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Processo nº 700/95
2ª Secção Relator: Cons. Guilherme da Fonseca
Acordam, em conferência, na 2ª Secção do Tribunal Constitucional:
1. A A., com os sinais identificadores dos autos, veio interpor recurso para este Tribunal Constitucional do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 16 de Maio de 1995, que 'revogou a decisão tomada pelo Venerando Tribunal da Relação de Lisboa' (o acórdão de 6 de Outubro de 1994, que entendeu competir aos tribunais judiciais o conhecimento dos pedidos formulados pela Autora, ora recorrente, 'em acção declarativa com processo comum na forma ordinária' intentado contra o Estado Português) e julgou 'incompetentes os tribunais judiciais para apreciarem e decidirem a presente acção, dado que tal competência pertence ao Tribunal Constitucional'.
Na base do julgado estão as seguintes considerações essenciais:
'A discrepância ora referida resulta do facto do Estado se ater exclusivamente aos pedidos que foram claramente formulados, quase esquecendo o que a eles se encontra intrinsecamente ligado, sobretudo no que toca ao primeiro desses pedidos. Como bem se explicou no acórdão recorrido, para a A. não está em causa o direito à indemnização, decretado por lei e reconhecido pelo Estado. O que agora está em jogo é a sua quantificação e o prejuízo decorrente do não pagamento atempado, precisamente por falta dessa quantificação. Daí que, correctamente, imputa a responsabilidade dessa falta ao Estado, por omissão de publicação de lei necessária, para o efeito. O que o recorrente (o Estado) muito timidamente aceita nas suas conclusões quando diz que ambos os pedidos decorrem de actos de gestão pública e estão direccionados para a ilícita omissão dos órgãos estaduais competentes na fixação da justa indemnização e no seu pagamento atempado. Só que a referida omissão ilícita dos órgãos estaduais competentes foi devidamente concretizada e até antecede e condiciona o pedido de pagamento da justa indemnização devida. Sem que tal questão se decida não é possível resolver a do pagamento dessa indemnização e dos prejuízos decorrentes da respectiva falta, em função do tempo já decorrido. E é em relação a este núcleo, que se tem de colocar o problema da competência. Assim, de imediato se afasta a aplicação da al. h), do art. 51º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais. O que não significa estar correcta a decisão proferida pela 2ª instância. Esta só estaria certa se na excepção consignada na falada aln. b), do nº 1, do art. 4º, do referido Estatuto, se referisse expressamente a responsabilidade por danos decorrentes pelo não exercício da função legislativa. E, também, se não houvesse uma norma no nosso ordenamento jurídico que não considerasse a omissão de medidas legislativas e que se considera adequada ao caso 'sub iudice'. Trata-se do nº 1, do art. 283º da Constituição da República Portuguesa que, curiosamente, o Estado nas suas conclusões se limita a dizer que foi violada, sem daí extrair as necessárias consequências legais'.
2. No requerimento de interposição do recurso para este Tribunal Constitucional, 'ao abrigo do artigo 70º, nº 1 alínea b) da Lei nº
28/82 de 15 de Novembro', invoca a recorrente:
'Com fundamento na aplicação feita, pelo dito Acórdão de que ora se recorre, da norma da alínea b) do nº 1 do Artigo 4º do Decreto-Lei nº 129/84 de 29 de Abril com interpretação que se tem por Inconstitucional. A ser correcta a interpretação dada a tal preceito pelo Supremo Tribunal de Justiça, deverá ser declarada inconstitucional a norma que dele se extrai, por violação do disposto nos artigos 205º, nºs 1 e 2, 213º, nº 1, 62º, nºs 1 e2,
83º, 17º e 18º da Constituição da República Portuguesa O ora Recorrente apenas suscitou a questão das inconstitucionalidades da referida norma no Requerimento de Aclaração do Acórdão de que ora se recorre e que em tempo se dirigiu ao Venerando Supremo Tribunal de Justiça, uma vez que tal interpretação do preceito foi efectuada pela primeira vez nos presentes autos pelo Venerando Supremo Tribunal de Justiça no douto aresto ora impugnado. Ou seja, não houve em qualquer outra instância oportunidade para alegar tais inconstitucionalidades, visto que as mesmas, a existirem, decorrem do entendimento normativo extraído da letra da Lei pelo Venerando Supremo Tribunal de Justiça.'
