos reembolsos, munindo-se das adequadas garantias até que tal acção seja possível, e, por outro lado, não sobrecarregar as empresas com encargos financeiros que dificultem o seu normal funcionamento ou ponham em causa a sua competitividade. Nestes parâmetros, pretende-se limitar a exigência prevista no nº 7 do artigo 22º 'aos casos em que os próprios contribuintes pretendam obter mais rapidamente o montante dos seus créditos e aos casos em que possam subsistir dúvidas sobre a sua validade, devendo sempre a Administração libertar as garantias prestadas logo que possa concluir [que] o quantitativo que as mesmas garantem não foi indevidamente reembolsado.'
O nº 8 do artigo 22º, que o magistrado recorrido chamou à colação para, articulando-o com o nº 7, fundamentar o seu juízo negativo de constitucionalidade, respeita ao processamento dos reembolsos e, por isso, coloca-se a jusante, numa fase em que se cuida de efectuar o pagamento do reembolso mas não já de saber se o reembolso é devido ou - questão em aberto - se, devido o reembolso, é constitucional a exigência da garantia prevista no nº
7. Ou seja, o nº 7, conjuntamente com os nºs. 5 e 6, prevê um regime especial de concessão de reembolsos que intenta não sobrecarregar demasiadamente os encargos dos sujeitos passivos do imposto, permitindo-lhes solicitar o reembolso a que porventura tenham direito mais rapidamente; o nº 8, por seu lado, dispõe sobre o regime de execução dos reembolsos, prevendo um prazo máximo para a sua efectivação.
À data, dispunha esse nº 8:
'Os reembolsos de imposto, quando devidos, deverão ser efectuados pela Direcção-Geral das Contribuições e Imposto até ao fim do 3º mês seguinte ao da apresentação do pedido, findo o qual acrescerão à quantia a restituir juros contados dia a dia pela taxa constante da portaria a que se refere o nº 3 do artigo 5º do Decreto-Lei nº 49 168, de 5 de Agosto de 1969, com a redacção dada pelo Decreto-Lei nº 318/80, de 20 de Agosto, desde o termo do prazo para pagamento do reembolso até à data da emissão do respectivo meio de pagamento ou da efectivação da competente transferência bancária, quando o atraso for imputável à administração fiscal:'
Hoje, com a redacção dada pelo Decreto-Lei nº 7/96, de 7 de Fevereiro, dispõe-se:
'Os reembolsos de imposto, quando devidos, deverão ser efectuados pela Direcção-Geral das Contribuições e Impostos até ao fim do 3º mês seguinte ao da apresentação do pedido, findo o qual poderão os sujeitos passivos solicitar a liquidação de juros indemnizatórios nos termos do artigo 24º do Código de Processo Tributário.'
3.- Entendeu-se na decisão recorrida que a norma do nº 7 do artigo 22º do C.I.V.A., ao prever a exigência de caução, viola - conjugadamente com a do nº 8 - a garantia do credor
à satisfação do seu crédito, constitucionalmente assegurada pelo nº 1 do artigo
62º da CR: 'A todos é garantido o direito à propriedade privada [...] nos termos da Constituição'.
Se bem se compreende, a aferição da constitucionalidade daquela primeira norma, que não dispensa a sua articulação com a segunda, traduz um desrespeito constitucionalmente censurado pela garantia do credor à satisfação do seu crédito. O Estado, neste ponto de vista, não só se apresenta na veste de devedor como ainda exige, para cumprir a sua obrigação, que o credor preste caução. Não estando a Administração Fiscal certa da exactidão da declaração do sujeito passivo, competir-lhe-ia indagar no prazo de três meses e não fazer depender o reembolso de 'uma qualquer actuação dos seus serviços de fiscalização' para além desse prazo.
Adiante-se, desde já, que não se aceita este juízo.
