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Proc. nº 601/96
1ª Secção
Rel: Cons. Ribeiro Mendes
Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional:
I
1. A., detido em regime de prisão preventiva por decisão do Juiz do Tribunal da Comarca de Lousada proferida em 10 de Abril de 1996, com fundamento em existência de fortes indícios da prática de um crime de homicídio qualificado, interpôs recurso para o Tribunal da Relação do Porto do despacho proferido em 21 de Maio do mesmo ano que indeferiu a consulta dos autos de inquérito através do seu mandatário com invocação do disposto nos arts. 86º, nº
1, e 89º, nº 2, do Código de Processo Penal (C.P.P.). Na motivação do recurso, o recorrente sustentou que o princípio fundamental do Estado de Direito, consagrado no art. 2º da Constituição e concretizado através dos subprincípios da constitucionalidade, da independência dos Tribunais e do acesso à justiça, da protecção da confiança, da proporcionalidade ou da proibição do excesso, das garantias processuais e procedimentais e do justo procedimento, implicava, como decorrência necessária, a ideia de que 'qualquer arguido em processo criminal, uma vez ordenada ou determinada a sua prisão preventiva, para além de dever ser imediatamente informado e de forma compreensível das razões da sua detenção e dos seus direitos (art. 27º, nº 4 da C.R.P.), tem ainda direito de consulta e/ou examinar o processo, pessoalmente ou através de mandatário judicial, por forma a poder sindicar eficazmente a legalidade da decisão judicial que lhe impôs semelhante medida de coacção' (a fls. 4 e vº), sendo, assim, inconstitucionais as normas dos arts. 86º, nº 1, e 89º, nº 2 do C.P.P., 'na interpretação de que é vedada ao arguido em prisão preventiva a consulta dos autos, por forma a poder sindicar a legalidade do despacho que lhe aplicou tal medida de coacção'. Na mesma peça processual, considerou que tais normas violariam ainda o art. 5º, nºs. 2 e 4, da Convenção Europeia dos Direitos do Homem (C.E.D.H.), bem como o princípio da igualdade de armas entre a acusação e a defesa.
O juiz a quo sustentou o seu despacho.
Subiram os autos ao Tribunal de Relação do Porto, onde o representante do Ministério Público exarou parecer no sentido da improcedência do recurso.
Através de acórdão proferido em 10 de Julho de 1996, o Tribunal da Relação julgou improcedente o recurso. De harmonia com o que consta da parte final do acórdão:
' Não é inconstitucional (art. 20º, nº 2, da CRP) e é legal (art. 89º, nº 1, do CPP) o despacho que, em fase de inquérito e antes de concluído, indefere o requerimento do arguido no sentido de conceder ao seu mandatário a possibilidade de realizar o exame dos autos por forma a poder aquilatar da bondade e peso dos indícios que foram determinantes da aplicação da medida de coacção de prisão, sendo certo que a prisão fora verificada por juiz, após o respectivo interrogatório do arguido, tendo o arguido sido, no acto, pessoalmente, notificado da aplicação da medida e dos respectivos fundamentos legais.' (a fls.
49 e vº)
No dizer do mesmo acórdão, só uma 'leitura viciosa do «acesso», que o art. 20º nº1, [da Constituição] contém, bem como da «informação» e «consulta», insertos no nº 2, é que conduz à peregrina interpretação do Recorrente' (a fls.
48). A igualdade de armas resultaria 'do facto de a «consulta», sem reservas de uns em relação aos demais, ser concedida aos auxiliares, arguido, assistentes e partes civis e excluir todas as demais pessoas. Se assim não se estabelecesse, poderia entender-se que os que estão do lado da acusação gozariam de mais regalias ou então o arguido, porque e enquanto tal, de nada poderia beneficiar. Assim o normativo [do nº 2 do art. 89º do CPP] tem de ser interpretado como um
«mais». E não como norma que o citado art. 18º nºs. 2 e 3 não admite como possível, por «restritiva de direitos»' (a fls. 49). Ainda no dizer do acórdão, o segredo de justiça será 'uma das formas de se poder perseguir quem infringe a lei criminal. Essencial, porquanto, se assim não acontecer, o arguido tudo fará para evitar a recolha de provas, que sejam possíveis obter por via das já constantes dos autos como também poderá anular as já recolhidas' (ibidem).
Inconformado com a decisão, dela interpôs recurso de constitucionalidade o arguido A., limitando o recurso 'à parte do dito Acórdão que, mantendo o despacho proferido pelo Tribunal de 1ª instância, desatendeu a suscitada questão de inconstitucionalidade dos arts. 86º, nº 1, e 89º, nº 2, do CPPen., na interpretação de que é vedada ao arguido em prisão preventiva a consulta dos autos, por si ou através de mandatário, por forma a poder sindicar a legalidade do despacho que lhe aplicou tal medida de coacção' (a fls. 59).
O recurso foi admitido por despacho de fls. 64.
2. Subiram os autos ao Tribunal Constitucional.
Apresentaram alegações o recorrente e o Ministério Público.
O primeiro formulou as seguintes conclusões:
' 1ª) Do princípio fundamental do Estado de Direito, consagrado no art. 2º da C.R.P. e concretizado nos subprincípios da constitucionalidade, da independência dos Tribunais, e do acesso à justiça, da protecção da confiança, da proporcionalidade ou da proibição do excesso e do justo procedimento (arts. 3º, nº 3, 13º, 18º, nºs. 2 e 3, 20º, 32º e 205º, todos da C.R.P.), decorre claramente a ideia de que qualquer arguido em processo criminal, uma vez ordenada ou determinada a sua prisão preventiva, para além de dever ser imediatamente informado e de forma compreensível das razões da sua detenção e dos seus direitos (art. 27º, nº 4 da C.R.P.), tem ainda direito de consultar e/ou examinar o processo, pessoalmente ou através do seu defensor, por forma a poder sindicar eficazmente a legalidade da decisão judicial que lhe impôs semelhante medida de coacção;
2ª) Doutro modo, ficar-lhe-iam inexoravelmente coarctadas as garantias de acesso
à justiça e aos Tribunais para fazer valer os seus direitos, da mesma forma que sairiam incomportavelmente limitadas as garantias constitucionais do seu direito de defesa;
3ª) Aliás, o cit. art. 32º da C.R.P. consagra de forma expressa o princípio fundamental da plenitude das garantias de defesa, que tem como corolários lógicos o princípio da presunção de inocência (onde se integra a «proibição da inversão do ónus da prova em detrimento do arguido» e a «proibição de antecipação de verdadeiras penas a título de medidas cautelares») e o princípio da estrutura acusatória do processo penal (donde decorre a ideia de «igualdade de armas» entre a acusação e a defesa, devendo os actos instrutórios subordinar-se ao exercício do contraditório);
4ª) Os arts. 86º, nº 1 e 89º, nº 2 do CPPen., na interpretação que deles fizeram as instâncias, são manifestamente inconstitucionais, porquanto violam de forma frontal e directa o princípio fundamental do Estado de Direito, consagrado no art. 2º da C.R.P., e concretizado nos subprincípios enumerados supra na conclusão 1ª das presentes alegações, maxime o princípio da plenitude das garantias de defesa, expressamente estabelecido no art. 32º, nº 1 da C.R.P.;
5ª) Estribando-se nesses preceitos e interpretando-os da forma constante do acórdão impugnado, o Tribunal a quo violou, entre outros, o cit. art. 2º da C.R.P., bem como os arts. 3º, nº 3, 13º, 18º, nºs. 2 e 3, 20º, 32º e 205º, todos da nossa Lei Fundamental;
6ª) Aliás, também do art. 5º, nºs. 2 e 4 da Convenção Europeia dos Direitos do Homem resulta de forma clara o direito do ora recorrente a ter acesso ao processo, a fim de conhecer e poder rebater os motivos que fundamentaram o decretamento da sua prisão preventiva (cfr. Sentença do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem de 30-03-89, proferida no caso Lamy contra o Reino da Bélgica, pub. in «Sub Judice», 1994, pp. 201 e ss.);
7ª) Uma vez que a norma contida no cit. art. 5º, nºs. 2 e 4 da Convenção faz parte integrante do nosso sistema jurídico e, em termos de hierarquia de fontes, está acima dos aludidos preceitos do CPPen., o acórdão recorrido, na interpretação que fez destes últimos, violou também o princípio fundamental da primazia do direito internacional sobre o direito interno, expressamente consagrado no art. 8º da nossa Lei Fundamental.' (a fls. 73 a 74 vº)
Nas contra-alegações do Ministério Público formularam-se as seguintes conclusões:
' 1. Em razão dos interesses que o segredo de justiça visa acautelar, ao arguido em situação de prisão preventiva está vedado o acesso a auto para consulta - ressalvadas as excepções previstas no artigo 89º, nº 2, do Código de Processo Penal - enquanto o Ministério Público não tiver deduzido acusação.