3. O que fica transcrito revela à saciedade qual o tipo de recurso de constitucionalidade interposto pela recorrente e qual o seu objecto e âmbito de conhecimento.
A ser assim, imperioso será demonstrar que, como diz a recorrente, 'não houve em qualquer outra instância oportunidade para alegar tais inconstitucionalidade' e, por isso, ela 'apenas suscitou a questão das inconstitucionalidades da referida norma no Requerimento de Aclaração do Acórdão de que ora se recorre e que em tempo se dirigiu ao Venerando Supremo Tribunal de Justiça, uma vez que tal interpretação do preceito foi efectuada pela primeira vez nos presentes autos pelo Venerando Supremo Tribunal de Justiça no douto aresto ora impugnado'.
Isto porque o pressuposto do presente recurso de constitucionalidade ora relevante - o de ter sido suscitada 'durante o processo' a questão de inconstitucionalidade - não pode dar-se como verificado, em regra, quando a questão de inconstitucionalidade se suscita só em peças processuais apresentadas após a decisão em causa, como é o caso de requerimento de aclaração dessa decisão, talqualmente se posiciona a jurisprudência corrente deste Tribunal Constitucional.
Por isso mesmo, foi elaborada pelo Relator a EXPOSIÇÃO a que se refere o artigo 78º-A, da citada Lei nº 28/82, aditado pelo artigo 2º, da Lei nº 85/89, de 7 de Setembro, apontando para que se não conheça do presente recurso de constitucionalidade, por não se poder dar como verificado aquele pressuposto processual da suscitação da questão de inconstitucionalidade
'durante o processo', ao que respondeu proficientemente a recorrente, persistindo na posição de que o requerimento de aclaração do acórdão recorrido foi o 'primeiro e único momento processual' adequado a suscitar a tal questão de inconstitucionalidade.
E, face a essa resposta, parece assistir razão à recorrente.
Com efeito a norma jurídica questionada pela recorrente não pode deixar de ser, na interpretação dada pelo acórdão recorrido, a do artigo 4º, nº 1, b), do Decreto-Lei nº 129/84, de 27 de Abril, o E.T.A.F., enquanto que, em conjugação com o artigo 283º da Constituição, atribui competência a este Tribunal Constitucional para conhecer de uma 'acção declarativa com processo comum na forma ordinária' intentada pela recorrente contra o Estado Português, para efectivação da responsabilidade civil extracontratual fundada em omissões legislativas.
Ora, uma tal interpretação daquela norma do artigo 4º, nº
1, b), revela-se de todo em todo imprevisível, com a atribuição da competência a este Tribunal Constitucional, razão porque não era exigível à recorrente que antes de proferido o acórdão recorrido tivesse suscitado uma qualquer questão de inconstitucionalidade, mesmo no plano da aplicação de tal norma com certa via interpretativa. Como se alcança do autos, o debate estabelecido entre o Ministério Público e a recorrente, no recurso de agravo interposto para o Supremo Tribunal de Justiça, em torno da norma do artigo 4º, nº 1, b), cingiu-se à matéria da competência, em razão da matéria, dos tribunais judiciais e dos tribunais administrativos para conhecer da acção declarativa em causa.
Donde não poder ser atendida a questão do não conhecimento do presente recurso de constitucionalidade.
Assim se decidiu no acórdão nº 181/96, junto a fls. 206 e seguintes dos autos, ordenando-se aí o seguimento do presente recurso.