Reconhece-se que a conceituação constitucional do direito de propriedade, 'arrumado entre os direitos económicos' não coincide com a noção civilística tradicional, pois que não limitada ao universo das coisas. Como observam Gomes Canotilho e Vital Moreira - Constituição da República Portuguesa Anotada, 3ª ed., Coimbra, 1993, pág. 331 - o alargamento do conceito para além da proprietas rerum, abrangendo igualmente a propriedade científica, literária e artística e outros direitos de valor patrimonial, como os direitos de autor, direitos de crédito, direitos sociais e outros, representa uma extensão da garantia patrimonial. E, por sua vez, enquanto direito de natureza negativa ou de defesa, possui o direito de propriedade natureza análoga aos 'direitos, liberdades e garantias' compartilhando, na medida em que é garantido constitucionalmente, do respectivo regime específico (cfr. artigo 17º da CR; ob.cit., pág. 332).
Não se surpreende, no entanto, nessa exigência de uma
'garantia adequada', o apontado vício. Não apenas se trata de um conceito aberto, não limitado à caução ou à fiança bancária e compatível com uma margem mais ou menos condicionada de determinação da garantia [cfr. a alínea c), nomeadamente in fine, do nº 5 do Despacho Normativo nº 342/93), como esta não é obrigatória - pode ser exigida - e não tem de se prolongar necessariamente pelo prazo de um ano. Como se diz no preâmbulo deste despacho normativo, a exigência de garantia como requisito do pagamento do reembolso, é limitada aos casos em que os próprios contribuintes pretendam obter mais rapidamente o montante dos seus créditos e aos casos em que possam subsistir dúvidas sobre a sua validade, devendo sempre a Administração libertar as garantias prestadas logo que possa concluir que o quantitativo que as mesmas garantem não foi indevidamente reembolsado.
Com efeito, a primazia concedida aos elementos constantes da declaração de contribuinte - que um diploma como o Código de Processo Tributário [v.g. no nº 2 do artigo 76º e alínea e) do artigo 17º] dignifica como base para a liquidação - não obsta ao seu controlo por outras vias: não é atribuído um direito incondicionado aos contribuintes na definição da sua situação tributária mediante as respectivas declarações (sobre a natureza jurídica da declaração tributária cfr. J.L.Saldanha Sanches, A Quantificação da Obrigação Tributária, Lisboa, 1995, pág. 347 e segs.).
Nesta linha, não poderá deixar de se atender à razoabilidade do regime da efectivação dos reembolsos, e seu prazo máximo, fixado no nº 8 do artigo 22º.
Transcreve-se, por comodidade expositiva, o que a este respeito mais escreveram J.Xavier de Basto e J.L.Saldanha Sanches (ob.cit., pág.
5):
'[...] a lei fixa um prazo máximo para a efectivação dos reembolsos: segundo o nº 8, a DGCI terá de os efectuar até ao fim do 3º mês seguinte ao da apresentação do pedido, após o que acrescerão à quantia a restituir juros relativos a cada mês ou fracção de atraso, quando imputável à administração. Quer dizer, esta dispõe de um prazo limitado para proceder às averiguações que julgar convenientes, a fim de garantir a correcção das quantias a reembolsar. Entendeu-se que não seria compatível com o compromisso entre os interesses da administração e os do contribuinte que aquela pudesse protelar sem limites as suas diligências de fiscalização [...]. Por outro lado, o legislador apercebeu-se que estas soluções poderiam ainda ficar àquem de uma adequada ponderação dos interesses financeiros das empresas, em especial naqueles casos em que a situação de crédito é 'estrutural' e não meramente acidental ou conjuntural [...]. Para estes casos, a lei optou por uma solução flexível [...] Para o efeito, o nº 9 do artigo 22º atribuiu ao Ministro das Finanças o poder de autorizar a administração fiscal a efectuar reembolsos em condições diferentes dos estabelecidos no regime a que chamaríamos 'normal', mas só relativamente a sectores de actividade cujo volume de negócios seja constituído essencialmente por operações isentas com direito à dedução do imposto pago nas aquisições'.
Não poderá deixar de se considerar razoável assegurar pelo espaço de um ano a possibilidade de manutenção da garantia que a Administração Fiscal julgue necessária. A dedução pressuposta pelo reembolso não considera, de per si, cada uma das operações realizadas pelo sujeito passivo mas sim o conjunto destas em determinado período - a que respeita a declaração do contribuinte, exigida pela alínea c) do nº 1 do artigo 28º do Código - o que implica o apuramento periódico do montante em débito pelo sujeito passivo (ou a seu crédito), compreendendo-se, deste modo, a natureza provisória que apresenta o eventual crédito a reembolsar.