2. Assim interpretadas, as normas dos artigos 86º, nº 1 e 89º, nº 2, do Código de Processo Penal, não violam os princípios e normas constitucionais invocados pelo recorrente, assim como não violam o artigo 5º, nºs. 2 e 4 da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, que nada acrescenta ao que, sobre a matéria, a nossa Constituição prescreve.' (a fls. 86 dos autos)
3. Foram corridos os vistos legais.
Cumpre, pois, conhecer das questões de constitucionalidade suscitadas, por não se detectarem razões que obstem ao conhecimento do pedido.
II
4. As questões de constitucionalidade suscitadas pelo recorrente dizem respeito a duas normas do Código de Processo Penal (CPP) de
1987, na interpretação delas acolhida pelo Tribunal da Relação do Porto no acórdão recorrido.
Dispõe o art. 86º, nº 1, CPP:
' O processo penal é, sob pena de nulidade, público a partir da decisão instrutória ou, se a instrução não tiver lugar, do momento em que já não pode ser requerida, vigorando até qualquer desses momentos o segredo de justiça.'
Por seu turno, o art. 89º CPP estatui:
' Se, porém, o Ministério Público não houver ainda deduzido acusação, o arguido, o assistente e as partes civis só podem ter acesso a auto na parte respeitante a declarações prestadas e a requerimentos e memoriais por eles apresentados, bem como a diligências de prova a que pudessem assistir ou a questões incidentais em que devessem intervir. Para o efeito, as partes referidas do auto ficam avulsas na secretaria, por fotocópia, pelo prazo de três dias, sem prejuízo do andamento do processo. O dever de guardar segredo de justiça persiste para todos.'
Deve notar-se que o nº 1 do art. 89º CPP consagra como regra o direito de acesso aos autos, para consulta, na secretaria ou noutro lugar onde estiver o processo, ao Ministério Público, ao arguido, ao assistente e às partes civis, tendo todos os titulares desse direito a faculdade de 'obter cópias, extractos e certidões autorizadas por despacho, ou independentemente dele para efeitos de prepararem a acusação e a defesa dentro dos prazos para tal estipulados pela lei'. A relação entre os nºs. 1 e 2 deste artigo 89º é, pois, a de regra geral contraposta a uma excepção.
Da concatenação dos dois preceitos cuja constitucionalidade é posta em causa pelo recorrente resulta, pois, que a regra da publicidade do processo penal só vigora plenamente a partir da decisão instrutória ou, se a instrução não tiver lugar, a partir do momento em que deixou de poder ser requerida. Pelo contrário, a regra de segredo de justiça, de que decorre a impossibilidade de acesso e consulta dos autos, vigora plenamente durante a fase de inquérito, antes de ser deduzida a acusação, só em contados casos podendo haver acesso a parte dos autos e, mesmo assim, persistindo para todos os sujeitos processuais o dever de guardar segredo de justiça. A partir da dedução da acusação - conforme resulta do nº 1 do art. 89º CPP - os sujeitos processuais passam a ter acesso aos autos (cfr. ainda o nº 4 do art. 86º CPP; na jurisprudência do Tribunal Constitucional consultem-se os acórdãos nºs. 695/95, 117/96 e 247/96, publicados no Diário da República, II Série, nº 97, de 24 de Abril, nº 105, de 6 de Maio, e nº 107, de 8 de Maio, todos de 1996, respectivamente e, sobre o art. 70º, § 2º, do precedente CPP, o acórdão nº 124/92, in Diário da República, II série, nº
192, de 21 de Agosto de 1992).
5. No caso sub judicio, o ora recorrente foi ouvido como testemunha na Directoria do Porto da Polícia Judiciária em 10 de Abril de 1996, em inquérito instaurado na sequência do homicídio de uma artista de variedades. No decurso do depoimento, e por terem 'surgido novos elementos', o ora recorrente passou a ser ouvido como arguido, tendo declarado que só pretendia prestar declarações em tribunal. Foi ordenada a sua detenção, sendo o mesmo presente ao Ministério Público da comarca de Lousada, dado haver fortes suspeitas de que fosse autor desse crime de homicídio qualificado. No mesmo dia foi interrogado pela Juíza do Tribunal de Lousada, na presença de advogado, sendo validada a detenção e decretada a prisão preventiva, visto que, 'atenta a natureza, gravidade e circunstâncias em que tal crime [de homicídio] ocorreu,
[se verificava] existir, no caso em apreço, perigo de fuga, perigo para aquisição, conservação e veracidade da prova, bem como perigo de perturbação da ordem e da tranquilidade pública' (certidão a fls. 38).
O arguido, ora recorrente, não impugnou por recurso este despacho, mas em 20 de Maio do mesmo ano veio, através do seu advogado constituído, requerer a consulta dos autos de inquérito para aquilatar da justeza da medida de coacção decretada e para poder impugnar a legalidade da decisão de manutenção dessa medida coactiva, afirmando desconhecer, por completo, os indícios existentes nos autos e que determinaram a sua submissão a prisão preventiva, afirmando que se encontrava em tal situação há mais de um mês, sem que, até então, lhe houvesse
'sido dado conhecimento do material recolhido em inquérito, susceptível de fundamentar a alegada existência de fortes indícios de prática de crime que lhe
é imputado', pelo que estava numa situação de impossibilidade, em termos práticos, 'de impugnar contenciosamente o despacho que lhe aplicou semelhante medida de coacção', do mesmo modo que não podia requerer a revogação de tal medida.
Como se considerou na decisão da Relação do Porto - acórdão agora recorrido - embora o arguido não tenha logo impugnado a decisão que decretou essa medida de coacção, poderia em qualquer momento provocar uma decisão sobre a matéria, visto que a primeira decisão 'não transita verdadeiramente em julgado, na medida em que pode ser alterada a medida e, por outro lado, pode daqui ocorrer uma das circunstâncias previstas pelo art. 212º e, em especial, do seu nº 1-a) - «aplicação fora das condições previstas na lei»' (a fls. 47 vº). Assim sendo, o recurso de constitucionalidade mantém interesse para ele, ainda que se tenha ultrapassado a fase processual em causa, bastando igualmente referir o instituto da indemnização por privação da liberdade ilegal ou injustificada
(art. 225º CPP) para fundar esse interesse no conhecimento do objecto do recurso.
