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Proc. nº 913/96 (Reclamação)
2ª Secção Relator: Cons. Sousa e Brito
Acordam na 2ª Secção do Tribunal Constitucional :
I RELATÓRIO
1. Acusados da co-autoria, com outros quatro arguidos, de um crime de «abuso de autoridade» previsto e punido nos termos da conjugação dos artigos 94º alínea e) e 95º corpo do Código de Justiça Militar (adiante CJM), vieram A. e B., elementos da Guarda Nacional Republicana, a ser julgados e condenados pelo 1º Tribunal Militar Territorial de Lisboa, julgamento este anulado por Acórdão do Supremo Tribunal Militar de 27/4/95 que considerou ter ocorrido na audiência de julgamento 'nulidade essencial', ordenando, em função disso, nos termos do artigo 457º nº 2 do CJM, a sua reforma 'no mesmo Tribunal de instância'.
Transitada esta decisão, baixou o processo ao 1º TMTL que, cumprindo o Acórdão do STM, procedeu a novo julgamento. No início deste, através de requerimento ditado para a acta (conforme certificação a fls. 10) suscitaram os dois arguidos aqui reclamantes a inconstitucionalidade do artigo 457º nº 2 do CJM fundada na circunstância de o julgamento estar a ser repetido pelo mesmo Tribunal que proferira a decisão anulada. A este propósito, também na mesma acta, consignou o Tribunal o seguinte (v. fls. 11) :
'A questão ora suscitada nos autos encontra-se expressamente decidida no douto Acórdão do Supremo Tribunal Militar a fls. 404 vº (refere-se ao Acórdão de
27/4/95), pelo que sobre a mesma não pode este Tribunal voltar a pronunciar-se. Discordando do decidido pelo Supremo Tribunal Militar, sempre os réus poderiam ter apresentado em tempo o competente recurso. Não o tendo feito, este Tribunal procederá a julgamento como ordenado pelo Supremo Tribunal Militar”.
Realizado esse (novo) julgamento, foram os arguidos aqui reclamantes condenados pelo crime referido no libelo na pena de sete meses de presídio militar.
Recorreram, então, através da peça certificada a fls. 30/34, para o Supremo Tribunal Militar, formulando as conclusões que se transcrevem :
' 1ª - Deve o Acórdão recorrido ser julgado nulo e sem efeito por deficiência e obscuridade no julgamento da matéria de facto, nos termos do artigo 458º alínea c) do CJM.
2º Caso assim não venha a ser (...) entendido então os réus pedem ao Tribunal ad quem que atenda às circunstâncias quer endógenas quer exógenas que rodearam a prática do ilícito criminal militar substituindo-lhes a pena efectiva de sete meses de presídio militar em que cada um deles foi condenado, ainda que por igual tempo de presídio militar mas suspensa por um período de tempo que por bem for entendido pelo alto critério de V. Excelências.
3º Caso assim, igualmente, não venha a ser doutamente entendido, porque a isso se opõe a política criminal militar que enforma o Código de Justiça Militar, suscita-se, e desde já, a inconstitucionalidade do Código de Justiça Militar, cuja aplicação aos ora recorrentes ofendeu e desrespeitou o princípio da igualdade e da proporcionalidade estabelecidos nos artigos 13º, 18º nº 2, 2ª parte e 266º todos da Constituição da República Portuguesa.'
2. Apreciando este recurso, através do Acórdão certificado de fls. 35 a 49, entendeu o Supremo Tribunal Militar, na parte que interessa à presente reclamação, o seguinte :
'-------------------------------------------- A parte final do nº 2 do citado artº 457º determina que anulado pelo Supremo Tribunal Militar um julgamento efectuado num Tribunal Militar de instância a sua reforma far-se-á no mesmo Tribunal. A questão, posta pela primeira vez, da inconstitucionalidade desse preceito é interessante e carece de estudo e decisão ponderadas. Sucede, porém, que, in casu e agora não é possível a sua apreciação porque a referida norma não foi aplicada pelo Tribunal recorrido nem o é agora por este Supremo Tribunal. Na verdade, o aludido preceito foi aplicado no acórdão de fls.