Não se vê, a esta luz, que a norma sindicada viole, pela sua injustificação e desproporcionalidade, o disposto no nº 1 do artigo 62º da CR conjugadamente com o disposto nos artigos 17º e 18º, nº 2, do mesmo texto, na medida em que exige que a garantia prestada pelos sujeitos passivos do imposto se estenda para além do fim do terceiro mês seguinte ao do pedido do reembolso.
4.- Se o Tribunal Constitucional, no âmbito do recurso de fiscalização concreta da constitucionalidade, deve observar os limites do pedido, já, no entanto, os seus poderes de cognição permitem fundamentar o seu juízo em normas ou princípios constitucionais (ou legais) diversos daqueles cuja violação foi invocada, de acordo com o disposto no artigo 79º-C da lei nº 28/82.
Nesta perspectiva assinale-se que o magistrado recorrido começou por equacionar a existência de violação do princípio da igualdade, com assento constitucional no artigo 13º, se bem que, em seguida, tenha afastado esse questão.
Observe-se, neste momento, que se considera, igualmente, não existir violação desse princípio.
Não é atingida, pela normação em causa, qualquer das dimensões em que se desdobra o âmbito de protecção acolhido no artigo 13º da CR: a proibição do arbítrio, que torna inadmissível não só a diferenciação de tratamento sem qualquer justificação razoável, apreciada esta de acordo com critérios objectivos de relevo constitucional, como também o tratamento idêntico de situações manifestamente desiguais; a proibição de discriminação, que impede quaisquer diferenciações de tratamento entre os cidadãos, baseadas em categorias meramente subjectivas ou em razão dessas categorias; a obrigação de diferenciação, como forma de compensar a desigualdade de oportunidades, o que pressupõe a eliminação, pelos poderes públicos, de desigualdades fácticas de natureza social, económica e cultural (cfr. Gomes Canotilho e Vital Moreira, ob. cit., pág. 127; entre tantos outros, o acórdão nº 523/95, publicado no Diário da República, II Série, de 14 de Novembro de 1995).
Consistindo a igualdade em tratar por igual o que é essencialmente igual e diferentemente o que essencialmente for diferente, não proíbe se estabeleçam distinções a não ser que estas sejam arbitrárias ou sem fundamento material bastante. Ou seja, as distinções são só materialmente infundadas quando assentem em motivos que não oferecem carácter objectivo e razoável, ou, por outras palavras, quando a norma em causa não apresenta qualquer fundamento material razoável.
Para que haja violação do princípio constitucional da igualdade, ponderou-se recentemente no acórdão nº 1007/96 (publicado no Diário da República, II Série, de 12 de Dezembro de 1996) torna-se necessário verificar, preliminarmente, 'a existência de uma concreta e efectiva situação de diferenciação injustificada ou discriminação'.
Ora, como tivemos oportunidade de registar, não é este, manifestamente, o caso, compreendendo-se a possibilidade de exigência de garantia, prevista no nº 7 do artigo 22º, como uma razoável contrapartida pela admissibilidade do reembolso a par da necessidade da Administração Fiscal averiguar a efectividade do crédito. Tão pouco se detecta uma diferenciação desrazoável de tratamento, consoante se exija ou não garantia, em função dos montantes das quantias a reembolsar.
Ora, como se registou oportunamente, a possibilidade de exigência de garantia, prevista no nº 7 do artigo 22º, configura-se em termos de razoabilidade, racionalmente fundamentada: apresenta-se como a contrapartida da admissibilidade do reembolso sem prejuízo da necessidade da Administração Fiscal averiguar a efectividade do crédito, na sua dimensão exacta, tarefa que pode ser tanto mais ingente quanto maior for o volume das operações nele compreendidas.
Conclui-se, deste modo, pela não violação do princípio da igualdade.
III
Em face do exposto, decide-se conceder provimento ao recurso, devendo a decisão recorrida, em consequência, ser reformulada no que respeita à matéria de constitucionalidade.