6. Devem, assim, afrontar-se as questões de constitucionalidade postas ao Tribunal Constitucional. Terão os arts. 86º, nº 1, e 89º, nº 2, CPP, na interpretação acolhida no acórdão recorrido, violado normas e princípios constitucionais, nomeadamente o disposto no art. 32º, nº 1, da Constituição?
Liminarmente, terá de se afastar a invocada inconstitucionalidade por violação do art. 8º da Constituição, decorrente de as normas aplicadas pelo acórdão recorrido, na interpretação aí acolhida, terem alegadamente violado os nºs. 2 e 4 do art. 5º e o art. 6º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem
(CEDH, convenção aprovada para ratificação pela Lei nº 65/78, de 13 de Outubro).
Importa, para afastar tal questão, referir a posição que o Tribunal Constitucional tem repetidamente assumido na matéria quanto ao art. 6º CEDH, remetendo-se para o que se escreveu no recente acórdão nº 223/95 (publicado no Diário da República, II Série, nº 146, de 27 de Junho de 1995):
'... à semelhança do que este Tribunal já teve ocasião de afirmar a propósito de outros princípios jurídico - internacionais (cfr. Acórdãos nºs. 124/90, 186/92 e
322/93, publicados no Diário da República, 2ª Série, de 8 de Fevereiro de 1991, de 18 de Setembro de 1992 e de 29 de Outubro de 1993), também agora se dirá que, na Convenção Europeia dos Direitos do Homem (recte, no seu artigo 6º), nada se diz que se não contenha já na Constituição da República Portuguesa (maxime, no seu artigo 20º). Por isso, o direito a um julgamento equitativo e o princípio da igualdade de armas, que se extraem daquele artigo 6º, serão aqui tomados em consideração apenas enquanto elementos coadjuvantes de clarificação do sentido e alcance da garantia da protecção jurídica e da via judiciária, consagrada no artigo 20º da Constituição, e não como «padrão autónomo» de um juízo de constitucionalidade.
O Tribunal, como já antes sucedera (cfr. Acórdão nº 147/92, publicado no Diário da República, 2ª Série, de 24 de Julho de 1992) continua a não precisar de decidir aqui se, em matéria de direitos fundamentais, o controlo de constitucionalidade abrange (ou não) a apreciação de conformidade das normas internas com princípios jurídico - internacionais recebidos in foro domestico - ideia que vai implícita no discurso do recorrente, quando, além dos artigos 20º e 208º da Constituição, considera violado o artigo 6º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem.'
Em sentido algo diverso, mas antes do aditamento da alínea i) ao nº 1 do art. 70º da Lei do Tribunal Constitucional pela Lei nº 85/89, de 7 de Setembro, veja-se o acórdão da 1ª Secção do Tribunal nº 219/89, in Acórdãos do Tribunal Constitucional, 13º vol., tomo II, págs. 717 e segs., maxime 731 e segs.
A par do art. 6º CEDH - que reconhece o direito de qualquer pessoa a que a sua causa 'seja examinada, equitativa e publicamente, num prazo razoável, por um tribunal independente e imparcial, estabelecido pela lei, a qual decidirá
[...] sobre o fundamento de qualquer acusação em matéria penal dirigida contra ela [...]' - dispõem os nºs. 2 e 4 do art. 5º da mesma Convenção:
' 2- Qualquer pessoa presa deve ser informada, no mais breve prazo e em língua que compreenda, das razões da sua prisão e de qualquer acusação formulada contra ela.
3- [...]
4- Qualquer pessoa privada da sua liberdade por prisão ou detenção tem direito a recorrer a um tribunal, a fim de que este se pronuncie, em certo prazo de tempo, sobre a legalidade da sua detenção e ordene a sua libertação, se a detenção for ilegal.'
Ora, relativamente às transcritas normas da CEDH, fácil é ver que as mesmas nada dizem que se não contenha já em artigos da Constituição Portuguesa na medida em que os princípios do contraditório e do acesso aos tribunais estão acolhidos nos seus arts. 20º, nº 1, e 32º, nº 1, e o nº 4 do art. 27º da mesma Constituição reproduz o nº 2 do art. 5º CEDH.
Concentrar-se-á a análise das questões postas ao Tribunal Constitucional face aos parâmetros constantes dos invocados artigos da Constituição, o que não impedirá que este Tribunal se socorra da jurisprudência de órgãos internacionais, nomeadamente da Comissão Europeia dos Direitos do Homem e do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, para densificar os princípios constitucionais de acesso aos tribunais, de independência dos tribunais, de igualdade de armas, de asseguramento de todas as garantias de defesa pelo processo penal e da estrutura acusatória do mesmo processo penal, a que o recorrente faz apelo, isto na medida do que for necessário para a decisão do recurso.
7. Recorda-se que a questão essencial que é posta à consideração do Tribunal Constitucional é a de saber se violam a Constituição as normas dos arts. 86º, nº 1, e 89º, nº 2, CPP, quando interpretadas no sentido de que, na fase de inquérito, o arguido ou o seu defensor não tem o direito de acesso e consulta dos autos para poder impugnar, através de recurso, a decisão que fixou ou manteve a medida de coacção prisão preventiva.
8. Para resolver esta questão, importa fazer um breve excurso pelo regime do segredo de justiça na fase de inquérito.
No domínio da legislação processual penal anterior ao Código vigente, quer em épocas em que predominou um processo de tipo predominantemente inquisitório (caso da versão originária do Código de Processo Penal de 1929), quer em épocas em que se estabeleceu um sistema misto, com predomínio da componente acusatória (Decreto-Lei nº 35007, de 13 de Outubro de 1945), continuou a acolher-se, em consonância com a tradição nacional e continental europeia, o princípio do segredo de justiça durante as fases iniciais do processo penal. De harmonia com o corpo do art. 70º do Código de Processo Penal,
'o processo penal é secreto até ser notificado o despacho de pronúncia ou equivalente ou até haver despacho definitivo que mande arquivar o processo
[...]'. O acesso aos autos pelo arguido no decurso da instrução preparatória dependia de um juízo individualizado sobre a inexistência de inconveniente para a descoberta da verdade. Após a notificação da acusação ou do requerimento de abertura da instrução contraditório pelo Ministério Público, o arguido passava a ter pleno acesso aos autos (§§ 1º e 2º do mesmo art. 70º, na redacção do Decreto-Lei nº 185/72, de 31 de Maio). Igualmente o § único do art. 13º do Decreto-Lei nº 35007 mantinha o carácter secreto da fase de instrução preparatória 'do qual resultará seguramente a negação ao arguido, nesta fase, do direito de presença às diligências de prova efectuadas' (Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, 1º vol., Coimbra, 1974, pág. 432). Segundo este autor, a solução do carácter secreto da instrução preparatória compreende-se e aceita-se, sendo a mesma comum à generalidade das legislações, 'se toda a prova recolhida na instrução preparatória tiver de ser autonomamente apresentada e repetida em julgamento, onde se confere aos arguidos pleno direito de presença, de contradição e de audiência'. E, mais à frente, Figueiredo Dias, aludindo à possibilidade de a prova recolhida na instrução preparatória ficar a constar dos autos e ser valorada em julgamento 'independentemente da sua nova produção - v. g. valorando-se certas diligências probatórias feitas na instrução por um só polícia, que não comparece no julgamento para aí ser interrogado como testemunha! -', afirmava que tal limitação do direito de presença se tornava
'insuportável e de legitimidade constitucional mais que duvidosa à luz do art.