4. Passando então à fase das alegações, apresentou-as em tempo a recorrente, formulando as seguintes conclusões:
'a) O presente recurso foi interposto com fundamento na aplicação feita pelo Acórdão do Venerando Supremo Tribunal de Justiça da norma da alínea b) do nº 1 do artigo 4º do Decreto-Lei nº 129/84, de 29 de Abril, com base em interpretação que se tem por inconstitucional.
b) Nunca foi pela Autora, ora recorrente, pedido que fosse declarada a inconstitucionalidade da omissão do comportamento devido por parte dos órgãos legislativos, por não criarem a legislação necessária ao pagamento das justas indemnizações pelas expropriações/nacionalizações da Reforma Agrária.
c) O que se pediu foi que, constatada a omissão legislativa, se verificasse o montante dos danos causados pela mesma, e, em consequência, fosse o Réu Estado condenado no pagamento da correspectiva indemnização por responsabilidade civil.
d) Assim, a omissão legislativa no caso sub judice serve de pressuposto do dever de indemnizar que recai sobre o Réu Estado mercê de uma conduta ilícita, culposa e danosa que desenvolveu.
e) Tratando-se de verificar os pressupostos da responsabilidade civil, e de condenar num dever de indemnizar por um comportamento comissivo por omissão no exercício da função legislativa, não se trata, como é seguro, de conceder ou denegar provimento a um pedido de verificação de inconstitucionalidade por omissão.
f) Assim, não se pode de todo compreender como pode o douto Assento, ora recorrido, concluír que 'compete ao Tribunal Constitucional apreciar e verificar se no caso' 'sub judice' não foi tornado exequível o disposto no nº 2 do artigo 62º da Constituição da República Portuguesa, por omissão da necessária medida legislativa, se essa omissão conduz à caducidade do direito do Estado legislar em tal domínio e se assim acontecer como se deve suprir a falta daí decorrente'.
g) Porque o que se pede nesta acção não é a declaração da inconstitucionalidade por omissão, mas antes a verificação, com base nos factos que foram provados e noutros que notórios são, que com tal omissão geraram-se prejuízos na esfera da Autora, ora recorrente, que por imperativo constitucional não podem deixar de ser ressarcidos.
h) Assim sendo, como é, não cabe remeter o pedido da Autora, ora recorrente, para um julgamento a ser efectuado pela Jurisdição Constitucional, uma vez que não foi pedida qualquer declaração de inconstitucionalidade por omissão, mas antes, e apenas, uma condenação do Réu Estado no pagamento de indemnização resultante do 'exercício da função legislativa'.
i) PEDIDO esse apresentado à jurisdição civil, uma vez que à mesma compete, nos termos do artigo 4º nº 1 alínea b) do Decreto-Lei nº 129/ /84, de 29 de Abril, julgar questões de responsabilidade pelos danos decorrentes do exercício da função legislativa.
j) O douto Acórdão recorrido revoga a acertada decisão da Relação, concluindo que a jurisdição civil é incompetente para conhecer do pedido da Autora, ora recorrente, depois de ter aceite claramente que se trata de um pedido de indemnização por responsabilidade civil do Estado por condutas praticadas no exercício da função legislativa.
l) Lê-se no douto aresto que 'Assim, de imediato se afasta a aplicação da alínea h) do artigo 51º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais', o que teria por consequência única o fazer recair o caso vertente na previsão da alínea b) do nº 1 do artigo 4º do mesmo diploma.
m) Todavia assim o não entende o douto Supremo Tribunal de Justiça afirmando que o artigo 4º nº 1 alínea b) do Decreto-Lei nº 129/84, de 29 de Abril, sofre uma delimitação negativa da sua operatividade mercê da conjugação com o artigo 283º nº 1 da Constituição da República Portuguesa.
n) Com tal interpretação do artigo 4º nº 1 alínea b) do Decreto-Lei nº 129/84, de 29 de Abril, mercê da delimitação negativa que lhe será imposta pelo artigo
283º nº 1 da Constituição da República Portuguesa, o douto aresto recorrido dá a tal preceito um sentido inconstitucional, pois aos particulares ficará vedado o acesso aos Tribunais para demandarem o Estado por actos ilícitos, culposos e lesivos que consistam em omissões por parte dos seus órgãos legislativos, ficando a Autora impedida de recorrer ao poder judicial para tutelar o direito
à justa indemnização constitucionalmente reconhecido e garantido no artigo 62º nº 1 e 2 e 83º da Constituição da República Portuguesa.