Lisboa, 4 de Fevereiro de 1997 Alberto Tavares da Costa Vitor Nunes de Almeida Armindo Ribeiro Mendes Antero Alves Monteiro Diniz Maria Fernanda Palma Declaração de voto
Tendo sido relatora do presente processo, elaborei um projecto de Acórdão que não logrou vencimento. Ora, continuando a considerar que eram pertinentes as razões que apresentei a favor de um juízo de inconstitucionalidade, reproduzo, seguidamente, a fundamentação daquele projecto, que vale agora como voto de vencida: I O objecto do recurso
1. Suscitando embora dúvidas sobre a constitucionalidade de algumas interpretações de que tal norma é passível, o Ministério Público não incluiu, nas conclusões das suas alegações, qualquer juízo sobre a questão da constitucionalidade do artigo 853º, nº 1, alínea c), do Código Civil. E não o fez porque entendeu que, apesar de o haver proclamado, o tribunal a quo não procedeu a uma efectiva 'desaplicação' de tal norma.
O Ministério Público fundamenta esta asserção na aplicabilidade do nº 7 do artigo 22º do Código do Imposto sobre o Valor Acrescentado ao caso sub judicio. Na verdade, esta norma faria depender a compensação da prestação de caução pelo sujeito passivo do imposto. Ora, não havendo sido prestada a caução, a Administração Fiscal poderia opor uma excepção ao sujeito passivo do imposto interessado na compensação (cf., supra, no nº 3 do presente Acórdão, a conclusão
3ª das alegações do Ministério Público).
Nesta perspectiva, o tribunal recorrido não teria recusado - com fundamento em inconstitucionalidade material - a aplicação da alínea c) do nº 1 do artigo 853º do Código Civil, visto que tal norma nem poderia ser aplicada. Tratar-se-ia, pois, de mero obiter dictum, insusceptível de influir no julgamento da causa.
2. Tal como a aplicação de uma norma, a sua 'desaplicação' com fundamento na respectiva inconstitucionalidade não se basta com meras proclamações [cf. o Acórdão nº 31/91, Acórdãos do Tribunal Constitucional, 18º vol. (1991), p. 319 e ss.]. Assim, se o tribunal recorrido não podia sequer - por razões estranhas ao juízo de inconstitucionalidade que proferiu - aplicar o artigo 853º, nº 1, alínea c), do Código Civil, a aplicação desta norma não terá sido efectivamente recusada.
Todavia, a sentença impugnada 'desaplicou' mesmo a referida norma, uma vez que anteriormente já recusara, igualmente, a aplicação do artigo 22º, nº
7, do Código do Imposto sobre o Valor Acrescentado (e também por razões de constitucionalidade). Com efeito, a argumentação do Ministério Público só seria procedente se o tribunal a quo tivesse aplicado o nº 7 do artigo 22º daquele Código. Nesta hipótese, a compensação ficaria prejudicada por o crédito do sujeito passivo do imposto não ser devido, uma vez que ele não teria prestado caução pelo prazo de um ano.
3. Mas não foi isto que sucedeu. Ao julgar inconstitucional o nº 7 do artigo 22º do Código do Imposto sobre o Valor Acrescentado, o tribunal recorrido entendeu que havia lugar à compensação. Como, em primeira instância, o Ministério Público negou a admissibilidade de compensação, invocando, precisamente, o regime consagrado no artigo 853º, nº 1, alínea c), do Código Civil, o tribunal recusou também a aplicação desta norma com fundamento na sua inconstitucionalidade.
Deste modo, o tribunal a quo pressupôs que a norma do Código Civil seria potencialmente aplicável - isto é, pressupôs que a poderia ter aplicado se a não tivesse julgado inconstitucional. E, na realidade, tal aplicação - e consequente recusa da admissibilidade de compensação de um crédito do sujeito passivo, devido pela Administração Fiscal mesmo sem ter sido prestada caução pelo prazo de 1 ano - seria possível. Apurar se seria correcta já não cabe nos poderes cognitivos do Tribunal Constitucional. Trata-se de uma questão estrita de direito infra-constitucional, que apenas ao tribunal recorrido compete analisar.
Por conseguinte, o presente recurso tem por objecto as questões de constitucionalidade das normas constantes dos artigos 22º, nº 7, do Código do Imposto sobre o Valor Acrescentado e 853º, nº 1, alínea c), do Código Civil, na interpretação que a sentença recorrida se recusou a aplicar.