395 e seguintes (refere-se aqui o Supremo Tribunal Militar ao já falado Acórdão de 27/4/95), transitado em julgado, tendo o Tribunal a quo apenas cumprido o determinado nesse Acórdão ao repetir o julgamento. E este Supremo Tribunal tem também de acatar o caso julgado resultante do seu acórdão anterior, pelo que a eventual inconstitucionalidade suscitada nunca poderia sobrepor-se àquele. Assim, improcede o referido recurso, já que o tribunal a quo, ao proferir o aresto recorrido, se limitou a acatar, como lhe cumpria, o decidido por este Supremo Tribunal em acórdão transitado em julgado.'
Mais adiante, ao confirmar a pena aplicada no Tribunal de instância aos arguidos, ponderou ainda o Supremo Tribunal Militar no mesmo aresto :
'--------------------------------------------
, as circunstâncias da infracção e as suas consequências e a intensidade do dolo justificam que se mantenha a pena a cada um deles aplicada pelo aresto recorrido, de sete (7) meses de presídio militar. Pedem os recorrentes que tal pena seja declarada suspensa na sua execução. Para além de ser jurisprudência uniforme deste Supremo Tribunal que as penas de presídio militar não podem ser suspensas, o certo é que in casu não se justifica tal suspensão, pelas necessidades de prevenção geral e especial resultantes do cumprimento das penas.
--------------------------------------------'
3. A estes aspectos da decisão se refere o recurso de constitucionalidade intentado interpor para este Tribunal no requerimento certificado a fls. 51. Trata-se de recurso fundado na alínea b) do nº 1 do artigo 70º da Lei nº 28/82 de 15 de Novembro, acrescentando aí os ora reclamantes que o interpõem :
'(...) por violação dos princípios, de independência e imparcialidade, artigo
206º, do contraditório, artigo 32º nº 5, todos da CRP, respectivamente pelos artigos 457º nº 2, na parte em que manda que o processo seja reformado no mesmo tribunal de instância e artigo 401º ambos do CJM e ainda porque a aplicação aos recorrentes das normas contidas no CJM violou o princípio da igualdade e proporcionalidade estabelecidos nos artigos 13º, 18º nº 2, 2ª parte e 266º todos da CRP.'
Proferiu, então, o Relator do processo o despacho certificado a fls.52, não admitindo o recurso. Aí se lê a dado passo :
'------------------------------------------- Ora, embora a constitucionalidade do art. 457º nº 2 in fine do CJM, tenha sido suscitada, o certo é que o Acórdão de fls. não aplicou a mesma norma. Esta foi utilizada em anterior aresto deste Supremo Tribunal(...) transitado em julgado, limitando-se quer o Tribunal de Instância, quer este Supremo Tribunal a acatar o caso julgado.'
E mais adiante, relativamente ao outro aspecto suscitado no requerimento de interposição de recurso, acrescenta o mesmo despacho:
'Quanto à aplicação aos recorrentes do CJM é óbvio que não constitui recurso de constitucionalidade.
É entendimento uniforme e pacífico do Tribunal Constitucional, com base nos textos constitucional e legal, que os recursos de constitucionalidade versam somente sobre normas e não sobre as decisões dos tribunais em si mesmo consideradas. Ora, os recorrentes não arguem de inconstitucional o CJM, mas sim a sua aplicação aos recorrentes, o que está excluído da competência do Tribunal Constitucional. Poder-se-ia entender que a inconstitucionalidade arguida seria da interpretação dada ao CJM (pelo menos a algumas das suas disposições) pelo aresto de que se pretende recorrer, mas nem isso ocorre. Está em causa o entendimento deste Supremo Tribunal que não é aplicável no processo criminal militar a suspensão da execução das penas de presídio militar e prisão militar. Ora, in casu, tal suspensão não foi aplicada por este Tribunal considerar que não se justifica tal suspensão, 'pelas necessidades de prevenção geral e especial resultantes do cumprimento das penas', afastar a eventual aplicação ou não da norma do CJM que proíbe ou autoriza a mesma suspensão. Mas, mesmo que assim se não entenda, o certo é que a orientação deste Supremo Tribunal resulta da inexistência de norma do CJM que autorize a suspensão da pena e da recusa de aceitar como aplicáveis subsidiariamente normas do Código Penal, o que pode traduzir inconstitucionalidade por omissão, não apreciável pelos tribunais ordinários ou erro ou inconstitucionalidade da própria decisão judicial, não havendo em qualquer dos casos, recurso para o Tribunal Constitucional.'