o) Se for esse o sentido com que deve valer o referido artigo 4º nº 1 alínea b) do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, não pode o mesmo deixar de ser inconstitucional, por violação do disposto nos artigos 205º nºs 1 e 2, 213º nº 1, 62º nºs 1 e 2, 83º, 17º e 18º da Constituição da República Portuguesa.
p) Isto porque, nesse caso, e como resulta da parte final da fundamentação do Acórdão recorrido, não eram competentes nem a jurisdição Administrativa (porque se trata de responsabilidade do Estado no exercício de função legislativa) nem a jurisdição Civil (porque da responsabilidade do Estado pelo exercício da função legislativa só lhes seria lícito conhecer de comportamentos activos).
q) Para apreciar e julgar estes actos lesivos cometidos por omissão dos órgãos legislativos só seria competente o Tribunal Constitucional, por via do artigo
283º da Constituição da República Portuguesa, via essa vedada aos particulares.
r) Não podia estar, e não estava, no espírito legislativo prevista tal situação, e se esteve, então a norma do artigo 4º nº 1 alínea b) do Decreto-Lei nº 129/84, de 29 de Abril, com a interpretação que foi dada pelo douto Acórdão, ora recorrido, será inconstitucional, por violação dos artigos 205º nºs 1 e 2, 213º nº 1, 62º nºs 1 e 2, 83º, 17º e 18º da Constituição da República Portuguesa'.
5. Contra-alegou o recorrido Estado Português, representado pelo Ministério Público, adiantando a seguinte conclusão:
'1º
Tendo o legislador editado, para concretização e preenchimento do estatuído na Lei nº 80/77, de 26 de Outubro, os Decretos-Leis nºs 2/79, de 9 de Janeiro, e
199/88, de 31 de Maio que têm como objectivo regular os processos e os critérios relativos à determinação do valor das indemnizações, provisórias e definitivas, a atribuir aos ex-titulares de prédios expropriados ou nacionalizados ao abrigo da legislação sobre reforma agrária, é manifesto que não ocorre qualquer 'omissão legislativa', susceptível de originar os danos peticionados nesta acção, como consequência adequada da omissão do dever de legislar sobre tal matéria.
2º
A ilicitude de uma pretensa 'omissão legislativa' dos órgãos constitucionalmente competentes é perfeitamente incindível da apreciação da inconstitucionalidade do comportamento omissivo do legislador, já que este pressupõe um 'dever de legislar' decorrente de uma 'exigência constitucional de acção'.
3º
A verificação da existência ou inexistência de um tal 'dever de legislar' só pode ser apreciado pelo Tribunal Constitucional e como 'thema decidendum' do processo de verificação da inconstitucionalidade por omissão, não incumbindo aos restantes tribunais pronunciarem-se, embora de forma incidental, sobre tal matéria, perspectivada como questão prejudicial relativamente à pretensão indemnizatória deduzida contra o Estado, fundada na alegada omissão das medidas legislativas necessárias à efectivação de um direito fundamental do autor.
4º
Não viola, consequentemente, qualquer preceito ou princípio constitucional a interpretação da norma de repartição das competências materiais dos tribunais judiciais e administrativos, contida no artigo 4º, nº 1, alínea b) do Decreto-Lei nº 129/84, de 29 de Abril, em termos de considerar retirada a ambas as ordens de tribunais a competência para apreciar a existência de um dever de legislar, decorrente da Lei Fundamental, por se entender que tal matéria está exclusivamente reservada ao Tribunal Constitucional, no âmbito do processo referido no artigo 283º da Constituição da República Portuguesa'.
6. Vistos os autos, cumpre decidir.
Da transcrição feita dos articulados resulta à evidência a delimitação do 'thema decidendum', registando-se ainda como marcante a seguinte passagem do acórdão recorrido sobre a competência do Tribunal Constitucional para 'apreciar e verificar se no caso 'sub íudice' não foi tornado exequível o disposto no nº 2 do artº 62º da Constituição da República Portuguesa, por omissão da necessária medida legislativa, se essa omissão conduz à caducidade do direito do Estado legislar em tal domínio e se assim aconteceu, como se deve suprir a falta daí decorrente', sendo que no mesmo acórdão diz-se que 'a Relação entendeu ser aplicável ao caso o princípio de que as causas que não sejam atribuídas por lei a alguma jurisdição especial são da competência do tribunal judicial, o qual se encontra estatuído nos artigos 213º, nº 1, da Constituição da República Portuguesa, 66º do Código de Processo Civil e 14º da Lei Orgânica dos Tribunais Judiciais'.