8º, nº 10 da Const. P. [de 1933]' (ibidem).
A superveniência da Constituição de 1976 e a instituição de um sistema de fiscalização abstracta e concreta de constitucionalidade implicaram a modificação de certas soluções, legais ou jurisprudenciais, mais restritivas dos direitos processuais dos arguidos, tornando premente a alteração da lei processual penal, no seu conjunto.
O novo Código de Processo Penal estrutura, no processo comum, dois momentos preliminares, a notícia do crime e o inquérito, compreendendo este
último 'o conjunto de diligências que visam investigar a existência de um crime, determinar os seus agentes e a responsabilidade deles e descobrir e recolher as provas em ordem à decisão sobre a acusação' (art. 262º, nº 1). A direcção do inquérito cabe ao Ministério Público, assistido pelos órgãos de polícia criminal
(art. 263º, nº 1, CPP). Mas na fase de inquérito há certos actos que só podem ser praticados pelo juiz de instrução (art. 268º do mesmo diploma). Ao inquérito pode suceder a instrução, um terceiro momento de natureza facultativa, a qual
'visa a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento' (art. 286º, nº 1). Relativamente ao segredo de justiça, na sua vertente de segredo interno, que veda ao arguido a consulta dos autos na fase de inquérito, já atrás se referiu o regime dos arts. 86º e 89º do novo Código de Processo Penal.
Tratando especificamente das grandes opções estruturantes do novo Código de Processo Penal, refere o preâmbulo deste diploma (aprovado pelo Decreto-Lei nº 78/87, de 17 de Fevereiro) o seguinte:
'... o Código optou decididamente por converter o inquérito realizado sob a titularidade e direcção do Ministério Público na fase geral e normal de preparar a decisão de acusação ou de não acusação. Por seu turno, a instrução, de carácter contraditório e dotada de uma fase de debate oral - o que implicou o abandono da distinção entre instrução preparatória e contraditória -, apenas terá lugar quando for requerida pelo arguido que pretenda invalidar a decisão de acusação ou pelo assistente que deseja contrariar a decisão de não acusação. Tal opção filia-se na convicção de que só assim será possível ultrapassar um dos maiores e mais graves estrangulamentos da nossa actual praxis processual penal. E esteia-se, por outro lado, no facto de que todos os actos processuais que contendam directamente com os direitos fundamentais do arguido só devem poder ter lugar se autorizados pelo juiz de instrução e, nalguns casos, só por este podem ser realizados.' (III,7)
Relativamente ao estatuto do arguido, o mesmo preâmbulo põe em relevo que na redefinição desse estatuto:
'... começa logo por sobressair o cuidado e uma certa solenidade com que se rodeia a sua constituição formal. Por outro lado, não será difícil verificar que o regime do Código, globalmente considerado, redunda num inquestionável aumento e consolidação dos direitos processuais do arguido. Também aqui, de resto, o respeito intransigente pelo princípio acusatório leva o Código a adoptar soluções que se aproximam duma efectiva «igualdade de armas», bem como à preclusão de todas as medidas que contendam com a dignidade pessoal do arguido.'
(III,10)
Em todo o caso, e não obstante os inegáveis progressos globais do novo Código de Processo Penal, em matéria de segredo de justiça, na vertente do segredo interno que veda a consulta dos autos pelo arguido, a solução do novo diploma é muito semelhante à solução constante da lei anterior. De facto, na fase de instrução preparatória - correspondente grosso modo ao actual inquérito
(cfr. arts. 12º e segs. do Decreto-Lei nº 35007) -, apesar do carácter secreto desta, admitia-se o acesso ao arguido ou do seu advogado ao processo, quando não houvesse inconveniente para a descoberta da verdade (§ 2º do art. 70º - remete-se para o que se refere no Parecer do Conselho Consultivo da Procuradoria-Geral da República nº 121/80, in Boletim do Ministério da Justiça, nº 309, págs. 125 e segs.). O novo Código de Processo Penal admite igualmente uma avaliação concreta da possibilidade de acesso aos autos quando se mantenha o segredo de Justiça, prevendo que 'a autoridade judiciária que preside à fase processual respectiva [possa] dar ou ordenar ou permitir que seja dado conhecimento a determinadas pessoas do conteúdo do acto ou de documento em segredo de justiça, se tal se afigurar conveniente ao esclarecimento da verdade'
(art. 86º, nº 4). Do cotejo de ambas as soluções legais pode facilmente concluir-se que a formulação da nova lei é mais restritiva, no que toca ao acesso do arguido aos autos, pois não se basta com um juízo de não inconveniência para a descoberta da verdade, vinculando a autoridade judiciária a uma afirmação da conveniência para o esclarecimento da verdade.
Compreende-se, por isso, que Germano Marques da Silva, depois de reconhecer os esforços da doutrina - com sucesso muito limitado - para procurar, no que ao arguido respeita, a compressão do segredo no plano interno 'em ordem a assegurar-lhe mais possibilidades de defesa' e fazer a verificação de que a impossibilidade de acesso aos autos e o consequente desconhecimento dos elementos de prova recolhidos no decurso do inquérito 'constituem grave entrave
à defesa, mesmo quando esteja em causa a liberdade do arguido', afirme que o novo Código, na 'busca do equilíbrio entre os interesses da eficácia da investigação e a defesa da sociedade contra o crime, por uma parte, e a defesa do arguido por outra', tenha optado 'decididamente por aquele, na fase de inquérito' [Do Processo Penal Preliminar, Lisboa, 1990, pág. 460; do mesmo autor, veja-se Curso de Processo Penal, II, Lisboa, 1993, págs. 22 e 24, obra em que se sustenta que, 'pelo menos quando esteja em causa a aplicação de medidas de coacção, se deve dar ao arguido a possibilidade de ilidir as provas que, na perspectiva do MP, justificam a aplicação de uma medida, o que necessariamente terá de passar pelo conhecimento por parte da defesa dessas provas (...). As restrições a este princípio devem ser a excepção e não a regra (...).'].
9. A solução portuguesa, de consagração de um segredo de justiça oponível ao arguido na fase de inquérito, não constitui qualquer originalidade. Muitos outros Direitos do continente europeu impõem igualmente restrições à consulta pelo arguido ou pelo seu defensor, em maior ou menor grau, durante a fase processual anterior à dedução da acusação pelo Ministério Público
(cfr. os dados de direito comparado, referentes aos direitos processuais penais alemão, francês, belga e italiano na obra colectiva publicada sob a direcção de Mireille Delmas-Marty, Procédures pénales d'Europe, Paris, 1995, págs. 107-108;
208; 265-266 e 332-333).
Todavia, a opção do legislador português é das mais restritivas, a ponto de Germano Marques da Silva notar que, se houver recurso do despacho que impõe ao arguido a prisão preventiva ou outra medida de coacção, o mesmo se reveste de carácter 'eminentemente formal', na medida em que o arguido 'não pode impugnar o fundamento da decisão no que respeita à verificação dos «fortes indícios de prática de crime doloso» [art. 202º, nº 1, al. a)] já que o juiz se limita a referir que se verificam, nem à própria qualificação do crime imputado, para o que era necessário ter acesso ao processo' (Curso cit., II, pág. 23, nota
2).