Confirmada posteriormente pelo Acórdão do Supremo Tribunal Militar de fls. 5 a 7, foi tal recusa de admissão do recurso objecto da presente reclamação, pelas seguintes razões:
'------------------------------------------- os reclamantes, no recurso que interpuseram do acórdão proferido pelo 1º Tribunal Militar Territorial de Lisboa para o Supremo Tribunal Militar, suscitaram a inconstitucionalidade do Código de Justiça Militar, cuja aplicação
(...) ofendeu e desrespeitou o princípio da igualdade e da proporcionalidade estabelecidos nos artigos 13º, 18º nº 2 e 2ª parte e 266º. Todos da CRP. Tal recurso assenta,
- na aplicação aos recorrentes do CJM, portanto das normas deste, cuja inconstitucionalidade tinha sido já suscitada no recurso interposto, pelo STM e,
- na violação dos princípios de independência e imparcialidade contidos na CRP pelo artigo 457º nº 2, 2ª parte do CJM, cuja inconstitucionalidade foi igualmente suscitada. Nesta parte, relativamente à questão levantada pelo STM sobre a extemporaneidade do recurso, sempre se dirá que o 1º Tribunal Militar Territorial de Lisboa, voltou, implicitamente, no 2º julgamento a pronunciar-se sobre a sua competência, ao conhecer e apreciar as questões prévias que obstem ao conhecimento do mérito da causa nos termos da lei processual penal. Por esta razão entendemos que é tempestivo o recurso, respeitante à inconstitucionalidade do artigo 457º nº 2, na parte em que manda que o processo
'seja reformado no mesmo tribunal de instância'. Aliás, se os recorrentes tivessem arguido a inconstitucionalidade de tal norma depois da sua aplicação pelo STM o recurso merecia indeferimento porque tal inconstitucionalidade não tinha sido suscitada previamente------------------------------------------------'
Colhidos Parecer do Ministério Público (no sentido do não atendimento da reclamação) e os pertinentes vistos da Secção, cumpre decidir.
II FUNDAMENTAÇÃO
4. Através do relatório que antecede tornaram-se claros os aspectos a focar na presente reclamação.
Trata-se, em primeiro lugar, de verificar da admissibilidade do recurso relativamente ao artigo 457º nº 2 do CJM. Trata-se, ainda, em segundo lugar, de aquilatar da suscitação, de forma relevante, da inconstitucionalidade daquilo que os reclamantes chamam 'aplicação' a eles das normas do CJM.
Vejamos, pois, ambas as questões.
5. O artigo 457º nº 2 do CJM, relativamente aos poderes de cognição do tribunal de recurso, que na jurisdição castrense é Supremo Tribunal Militar, estabelece que este se 'o processo enfermar de alguma nulidade essencial ocorrida na audiência de julgamento' (v. o disposto no artigo 318º alínea c) do CJM), declará-lo-á 'oficiosamente', determinando a reforma do julgamento 'no mesmo tribunal de instância'. É a este segmento da norma que o recurso não admitido se reporta, entendendo os reclamantes só ser constitucionalmente viável a repetição do julgamento por um tribunal de instância diverso do que efectuou o primitivo julgamento, numa espécie de reenvio semelhante ao estabelecido, na jurisdição comum, pelos artigos 431º e
436º do Código de Processo Penal (adiante CPP) nas situações de «revista ampliada» (note-se, porém, que a norma do CJM fala em 'nulidade essencial' e na jurisdição comum 'a inobservância de requisito cominado sob pena de nulidade que não deva considerar-se sanada' - para usar as palavras do nº 3 do artigo 410º do CPP - não dá lugar ao reenvio mas à repetição do julgamento pelo tribunal que proferiu a decisão anulada - v., por exemplo, Acórdão da Relação de Lisboa de
19/1/93 na «Colectânea de Jurisprudência», XVII, tomo 1, p. 153).