E, quanto à identificação do objecto do presente recurso, está ela já feita quando atrás ficou dito que 'a norma jurídica questionada pela recorrente não pode deixar de ser, na interpretação dada pelo acórdão recorrido, a do artigo 4º, nº 1, b), do Decreto-Lei nº 129/84, de 27 de Abril, o E.T.A.F., enquanto que, em conjugação com o artigo 283º da Constituição, atribui competência a este Tribunal Constitucional para conhecer de uma 'acção declarativa com processo comum na forma ordinária' intentada pela recorrente contra o Estado Português, para efectivação da responsabilidade civil extracontratual fundada em omissões legislativas'.
Por outras palavras, tal como o Ministério Público faz a demarcação, nas respectivas contra-alegações: o presente recurso é 'circunscrito
à questão da inconstitucionalidade da interpretação da norma constante do artigo
4º, nº 1, alínea b) do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, em termos de aos particulares ficar vedado o acesso aos Tribunais Judiciais (e administrativos) neles demandando o Estado para obterem o ressarcimento de danos consequentes a pretensas omissões ilícitas e culposas do 'dever de legislar', já que - por força do disposto no nº 1 do artigo 283º da Constituição da República Portuguesa - a verificação da inconstitucionalidade por omissão em tal circunstância, apenas incumbe ao Tribunal Constitucional'.
Há, portanto, apenas que indagar se tal norma, interpretada e aplicada como foi pelo acórdão recorrido, está em desconformidade com a Constituição, como sustenta a recorrente e se opõe o Ministério Público.
A resposta - adiante-se já - tem de ser afirmativa, pelo que não poderá subsistir o julgado, quando a par do juízo de incompetência dos tribunais judiciais para apreciarem a presente acção, se entende que 'tal competência pertence ao Tribunal Constitucional'.
Sabendo-se que se está perante uma 'acção declarativa de condenação com processo comum na forma ordinária', intentada pela recorrente contra o Estado Português, em que se pede a condenação deste a pagar 'a justa indemnização pela expropriação e outras medidas de reforma agrária', tal como se descreve na petição inicial, 'bem como os prejuízos decorrentes das condutas' descritas na mesma petição - 'montantes a apurar em execução de sentença' -, e sabendo-se ainda que ao longo dos arestos e nestes últimos quatro anos ainda aqui se discute um pressuposto processual relativo à competência dos tribunais, no caso, a competência em razão da matéria, com origem num despacho das instâncias de indeferimento liminar da petição inicial, toda a questão de inconstitucionalidade pode, por comodidade, reduzir-se à questão de saber se a interpretação dada pelo acórdão recorrido ao artigo 4º, nº 1, b), da E.T.A.F., aplicando-o para decidir aquele pressuposto processual, ofende ou não o artigo
20º, nº 1, conjugado com os artigos 18º, nº 3, 205º, nº1 e 2, e 213º, nº 1, da Constituição, na medida em que sai afectado o direito à via jurisdicional.
Portanto, e nesta via redutora, não interessa entrar em linha de consideração com a análise dos tipos de fiscalização da inconstitucionalidade de normas jurídicas, nomeadamente da fiscalização por omissão, nem importa indagar da alegação dos factos constitutivos do direito a que se arroga a recorrente e que preenchem a causa de pedir na acção cível ora em apreciação (sempre se dirá, contudo, como regista o Ministério Público nas suas alegações, que, para fundamentar a sua pretensão, a Autora ora recorrente,
'alega ter o R. omitido até ao presente a publicação de legislação que determine as regras a utilizar na fixação das indemnizações a atribuir aos expropriados com as nacionalizações, conforme estava previsto nos diplomas em causa, pelo que, decorridos 15 anos, deve considerar-se caduco o poder de o legislador proceder a tal fixação, competindo aos tribunais judiciais verificar essa caducidade e aplicar os critérios previstos na lei geral para as expropriações na fixação daquela indemnização devida à autora').