Igualmente restritiva era a solução da lei processual penal belga vigente na década de oitenta, a qual vedava também ao arguido ou ao seu defensor o acesso aos autos antes da dedução da acusação, ainda quando o arguido pretendesse discutir a legalidade da prisão preventiva.
10. O Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, no caso Lamy/Reino da Bélgica veio julgar, através de acórdão de 30 de Março de 1989, tirado por unanimidade, que não era respeitada a igualdade de armas se o arguido ou o seu advogado, que pretendesse impugnar a decisão que lhe impusera a prisão preventiva, não tivesse acesso às peças processuais onde estavam os elementos que serviram para fundamentar tal decisão, ao passo que o Ministério Público delas tinha conhecimento e delas se servia para defender a manutenção da prisão preventiva. Ao não ser respeitada a igualdade de armas entre a acusação e a defesa, daí resultava, segundo a mesma decisão, que o processo penal não era verdadeiramente contraditório, pelo que era violado o art. 5º, nº 4, daquela Convenção (acórdão integralmente publicado em Sub Judice - Justiça e Sociedade,
'Novos Estilos', nº 11, Novembro de 1994, págs. 201 a 208, e também parcialmente na Revue Universelle des Droits de l' Homme, vol. 1, 1989, págs. 124 e segs.).
No caso Lamy, o arguido era um cidadão belga, gerente de uma sociedade de responsabilidade limitada que se apresentara à falência, vindo aquele a ser responsabilizado pela prática do crime de insolvência dolosa. Preso preventivamente, impugnou o arguido por recurso a decisão de aplicação dessa medida de coacção, sem ter tido acesso a todas as peças do processo. No recurso de cassação suscitou a questão da falta de acesso ao processo, ao ter-se apercebido de que o tribunal de segunda instância de Liège se baseara em relatórios da polícia judiciária cujo conteúdo era desconhecido do recorrente e do seu advogado para manter a decisão que decretara a prisão preventiva. Face à improcedência do seu recurso no Tribunal de Cassação belga, o arguido recorreu
às instâncias europeias. O Tribunal Europeu dos Direitos do Homem aceitou a sua tese, considerando ter sido violado o nº 4 do art. 5º da CEDH. Escreveu-se nessa decisão:
' O Tribunal, tal como a Comissão, verificou que, devido à interpretação que a jurisprudência deu à lei, o advogado do requerente não pôde, durante os primeiros trinta dias da prisão preventiva, conhecer nenhum dado dos autos e especialmente dos relatórios elaborados pelo juiz de instrução e pela polícia judiciária de Verniers. Sucedeu assim concretamente no momento da primeira comparência perante a Secção que tinha de se pronunciar sobre a confirmação do mandado de prisão [...]. O advogado não tinha a possibilidade de se opor eficazmente às declarações ou argumentos que o ministério público deduzira dos referidos documentos.
Era fundamental para o requerente ter esses documentos à sua disposição nesse momento crucial do processo, em que o tribunal tinha de decidir se prolongava ou dava por finda a prisão. Em especial, esta possibilidade teria permitido ao advogado do senhor Lamy expor os seus pontos de vista sobre as declarações e a atitude dos demais acusados [...]. Na opinião do Tribunal, o exame dos documentos referidos era, portanto, indispensável para discutir eficazmente a legalidade do mandado de prisão.
Há uma relação demasiado estreita entre a necessidade da prisão preventiva e a posterior apreciação da culpabilidade para que se possa recusar a consulta dos autos no primeiro caso quando a lei a exige no segundo.
Ao passo que o procurador da Coroa conhecia os autos na sua totalidade, a tramitação processual não dava ao requerente a possibilidade de impugnar adequadamente os motivos invocados para justificar a prisão preventiva. Uma vez que não garantia a igualdade de armas, o processo não era realmente contraditório (veja-se, mutatis mutandis, a anteriormente citada sentença Sánchez-Reisse, série A, nº 107, pág. 19, ponto 51).
Por conseguinte, foi violado o artigo 5º-4.' (nº 29)
11. Na sequência deste acórdão, veio a ser alterada a lei belga sobre a prisão preventiva (através da Lei de 20 de Julho de 1990). Como se refere na parte de síntese comparativa da citada obra de Mireille Delmas-Marty,
'é preciso assinalar nomeadamente a reviravolta recente do direito belga na sequência de uma condenação aplicada à Bélgica pelo Tribunal Europeu [caso Lamy/Bélgica]: hoje não apenas o advogado, mas também o próprio arguido, têm acesso ao processo instrutório. Em França e na Alemanha os advogados gozam de um amplo reconhecimento do direito de acesso (salvo durante a fase policial)' (ob. cit., págs. 475-476).
Em termos comparativos, na mesma obra chama-se a atenção para o facto de o direito de conhecimento através do acesso e consulta do processo ser hoje considerado menos 'como um direito «pessoal» do acusado, mesmo nos casos em que pode defender-se sem advogado, do que como um direito reconhecido ao defensor no desempenho do seu papel de assistência «técnico-legal»' (ob. cit., pág. 475). A jurisprudência francesa ilustra este entendimento na medida em que considera que constitui falta disciplinar a entrega ao arguido pelo seu defensor de cópias de documentos constantes do processo (vejam-se as duas decisões da Cassação francesa publicadas na Revue Trimestrielle des Droits de L'Homme, ano 7º - 1996, nº 25, págs. 111 e segs., com nota de Michel Puachavy, em que se alude à posição dos órgãos de Estrasburgo, nomeadamente a adoptada nos casos Kamasinski e Lamy).
12. Tendo presentes os dados doutrinais e de direito comparado carreados para os autos, importa decidir a questão de constitucionalidade suscitada pelo recorrente.
Ora, tem-se por seguro que o nº 2 do art. 89º CPP, conjugado com o nº 1 do art. 86º do mesmo diploma, viola a Constituição quando impede, sempre e em quaisquer circunstâncias, fora das situações excepcionais previstas na primeira daquelas normas, o acesso do arguido ao auto na fase de inquérito, nomeadamente quando este pretenda impugnar por recurso o eventual despacho de manutenção da prisão preventiva.
A norma do nº 2 do art. 89º CPP procede a uma avaliação abstracta e rígida dos riscos de acesso do arguido ao auto, impedindo que o juiz possa valorar in concreto os interesses conflituantes em presença, o do arguido em conhecer os indícios que serviram de fundamento à decisão de manutenção de uma medida de coacção tão gravosa para a sua liberdade, como é a prisão preventiva, e os do Estado em assegurar as finalidades do processo penal, nomeadamente os interesses relativos à garantia de que a investigação do crime se fará em condições de eficácia, a preocupação de que o arguido não procurará subtrair-se
à acção da Justiça ou cometer novos crimes, ou a pretensão de assegurar a subsistência dos meios probatórios já reunidos, evitando a sua eventual destruição.
Deve notar-se que, durante a fase de inquérito, em especial à medida que este vai decorrendo, se vão inevitavelmente consolidando ou enfraquecendo os indícios que motivaram a aplicação de uma medida de coacção ao arguido, por força das actividades de investigação que se vão desenrolando. É por isso que a lei processual penal permite ao juiz de instrução que revogue as medidas de coacção por ele decretadas (art. 212º CPP), e impõe mesmo, quando tinha sido decretada a prisão preventiva, o reexame oficioso da subsistência dos pressupostos da medida pelo juiz de instrução de três em três meses (art. 213º CPP).