Seja como for, o que aqui está em causa tem que ver com a admissibilidade do recurso, preenchendo-se com o encadeamento decisório em que surge a invocação pelos reclamantes dessa alegada inconstitucionalidade.
Ora, a aplicação do falado trecho do artigo 457º nº 2 do CJM ocorre, como ratio decidendi, no primitivo Acórdão do Supremo Tribunal Militar
(o de 27/4/95) deixado transitar pelos aqui reclamantes e que, por isso, aí adquiriu força de caso julgado formal, impeditivo de que ulterior decisão nesse processo (concretamente do Tribunal de instância a que o processo baixou) apreciasse de forma diversa esse aspecto.
Não atacada, como o não foi, pelos reclamantes a decisão do Supremo Tribunal Militar que operativamente aplicou esse artigo 457º nº 2, é já tardia a alegação posterior de eventual desconformidade constitucional, não valendo o subterfúgio de dizer que posteriores decisões, ao pressuporem a sua competência, estão a aplicar o artigo implicitamente. Do que se trata - e explicitamente - é, tão só, de cumprir o mencionado caso julgado que, naquele processo, impede nova discussão dessa matéria, pelo que aquela norma não voltou a ser aplicada pelo Supremo Tribunal Militar no seu segundo acórdão.
O recurso é, pois, nesta parte inadmissível.
6. Quanto à segunda vertente do recurso não admitido, importa ter presente que aquilo que se pretende - usando uma linguagem pouco precisa que parece reportar o recurso à decisão e não a normas - é discutir a viabilidade constitucional do não uso na jurisdição militar do instituto da suspensão da pena, relativamente a penas (como o presídio militar) de natureza militar.
O problema residiria aqui, na não previsão da possibilidade de suspensão da pena no CJM e no entendimento, que se sabe ser pacífico e uniforme na jurisprudência do Supremo Tribunal Militar, de que não há lugar a recorrer, neste domínio, ao Código Penal comum.
A este respeito importa esclarecer um aspecto, para que a decisão deste tribunal seja tomada no seu exacto sentido. Refere-se, com efeito, tanto no Acórdão de não admissão como no despacho do Relator que o antecedeu, que a falta de norma prevendo a suspensão da pena só poderia configurar uma situação de inconstitucionalidade por omissão, como tal, insusceptível de apreciação fora das condições estabelecidas pelo artigo 283º do texto constitucional.
O princípio da igualdade, cuja violação aqui se imputa, não traduz um mero princípio programático de igualização legislativa, tratando-se antes de uma norma operante em concreto de proibição de discriminação, que, frequentemente, é violada não pela existência de uma norma (discriminatória) mas antes - digamo-lo assim - pela ausência de norma introdutora da igualdade.
Não obstante, nesta situação concreta, o problema acaba por não se colocar, sendo certo que a parte da decisão que recusa a suspensão o faz, efectivamente, por entender que tal opção se não justifica, por 'necessidades de prevenção geral e especial', e não por aplicar o entendimento de que tal opção não é possível no processo criminal militar.
Significa isto que, mesmo que este Tribunal aceitasse o recurso e, por hipótese, decidisse depois que essa exclusão do instituto da suspensão viola algum princípio constitucional, sempre subsistiria na decisão o entendimento de que o caso concreto exigia a efectividade da pena, aspecto este insindicável por este Tribunal. Isto pondo entre parêntesis a questão de saber se o recorrente, ao acusar o Código de Justiça Militar de inconstitucional por não prever o instituto da suspensão da pena, suscitou de modo processualmente adequado uma questão de inconstitucionalidade normativa.
Por esta razão, não tem o recurso, também nesta parte, cabimento.
III DECISÃO
7. Pelo exposto, decide-se indeferir a presente reclamação.
Custas pelos reclamantes, fixando-se em 10 (dez) unidades de conta a taxa de justiça. Lisboa, 11 de Março de 1997 José de Sousa e Brito Messias Bento Guilherme da Fonseca Bravo Serra Fernando Alves Correia Luís Nunes de Almeida