Tudo se centra, pois, à volta do aludido pressuposto processual relativo à competência dos tribunais, havendo que saber unicamente se, ficando, em razão da matéria da causa, à recorrente vedado o acesso aos tribunais da ordem judiciária comum e da ordem judiciária administrativa, o direito à tutela judicial efectiva fica assegurado com a verificação da inconstitucionalidade por omissão, da competência deste Tribunal Constitucional. E isto independentemente de apurar, como faz o Ministério Público, do bem fundado e da inteligibilidade do pedido da recorrente na acção cível.
7. De acordo com a questionada norma do artigo 4º, nº 1, al. b), do E.T.A.F.. estão excluídas da jurisdição administrativa e fiscal as acções que tenham por objecto: 'Normas legislativas e responsabilidade pelos danos decorrentes do exercício da função legislativa'.
Mas, então, a competência para conhecer e decidir tais acções, suposto mesmo que isso é a hipótese presente, pertencerá aos tribunais judiciais comuns em matéria cível, de acordo com a regra constitucional do nº 1 do artigo 213º e transposta para o artigo 14º da Lei Orgânica dos Tribunais Judiciais (a originária Lei nº 38/87, de 23 de Dezembro).
Em caso algum pode conceber-se caber na competência do Tribunal Constitucional o conhecimento e a decisão - condenatória ou absolutória do réu Estado - numa acção cível como é o caso em presença, ainda que se aceite, por comodidade de raciocínio que a causa de pedir passa por 'apreciar e verificar se no caso 'sub iudice' não foi tornado exequível o disposto no nº
2 do artigo 62º da Constituição da República Portuguesa, por omissão da necessária medida legislativa, se essa omissão conduz à caducidade do direito do Estado legislar em tal domínio e se assim acontecer, como se deve suprir a falta daí decorrente', talqualmente é expressão do acórdão recorrido.
É que, e desde logo, a competência do Tribunal Constitucional, no que toca aos direitos dos cidadãos e ao modo do seu exercício, está restrita 'à questão da inconstitucionalidade ou da ilegalidade, conforme os casos' (nº 6 do artigo 280º da Constituição e artigos 6º e 71º, nº 1 da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro), e funciona apenas instrumentalmente, por via de suscitação daquela questão, em qualquer processo, quando as decisões dos tribunais aplicam ou desaplicam normas jurídicas infraconstitucionais (aqui reside a essência da fiscalização concreta da constitucionalidade). Sendo que, em sede da fiscalização por omissão, ela só pode desencadear-se a 'requerimento do Presidente da República, do Provedor de Justiça ou, com fundamento em violação de direitos das regiões autónomas, dos presidentes das assembleias legislativas regionais', e nunca por iniciativa dos cidadãos (artigo 283º da Constituição), tendo apenas o efeito previsto no nº 2 desse , se for verificada a existência de inconstitucionalidade (dar 'disso conhecimento ao órgão legislativo competente'; cfr. o artigo 68º da Lei nº 28/82).
8. 'O artigo 20º, nº 1, da Constituição estabelece que 'a todos é assegurado o acesso ao direito aos tribunais para defesa dos seus direitos e interesses legítimos, não podendo a justiça ser denegada por insuficiência de meios económicos'.
Consagra este preceito dois direitos fundamentais distintos, embora estreitamente conexos: o direito de acesso ao direito e o direito de acesso aos tribunais - sendo o primeiro mais amplo e, muitas vezes, pressuposto do segundo, na medida em que o recurso a um tribunal com a finalidade de obter dele uma decisão jurídica sobre uma questão juridicamente relevante (direito de acesso aos tribunais ou direito à protecção jurídica através dos tribunais) pressupõe logicamente um correcto conhecimento dos direitos e deveres por parte dos seus titulares (cfr., neste sentido, Gomes Canotilho/Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 3ª ed., Coimbra, Coimbra Editora, 1993, p. 161 ss.).