II A questão da constitucionalidade do artigo 22º, nº 7, do Código do IVA
4. A primeira norma que a sentença recorrida se recusou a aplicar é a constante do nº 7 do artigo 22º do Código do Imposto sobre o Valor Acrescentado. No entanto, a sua compreensão só é atingível se se conjugar com os nºs 4, 5, 6 e 8 do mesmo artigo:
'Artigo 22º
1 - ...
2 - ...
3 - ...
4 - Sempre que a dedução de imposto a que haja lugar supere o montante devido pelas operações tributáveis, no período correspondente, o excesso será deduzido nos períodos de imposto seguintes.
5 - Se, passados 12 meses relativos ao período em que se iniciou o excesso, persistir crédito a favor do contribuinte superior a
50.000$00, este poderá solicitar o seu reembolso.
6 - Não obstante o disposto no número anterior, poderá o contribuinte solicitar o reembolso antes do fim do período de 12 meses quando o crédito a seu favor exceda 1.500.000$00, quando se verifique cessação de actividade ou passe a enquadrar-se no disposto nos nºs 3 e 4 do artigo 28º, nº 1 do artigo 54º ou nº 1 do artigo 61º.
7 - Em qualquer caso, a Direcção-Geral das Con-tribuições e Impostos poderá exigir, quando a quantia a reembolsar exceder 100.000$00, caução, fiança bancária ou outra garantia adequada, que deverá ser mantida pelo prazo de um ano.
8 - Os reembolsos de imposto, quando devidos, de-verão ser efectuados pela Direcção-Geral das Contribuições e Impostos até ao fim do 3º mês seguinte ao da apresentação do pedido, findo o qual acrescerão à
quantia a restituir juros contados dia a dia pela taxa constante da portaria a que se refere o nº 3 do artigo 5º do Decreto-Lei nº 49.168, de 5 de Agosto de
1969, com a redacção dada pelo Decreto-Lei nº 318/80, de 20 de Agosto, desde o termo do prazo para o pagamento do reembolso até à data da emissão do respectivo meio de pagamento ou da efectivação da competente transferência bancária, quando o atraso for imputável à administração fiscal.
9 - ...
10 - ...
11 - ...
12 - ...
13 - ...'
Esta era a redacção das normas que vigorava à data em que foi prolatada a sentença recorrida (24 de Março de 1995). Os nºs 5 e 6 já haviam sido alterados pelo Decreto-Lei nº 166/94, de 9 de Junho, cujo artigo 1º se limitou, no essencial, a alterar os montantes anteriormente previstos - de
10.000$00 para 50.000$00, no caso do nº 5; de 500.000$00 para 1.500.000$00, no caso do nº 6. Por outro lado, o nº 8 viria a ser modificado pelo artigo 4º do Decreto-Lei nº 7/96, de 7 de Fevereiro, nos seguintes termos:
'Os reembolsos de impostos, quando devidos, deve-rão ser efectuados pela Direcção-Geral das Contribuições e Impostos até ao fim do 3º mês seguinte ao da apresenta-ção do pedido, findo o qual poderão os sujeitos passivos solicitar a liquidação de juros indemnizatórios nos termos do artigo 24º do Código do Processo Tributário.'
5. No seu conjunto, as normas citadas instituem um sistema de
'conta-corrente' entre a Administração Fiscal e o sujeito passivo do imposto, cujo âmbito de extensão temporal é, em regra, de um ano. As excepções estão contempladas nos nºs 5, parte final, a contrario sensu, e 6. Assim, se o crédito do contribuinte for igual ou inferior a 50.000$00, ele será transmitido de ano para ano (nº 5). Se, diferentemente, o crédito exceder 1.500.000$00, o contribuinte poderá pedir o reembolso antes de decorrido o período de 12 meses (nº 6).
A última excepção compreende-se facilmente: atendendo ao montante da quantia do excesso, seria demasiadamente oneroso obrigar o contribuinte a esperar durante o período de um ano pelo reembolso (o que até poderia pôr em perigo a sua viabilidade económica). E é esta excepção que está em causa, no caso em apreço, dado o montante envolvido.