Neste quadro legal, não é possível sustentar que os princípios do contraditório e da igualdade de armas imponham ao legislador que consagre, em todos os casos, um acesso irrestrito e ilimitado aos autos na fase de inquérito pelo arguido, seja para recorrer do despacho que impôs a prisão preventiva, seja para requerer a sua revogação ou substituição e, porventura, recorrer do despacho que sobre tal requerimento vier a ser proferido (art. 212º CPP). De facto, as circunstâncias podem variar de caso para caso, no que toca ao tipo de crime investigado e ao próprio grau de desenvolvimento das actividades de recolha da prova.
Mas o princípio do asseguramento de todas as garantias de defesa ao arguido (art. 32º, nº 1, da Constituição) não se compatibiliza com a solução do art. 89º, nº 1, CPP na medida em que este impede que o juiz faça naqueles casos uma apreciação em concreto da possibilidade de acesso do mandatário do arguido aos autos. Na verdade, importa fazer notar que a possibilidade de o arguido, sujeito a prisão preventiva, conseguir impugnar, através de advogado, a legalidade da aplicação da medida de coacção se poderá tornar eminentemente formal, se não puder ter acesso aos autos para saber quais são os 'fortes indícios da pratica do crime', ou quaisquer outros elementos relevantes para a determinação ou manutenção da prisão preventiva.
É, também, seguro que o Ministério Público poderá motivar não só a resposta ao recurso como também responder aos requerimentos destinados a fazer revogar a prisão preventiva, dispondo de livre e incondicionado acesso aos autos.
Não obstante caber ao Ministério Público a direcção do inquérito e não se poder falar, em absoluto, numa igualdade de armas entre o Ministério Público e o arguido, - pondo-se, assim, ex natura rerum a questão da igualdade de armas em processo penal em moldes diversos do que em processo civil (cfr., por exemplo, além do citado acórdão nº 497/96, os acórdãos nºs. 132/92, 611/94 e
223/95, publicados no Diário da República, II Série, nº 169, de 24 de Julho de
1992, nºs. 4, de 5 de Janeiro de 1995, e nº 146, de 27 de Junho de 1995, respectivamente) - sempre que o arguido reaja contra a prisão preventiva, o Ministério Público pode actuar processualmente como opositor da tese sustentada por aquele. Nesse caso, vedando a lei, sempre e em qualquer caso, o acesso aos autos haverá violação dos princípios do contraditório e do acesso aos tribunais, não se garantindo ao réu todas as garantias de defesa previstas e asseguradas pelo art. 32º, nº 1, da Constituição. Isto só não deverá ser assim se houver razões ponderosas que impeçam, por força de uma avaliação concreta das circunstâncias do caso, a autorização de acesso aos autos, dados os riscos ligados a tal acesso, nomeadamente quanto a actividades probatórias ainda não concluídas respeitantes aos factos ilícitos investigados, não se traduzindo, em tal caso, a recusa de acesso - em despacho fundamentado - em restrição excessiva, dados os diferentes interesses e valores em jogo.
Quando a entidade recorrida sustenta, nas contra-alegações apresentadas no Tribunal Constitucional, que o objectivo confessado do arguido recorrente é
'o de poder sindicar a legalidade do despacho que lhe aplicou a medida de prisão preventiva, e não propriamente contrariar a imputação que lhe é feita - e na possibilidade de o fazer é que se concretiza o direito que invoca' (a fls. 85 dos autos), há-de convir-se que esse argumento não é decisivo para a resolução do recurso sub judicio: será essencialmente na fase de instrução, se vier a ocorrer, que o arguido poderá diligenciar no sentido de infirmar a acusação e de evitar ser pronunciado; na fase do inquérito, não havendo ainda acusação, a defesa do arguido há-de ter também por objecto a medida de coacção que lhe foi imposta, se entender que a mesma lhe foi ilegalmente aplicada. Não podem, por isso, cindir-se os dois momentos processuais e dizer-se que as garantias de defesa só têm de ser asseguradas na fase de instrução.
A solução legal que resulta da interpretação conjugada do nº 1 do art.
86º e do nº 2 do art. 89º CPP é violadora do art. 32º, nº 1, da Constituição, impedindo, de forma desproporcionada, que o juiz autorize o acesso aos autos, quando de tal acesso não decorram riscos para as actividades de recolha da prova, ou inconvenientes sérios para a conclusão do inquérito, nomeadamente quando, como no caso dos autos, já passou um certo período de tempo após o momento de detenção do arguido.
Foi seguramente com base em idêntico juízo que, no caso Lamy, o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem considerou violador do princípio da igualdade de armas, na fase de recurso da decisão de manutenção da prisão preventiva, a privação do arguido e do seu advogado de acesso a determinados relatórios policiais referentes a actividades probatórias já concluídas, não tendo detectado razões ponderosas que obstassem a tal acesso.
13. Pelas razões expostas, procede, assim, o recurso interposto pelo arguido, ainda que por fundamentos parcialmente diversos.
III
14. Nestes termos e pelos motivos indicados, decide o Tribunal Constitucional conceder provimento ao recurso, julgando inconstitucionais as normas conjugadas dos arts. 86º, nº 1, e 89º, nº 2, do Código de Processo Penal, na interpretação delas feita pela decisão recorrida, segundo a qual o juiz de instrução não pode autorizar, em caso algum e fora das situações tipificadas nesta última norma, o advogado do arguido a consultar o processo na fase de inquérito para poder impugnar a medida de coacção de prisão preventiva que foi aplicada ao arguido, por violação das disposições conjugadas dos arts. 20º, nº1, e 32º, nºs. 1 e 5, da Constituição, devendo o acórdão recorrido ser reformulado em consonância com o julgamento sobre a matéria de constitucionalidade.
Lisboa, 19 de Fevereiro de 1997 Armindo Ribeiro Mendes Maria Fernanda Palma Antero Alves Monteiro Diniz Maria da Assunção Esteves Alberto Tavares da Costa (vencido com Declaração de Voto junta)
1.- Vencido. Entendo que, ao disporem sobre o acesso do arguido, ou seu defensor, aos autos, na fase do inquérito, as normas sindicadas
- e a interpretação que delas fez o acórdão recorrido - não contrariam as garantias de defesa constitucionalmente reconhecidas nos nºs. 1 e 5 do artigo
32º da Constituição, conjugadamente com o nº 1 do artigo 20º do mesmo texto.
A inviabilidade de um acesso incondicionado aos autos, nesta fase, deve compreender-se à luz da ponderação dos interesses nela prosseguidos: o secretismo interno - que é relativo - não descura preocupações garantísticas, antes procura a sua conciliação com a necessidade de proteger o programa da investigação e a recolha das provas, por essa ser também uma exigência decorrente da defesa do Estado de direito democrático.
Para se atingir esse desiderato não se exige, apenas, a intervenção do juiz de instrução nos autos objectivamente jurisdicionais que ocorram nessa fase e tenham a ver com direitos, liberdades e garantias. Na verdade, não só o condicionamento ao livre acesso cessa logo que terminada a fase pré-acusatória, como são necessariamente fundamentados, revisíveis e recorríveis os despachos que apliquem a medida de coacção prisão preventiva ou que a reexaminem, em função dos pressupostos. Por outro lado, trata-se de uma fase processual orientada predominantemente pelo inquisitório, em que a ausência de reciprocidade dialéctica enfraquece o contraditório mas onde, não obstante, sem prejuízo daquele condicionamento, a intervenção do juiz na definição das posições jurídicas dos arguidos acautela de modo bastante os seus direitos fundamentais.