O direito de acesso aos tribunais ou à tutela jurisdicional, condensado no artigo 20º, nº 1, da Lei Fundamental, implica a garantia de uma protecção jurisdicional eficaz ou de uma tutela judicial efectiva. Ele desdobra-se, por isso, em três momentos distintos: primeiro, no direito de acesso a «tribunais» para defesa de um direito ou de um interesse legítimo, isto é, um direito de acesso à «Justiça», a órgãos jurisdicionais, ou, o que é mesmo, a órgãos independentes e imparciais (artigo 206º da Constituição) e cujos titulares gozam das prerrogativas da inamobilidade e da irresponsabilidade pelas suas decisões (artigo 218º, nºs. 1 e 2, da Lei Fundamental); segundo, uma vez concretizado o acesso a um tribunal, no direito de obter uma solução num prazo razoável; terceiro, uma vez ditada a sentença, no direito à execução das decisões dos tribunais ou no direito à efectividade das sentenças (cfr., J.J. Gomes Canotilho, Direito Constitucional, 5ª ed., Coimbra, Almedina, 1991, pp. 666-668; J. González Pérez, El Derecho a la Tutela Jurisdiccional, Barcelona, Civitas, 1984, pp. 40 e segs.; A Cano Mata,
«Declaraciones de inadmision de recursos contencioso-administrativos Y derecho de tutela judicial efectiva sin indefension», in Revista de Derecho Publico, ano XIII, vol. II, pp. 293 e segs.).
Na linha do exposto, o Acórdão deste Tribunal nº 86/88
(publicado no Diário da República, 2ª Série, nº 93, de 22 de Agosto de 1988) caracterizou o direito de acesso aos tribunais como sendo, «entre o mais, um direito a uma solução jurídica dos conflitos, a que se deve chegar em prazo razoável e com observância de garantias de imparcialidade e independência, possibilitando-se, designadamente, um correcto funcionamento das regras do contraditório, em termos de cada uma das partes poder «deduzir as suas razões
(de facto e de direito), oferecer as suas provas, controlar as provas do adversário e discretear sobre o valor e resultado de umas e outras» (cfr. Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, I, Coimbra, 1956, p. 364)'.
A passagem acabada de transcrever do recente acórdão deste Tribunal Constitucional nº 934/96, inédito (cfr. ainda o acórdão nº
960/96) revela bem que a aplicação em determinado caso de normas jurídicas, ou, então, a adopção de um sentido e interpretação dessas normas para serem aplicadas nesse caso, é frontalmente violadora da garantia de uma protecção jurisdicional eficaz ou de uma tutela judicial efectiva sempre que seja posto em crise o direito a uma solução jurídica dos conflitos. Por outras palavras: sempre que sejam postergados instrumentos da defesa dos direitos e interesses legítimos dos cidadãos e, nomeadamente, o direito de acção, que se materializa através de um processo.
Ora, é essa a situação evidenciada in casu com a interpretação dada pelo acórdão recorrido ao questionado artigo 4º, nº 1, b) do E.T.A.F., pois que, apontando-se, em sede de competência em razão da matéria, como pressuposto processual relativo aos tribunais, para a competência do Tribunal Constitucional, numa acção cível para efectivação da responsabilidade civil extracontratual do Estado, está a derrogar-se o direito de acção, a correspondência entre o direito de acção que vem assegurada no artigo 2º do Código de Processo Civil, sendo, pois, inconstitucional tal interpretação.
Com o que se mostra violado o citado artigo 20º, nº 1, conjugado com os artigos 18º, nº 3, 205º, nº 1, e 213º, nº 1, todos da Constituição, com a interpretação dada pelo acórdão recorrido ao artigo 4º, nº
1, b), do E.T.A.F..
9. Termos em que, DECIDINDO, concede-se provimento ao recurso e revoga-se o acórdão recorrido, para ser reformado de acordo com o presente juízo de inconstitucionalidade. Lisboa, 12 de Março de 1997 Guilherme da Fonseca Bravo Serra Messias Bento José de Sousa e Brito Luís Nunes de Almeida