Por seu turno, a norma em crise - o nº 7 - permite à Administração Fiscal exigir (quando a quantia a reembolsar exceder 100.000$00, como sucede no caso dos autos) caução, fiança bancária ou outra garantia adequada, a manter pelo prazo de um ano.
6. A priori, poderia resultar da norma sub judicio - quando conjugada com o nº 8 do artigo 22º - um de dois sentidos: ou o contribuinte deve, se tal lhe for exigido, prestar imediatamente caução, fiança bancária ou outra garantia quando requerer o reembolso, embora a Administração Fiscal só tenha o dever de proceder a esse reembolso até ao fim do 3º mês seguinte; ou diferentemente, se entende que, no caso de o contribuinte prestar garantia, há lugar ao reembolso imediato.
A primeira interpretação é absolutamente incompatível com o princípio da igualdade, consagrado no artigo 13º da Constituição. Com efeito, ela promoveria uma situação de grave desequilíbrio entre os sujeitos, simultaneamente credores e devedores, da 'conta-corrente': a Administração Fiscal e o contribuinte. Este deveria prestar garantia, suportando desde logo o respectivo custo económico, e esperar por um período eventualmente superior a 3 meses pelo reembolso. Além disso, a referida interpretação postularia que a Administração Fiscal nem sequer teria o dever de proceder ao reembolso no caso de o contribuinte não poder, por qualquer razão, prestar garantia.
Por outro lado, o próprio estabelecimento de um prazo (até ao fim do terceiro mês seguinte ao do pedido) é inconciliável, no plano teleológico, com a exigência de garantia. Na verdade, tal como salientou o Ministério Público nas suas alegações, a exigência de garantia a um potencial credor (o contribuinte que pede o reembolso) justifica-se por o respectivo crédito ainda não estar reconhecido, à semelhança do que sucede nas hipóteses normativas dos artigos
387º, nº 3 (providências cautelares), e 819º (pagamento do exequente, quando o executado haja deduzido embargos) do Código Civil. Ora, o legislador entende que um prazo (superior) a 3 meses é suficiente para a comprovação do crédito, podendo o seu decurso fazer a Administração Fiscal incorrer em mora. Em alternativa, faz depender o imediato reembolso da prestação de garantia.
7. De todo o modo, a sentença impugnada julgou inconstitucional a norma em crise por a garantia se manter pelo prazo de um ano: isto é, por se manter para além do prazo de (mais de) três meses, previsto no nº 8 do artigo
22º do Código do Imposto sobre o Valor Acrescentado.
O tribunal a quo não entendeu que haja uma violação do princípio da igualdade, consagrado no artigo 13º da Constituição - como alegara a executada
-, mas sim que se verifica uma violação do direito de propriedade, previsto no artigo 62º (nº 1) da Constituição. Porém, o Tribunal Constitucional pode, no exercício dos seus poderes cognitivos, julgar inconstitucional a norma sindicada com fundamento na violação de normas ou princípios constitucionais diversos daqueles cuja violação foi invocada (artigo 79º-C da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, aditado pelo artigo 2º da Lei nº 85/89, de 15 de Novembro).
8. O princípio da igualdade não impede o legislador de tratar diferentemente os sujeitos de direito e as situações jurídicas. Ao nível formal, a igualdade impõe um princípio de acção segundo o qual as situações da mesma categoria essencial devem ser tratadas da mesma maneira. No plano material, a igualdade traduz-se na especificação das características constitutivas de cada categoria essencial (cf. Perelman, 'Égalité et Valeurs', L'égalité, 1971, p. 319 e ss.).
A igualdade só proíbe, pois, diferenciações destituídas de fundamentação racional e não explicáveis segundo princípios de justiça material,
à luz dos próprios critérios axiológicos constitucionais [cf., nomeadamente, os Acórdãos nºs 39/88, 186/90, 187/90 e
188/90, Acórdãos do Tribunal Constitucional, 11º vol. (1988), p. 233 e ss., e
16º vol. (1990), pp. 383 e ss., 395 e ss. e 411 e ss., respectivamente; em sentido fundamentalmente idêntico, ver também, na doutrina, Jorge Miranda, Manual de Direito Constitucional, Tomo IV, 2ª ed., 1993, p. 213 e ss., Gomes Canotilho, Direito Constitucional, 6ª ed., 1993, pp. 564-5, e Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 3ª ed., 1993, p.