Nesta perspectiva, não parece - salvo o devido respeito
- que se possa defender pecarem as normas em causa por desproporcionalidade, do mesmo passo violando as garantias constitucionais de defesa, ao impedirem uma valoração in concreto, pelo juiz, dos interesses conflituantes em presença, permitindo a flexibilização do acesso.
2.- O Tribunal Europeu dos Direitos do Homem vem interpretando o disposto no § 4º do artigo 5º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem no sentido da essencialidade de uma 'participação adequada' do arguido de modo a possibilitar-lhe a organização eficaz da sua defesa.
O citado acórdão Lamy insere-se nessa linha jurisprudencial, proferido num caso em que ao advogado do arguido se recusara o conhecimento de qualquer elemento do processo (de natureza documental), sendo-lhe vedados, assim, os meios necessários para impugnar os motivos da detenção.
Não parece, no entanto, que o circunstancialismo subjacente nesse caso se identifique, ou sequer se aproxime, do presente, em que o arguido se conforme com a medida de coacção decretada e, em plena fase investigatória, pretende aceder aos autos para, só então, 'aquilatar da bondade do despacho que determinou a sua prisão preventiva'. Como se ponderou na 1ª Instância, 'nunca o arguido desconheceu as razões que levaram à sua prisão preventiva e que subjazem
à mesma e de que foi oportunamente informado, tendo inclusivamente assinado os autos em que tais motivos constam'. Ora, o que aquele Tribunal pretende, na interpretação da Convenção, é assegurar ao arguido o direito à verificação jurisdicional da legalidade da medida de coacção aplicada e esse enfoque, nesta parte coincidente com o objectivo do recorrente, está, in casu garantido devidamente (cfr., a este propósito, citando-se o acórdão Weeks, o Comentário à Convenção sob a direcção de Louis-Edmond Pettiti, Emmanuel Decaux e Pierre-Henri Imbert, Paris, 1995, pág. 232).
Na verdade, a decisão recorrida, ao fundamentar a medida decretada, apreciou a situação concreta subjacente e emitiu um juízo valorativo que teve em conta o princípio da proporcionalidade, não obstante a vigência do impugnado complexo normativo. A apreciação desse juízo não passa, no entanto, pelos equacionados parâmetros de constitucionalidade. Vítor Nunes de Almeida (vencido, com Decalração de Voto junta)
Dissenti profundamente da posição maioritária que fez vencimento no presente acórdão.
Desde logo, com o processo na fase do julgamento (cfr. Público, de 31 de Janeiro de 1997) e atenta a natureza instrumental do recurso de constitucionalidade, o destino do presente recurso parece-me que só poderia ser o do seu não conhecimento.
Não se tendo adoptado esta via, veio o recurso a ser provido, revogando-se a decisão e determinando-se a sua reformulação tendo em atenção o julgamento de inconstitucionalidade da norma dos artigos 86º, nº 1 e
89º, nº 2 ambos do Código de Processo Penal (adiante, CPP), na interpretação segundo a qual o juiz de instrução não pode autorizar, em caso algum e fora das situações tipificadas na última norma, o advogado do arguido a consultar o processo na fase de inquérito para poder impugnar a medida de prisão preventiva que foi aplicada ao arguido.
Não concordando com esta conclusão importa referir as razões.
O artigo 86º do CPP estabelece os princípios gerais vigentes em matéria de publicidade do processo e segredo de justiça. O princípio geral é o de que o processo e os seus actos podem ser plenamente publicitados, sob pena de nulidade, a partir da decisão instrutória, ou, se não houver instrução, a partir do momento em que ela já não pode ser requerida. Até estes momentos, vigora, salvas as excepções legalmente previstas, a regra do segredo de justiça.
A publicidade do processo abrange o direito de assistência do público aos actos processuais, a sua narração pelos meios de comunicação social, a consulta do auto e obtenção de cópias, extractos e certidões de todo o auto ou de partes dele (nº 2, do artigo 86).
O segredo de justiça abrange a proibição de assistência a actos processuais ou de deles tomar conhecimento, por parte de pessoas que não tenham o direito ou dever de assistir, a proibição de divulgação da ocorrência de tal acto ou dos seus termos. No seu âmbito subjectivo, o segredo de justiça vincula todos os participantes processuais, alargando-se ainda às pessoas que tenham tomado contacto com o processo e tido conhecimento de elementos desse processo.
Os nºs 4 e 6 do artigo 86º do CPP concretizam duas excepções de carácter geral ao princípio do segredo de justiça (caso dos acidentes de viação, para efeitos de indemnização cível e o caso de ser necessário dar-se conhecimento a determinadas pessoas do conteúdo do acto ou de documento em segredo de justiça para o esclarecimento da verdade).
A consulta de auto e a obtenção de certidão pelos sujeitos processuais está regulada no artigo 89º do CPP - norma esta que, no caso, vem questionada e acabou por ser julgada inconstitucional na interpretação referenciada.
Em regra, de acordo com o nº 1 do artigo 89º, a entidade que dirige o processo, o Ministério Público, os auxiliares processuais, o arguido, o assistente, e as partes civis não só podem ter acesso a auto na secretaria ou no local onde estiver a ser realizada qualquer diligência como podem obter cópias, extractos, e certidões autorizadas por despacho ou, se for para prepararem a acusação ou a defesa, mesmo independentemente de despacho.
No caso de o Ministério Público ainda não ter deduzido a acusação, então, o arguido, o assistente e as partes civis só podem ter acesso à parte das declarações que prestaram e a requerimentos ou memoriais apresentados bem como às diligências de prova a que pudessem assistir ou a questões incidentais em que devessem intervir, ficando todas estas partes do processo avulsamente fotocopiadas na secretaria, durante três dias, prosseguindo o processo e mantendo-se para todos o dever de guardar segredo de justiça.
A aplicação desta norma e dos princípios a ela subjacentes violará as garantias de defesa e o direito de acesso aos autos do arguido, no caso em apreço, como se decidiu?
Assim e, em concreto, a questão que se suscita é a de saber se o arguido, na situação de prisão preventiva, pode ter acesso a todos os elementos que constam dos autos de inquérito, antes mesmo de ser deduzida acusação pelo Ministério Público, para o efeito de impugnar a legalidade de tal prisão.
O inquérito, na nossa lei processual penal, abrange as diligências destinadas a investigar a existência de um crime, com vista a determinar o seu agente ou agentes, a respectiva responsabilidade, descobrindo e recolhendo as provas que permitam decidir sobre a acusação.
Destina-se, pois, o inquérito à descoberta, recolha e, sempre que tal for possível, à verificação e comprovação dos factos que condicionam a aplicação posterior do direito, verificação que, para efeitos de prosseguimento do processo criminal, há-de consistir na sua demonstração feita por meio de provas. A procura e recolha das provas e, essencialmente, a conservação de todos os elementos probatórios que forem apurados constitui a finalidade primordial do inquérito, com vista à dedução da acusação e posteriormente à prova directa, em julgamento, dos factos que integram esta acusação, por forma a desembocar na decisão condenatória.