125 e ss.].
9. No caso sub judicio, o tribunal recorrido entende que o nº 7 do artigo 22º do Código do Imposto sobre o Valor Acrescentado não contraria o princípio da igualdade, mesmo naquela dimensão em que este princípio obsta a que
'um grupo de destinatários da norma em comparação com outro grupo de destinatários da norma é tratado de modo diferente, sem que existam entre os dois grupos diferenças de tal natureza que possam justificar o tratamento desigual' (Acórdão nº 330/93 do Tribunal Constitucional, D.R., II Série, de 30 de Julho de 1993; ver igualmente, na doutrina, Alves Correia, O plano urbanístico e o princípio da igualdade, 1990, p. 425).
Todavia, a norma em crise viola o princípio da igualdade nesta precisa dimensão. Na verdade, os nºs 7 e 8 do artigo 22º do Código do Imposto sobre o Valor Acrescentado reportam-se, como se constatou, a dois grupos de destinatários distintos: o primeiro permite a exigência de garantia ao contribuinte que pretenda o reembolso imediato, quando tal reembolso exceder
100.000$00; o segundo determina que o reembolso não imediato deverá ter lugar num determinado prazo (fim do terceiro mês seguinte ao da data do pedido), a partir do qual poderão ser devidos juros pela Administração Fiscal.
10. A exigência de garantia ao primeiro grupo de contribuintes constitui uma contrapartida proporcionada ao benefício que obtêm com o reembolso imediato e é ditada pela necessidade de a Administração Fiscal averiguar a efectividade do crédito. Contudo, a manutenção da garantia pelo prazo de um ano
- durante o qual o contribuinte suporta, evidentemente, o respectivo custo económico - constitui um tratamento desrazoavelmente diferenciado relativamente ao segundo grupo de contribuintes, ao qual é reconhecido o direito ao reembolso num prazo inferior a quatro meses, a partir do qual são exigíveis juros.
Deste modo, conclui-se que a norma ínsita no artigo 22º, nº 7, do Código do Imposto sobre o Valor Acrescentado viola o princípio da igualdade, consagrado no artigo 13º da Constituição, na medida em que exige que a garantia prestada por contribuintes que beneficiam de reembolso imediato se estenda para além do fim do terceiro mês seguinte ao do pedido de reembolso.
11. Na sentença recorrida entendeu-se que o artigo 22º, nº 7, do Código do Imposto sobre o Valor Acrescentado viola o direito de propriedade, consagrado no artigo 62º, nº 1, da Constituição. Tal violação resultará, alegadamente, de não ser respeitada a garantia do credor à satisfação do seu crédito.
O direito de propriedade, configurado constitucionalmente como um direito económico, não coincide com o conceito civilístico tradicional: para além da propriedade de coisas, abrange a propriedade científica, literária ou artística (artigo 42º, nº 2, da Constituição) e outros direitos de valor patrimonial, como os direitos de crédito (cf. Gomes Canotilho e Vital Moreira, ob.cit., p. 331). Aliás, os direitos de crédito são instrumentais da constituição e do exercício de direitos reais, relativamente às coisas a que se refere o dever de prestar.
Por outro lado, enquanto direito essencialmente 'negativo' ou de defesa, o direito de propriedade possui uma natureza análoga à dos direitos, liberdades e garantias, beneficiando do respectivo regime, por força do artigo
17º da Constituição (cf. Gomes Canotilho e Vital Moreira, ob.cit., pp. 141, 142 e 332). E esse regime abrange, naturalmente, a tutela reforçada conferida pelo artigo 18º da Constituição.
12. Permitindo o reembolso imediato do contribuinte (mesmo antes da comprovação do seu crédito), a norma do nº 7 do artigo 22º do Código do Imposto sobre o Valor Acrescentado não viola, aparentemente, o direito de propriedade, entendido como direito à satisfação de um crédito.
Porém, a satisfação do direito de crédito é feita depender da manutenção de uma garantia pelo prazo de um ano. Ora, é justamente este prazo que se há-de ter como desnecessário e desproporcionado, à luz do nº 2 do artigo 18º da Constituição. O prazo previsto no nº 8 do artigo 22º do Código do Imposto sobre o Valor Acrescentado (fim do terceiro mês seguinte ao daquele em que foi pedido o reembolso) é suficiente para a Administração Fiscal se poder certificar da autenticidade do crédito.
Assim, a norma sub judicio viola, conjugadamente, as normas contidas nos artigos 62º, nº 1, 17º e 18º, nº 2, da Constituição, na medida em que exige que a garantia prestada pelos contribuintes se estenda para além do fim do terceiro mês seguinte ao do pedido de reembolso.
C A questão da constitucionalidade do artigo 853º, nº 1, alínea c), do Código Civil
13. A sentença impugnada 'desaplicou' também o artigo 853º, nº 1, alínea c), do Código Civil, por entender que viola os artigos 13º e 62º (nº 1) da Constituição, na medida em que possa ser interpretado como excluindo a compensação dos créditos do Estado que tenham de operar no mesmo Ministério. Ao recusar a aplicação da mencionada norma, o tribunal a quo entendeu que ela seria aplicável se não a houvesse julgado inconstitucional. Por isso, a norma inclui-se, como se viu, no objecto do presente recurso.
A efectiva 'desaplicação' da norma pode ser, de resto, demonstrada por um processo de inversão. Se o tribunal recorrido não a houvesse julgado inconstitucional e a tivesse aplicado - mesmo que procedendo a uma interpretação do direito infraconstitucional porventura errónea
-, o Tribunal Constitucional apenas poderia determinar a reforma da sentença na sequência de um julgamento de inconstitucionalidade e nunca corrigindo a interpretação dada à norma (e concluindo que ela não deveria ter sido aplicada).
14. O artigo 853º, nº 1, alínea c), do Código Civil dispõe o seguinte:
'1. Não podem extinguir-se por compensação:
a) ...
b) ...
c) Os créditos do Estado ou de outras pessoas colectivas públicas, excepto quando a lei o autorize.
2. ...'
Numa interpretação declarativa estrita, a norma parece impedir sempre a compensação de créditos de particulares com créditos do Estado, salvo quando a lei a permitir. Poderia dizer-se, é certo, que o sistema de
'conta-corrente' consagrado no artigo 22º do Código do Imposto sobre o Valor Acrescentado representa, justamente, uma excepção ao regime proibitivo. No entanto - repete-se -, a norma do Código Civil foi considerada virtualmente aplicável e apenas se recusou a sua aplicação com fundamento em inconstitucionalidade.
15. Tal como salientou o Ministério Público nas suas alegações, a norma em crise será inconstitucional na medida em que estabeleça um injustificado privilégio para o Estado enquanto titular de créditos e débitos estritamente regidos pelo direito privado e em que impeça a compensação de créditos e débitos funcionalmente ligados à liquidação e cobrança de um mesmo e
único imposto. O sentido conforme à Constituição da norma implica uma interpretação restritiva - aquilo que, legitimamente, se proscreve é a compensação entre créditos de natureza privada e créditos de natureza pública.
Por conseguinte, conclui-se que a norma constante do artigo 853º, nº
1, alínea c), do Código Civil viola o princípio da igualdade, consagrado no artigo 13º da Constituição, quando interpretado por forma a concluir-se que obsta à compensação de créditos e débitos funcionalmente ligados à liquidação e cobrança de um mesmo e único imposto (no caso, o Imposto sobre o Valor Acrescentado).
Por outro lado, a mesma interpretação da norma corresponde a uma restrição desnecessária e desproporcionada do direito de propriedade (relativo ao crédito do particular), violando, conjugadamente, as normas contidas nos artigos 62º, nº 1, 17º e 18º, nº 2, da Constituição. Efectivamente, o instituto da compensação, para além de constituir uma causa de extinção das obrigações
(diversa do cumprimento), visa, outrossim, a satisfação de créditos. E, nessa medida, é instrumental do direito de propriedade, na sua configuração constitucional.
Maria Fernanda Palma José Manuel Cardoso da Costa