Quando para prova do facto criminoso em investigação existam poucas provas directas que relacionem o suspeito com aquele crime, a recolha dos factos indiciários torna-se indispensável para neles se poder vir a fundamentar a acusação e a pronúncia; mas para se alcançar a condenação exige-se a prova dos factos, isto é, a certeza da sua ocorrência.
Na fase do inquérito a aquisição da prova incumbe fundamentalmente ao Ministério Público, embora em certas situações a aquisição e ou produção da prova tenha de ser autorizada pelo juiz. Nesta fase, o arguido pode oferecer provas e requerer as diligências que entenda necessárias mas que poderão ou não ser aceites pelo Ministério Público, havendo de reconhecer-se que, na fase de investigação dos factos, o direito do arguido à produção de provas é limitado (cf. Marques da Silva, Curso de Processo Penal, IIº V. pág.
98).
A necessidade de a investigação se processar durante um período de tempo mais ou menos longo torna indispensável que a autoridade a quem cabe a investigação utilize meios de limitação da liberdade pessoal ou patrimonial do arguido que sejam os mais adequados para garantir a plena eficácia de todo o procedimento.
No caso de se verificarem fortes indícios de prática de crime doloso a que corresponda pena de prisão cujo limite máximo seja superior a três anos, o juiz do processo pode determinar a prisão preventiva do arguido pelo prazo fixado na lei - artigo 27, nº 3, alínea a) da Constituição.
A prisão preventiva tem de ser validada por despacho do juiz, depois de comunicar as causas da detenção ao arguido, de o interrogar e de lhe dar oportunidade de defesa quanto a tais causas (artigo 28º, nº 1, da Constituição), aqui se centrando a essencialidade das garantias de defesa do arguido nesta fase do inquérito.
A lei condiciona a aplicação de medidas de coacção, aí se incluindo a prisão preventiva, à verificação de um só ou de todos os seguintes pressupostos (artigo 204º, do CPP): fuga ou perigo de fuga, perigo de perturbação do decurso do inquérito ou da instrução do processo e, nomeadamente, perigo para a aquisição, conservação ou veracidade da prova, e, por fim, perigo, em razão da natureza ou das circunstâncias do crime ou da personalidade do arguido, de perturbação da ordem e da tranquilidade públicas ou de continuação da actividade criminosa.
Com efeito, o arguido em liberdade pode perturbar o inquérito e a instrução quer criando factos novos ou falsos álibis, atemorizando ou subornando as testemunhas, ou fazendo desaparecer documentos probatórios, produzindo documentos falsos, etc. (cf. Marques da Silva, ibidem, pág. 214), reconhecendo este mesmo autor que o perigo de perturbação da instrução do processo é maior na fase do inquérito e ainda quando não estão recolhidas nos autos meios de prova que indiciem a responsabilidade do arguido.
É certo que os perigos de inquinamento das provas têm de ser não só concretos como também actuais, embora esta exigência não imponha um juízo de certeza quanto à realização do presumível ataque às provas, bastando-se com um juízo de razoável probabilidade de que venha a ocorrer, assente na existência de um fundado interesse do arguido em eliminar a prova ou o elemento indiciário.
Assentes estes circunstancialismos, importa voltar a referir que, no caso em apreço, a decisão de manter a detenção do arguido e ora recorrente foi tomada pelo juiz depois de comunicar ao arguido, logo no interrogatório, as razões pelas quais o Ministério Público pedia a prisão preventiva, tendo o despacho sido fundamentado, ainda que sem grande abundância de factos, despacho este que o arguido não impugnou.
Sem dúvida que é legítimo ao arguido pretender questionar a legalidade da prisão preventiva, mas para isso não necessita de ter acesso irrestrito aos autos: os fundamentos da prisão tinham-lhe sido oportunamente comunicados, podendo a medida de coacção ser oficiosamente revogada para o que bastaria demonstrar ou ter sido aplicada fora das hipóteses ou das condições previstas na lei ou por terem deixado de subsistir as circunstâncias que justificaram a sua detenção. Porém, a abertura do acesso irrestrito aos autos na fase de inquérito poderá vir a ser fatal para a própria investigação, face a todos os malefícios susceptíveis de virem a acontecer aos indícios probatórios ainda não completamente adquiridos e garantidos nos autos.
Acresce que sendo as decisões sobre prisão preventiva sempre susceptíveis de revisão - devendo mesmo ser oficiosamente reexaminada a execução e os pressupostos de tal tipo de prisão de três em três meses - o que acontece é que, face à total abertura da decisão que contestamos, é bem possível prever o termo do segredo de justiça durante o inquérito. De facto, não sendo provável que tal acesso lhe possa vir a ser restringido, pode o arguido requerer, sempre que deseje saber o estado da investigação, tal acesso e, assim, acompanhar a par e passo toda a investigação e, sendo ele a única pessoa que conhece a realidade a ser investigada, pode antecipadamente realizar todas as manobras de diversão que considere úteis ou necessárias para obviar à integral descoberta da verdade que o pode prejudicar.
Parece-me indubitável que o princípio da igualdade de armas e o princípio das garantias de defesa não podem nem devem desaparecer na fase de inquérito: porém, as garantias de defesa são mantidas ao dar-se conhecimento ao arguido dos fundamentos da decisão que determinou a prisão preventiva e ao permitir que tal decisão possa ser impugnada jurisdicionalmente; todavia, o princípio da igualdade de armas, a manter-se na fase de inquérito, não pode deixar de sofrer algum enfraquecimento. Na verdade, no inquérito, por se tratar de uma fase não contraditória do processo, o princípio da igualdade de armas é colocado como instrumento das garantias de defesa, surgindo apenas nos casos em que se torna necessário tornar efectiva a posição jurídica dos intervenientes processuais (v.g., no momento da constituição de arguido, quando se definem os direitos e deveres do arguido, e, em casos como o dos autos, principalmente quando a lei exige a fundamentação do despacho que determina as medidas de coacção, etc...).
Ora, enquanto se investigam os factos que desencadearam o inquérito, a autoridade investigadora não dispõe senão dos elementos que o criminoso deixou; o investigador tem de refazer todo o «puzzle» da situação enquanto que o criminoso está na posse de todos os elementos que faltam para estabelecer a sua responsabilidade, isto é, o arguido dispõe de todos os
«trunfos» de que não é obrigado a abrir mão e o investigador tem de reconstituir todo o «puzzle» da situação criminosa, a partir de meros indícios que tem de ir juntando. Assim, o acesso irrestrito do arguido aos autos é susceptível, como se referiu, de tornar todos os esforços da investigação perfeitamente inúteis. Esta
'desigualdade' só pode ser compensada com a denegação do acesso irrestrito do arguido ao processo, salvo quanto aos elementos já referidos no nº 2 do artigo
89º do CPP, ou na hipótese, sempre possível, do nº 4 do artigo 86º do CPP..
Por último, não podem deixar de se salientar os problemas e questões que a solução propugnada no Acórdão de que nos afastamos vem gerar: vai impôr-se ao juiz do processo a obrigação de, em cada caso e face a cada requerimento, decidir se o arguido, detido em regime de prisão preventiva e que quiser contestar a legalidade da aplicação deste meio de coacção, pode ou não ter acesso irrestrito aos autos. É de prever que o juiz do processo não sendo ele quem conduz a investigação e não detendo, por isso, todo o domínio das diligências em curso, vá ouvir, para se pronunciar com um mínimo de conhecimento dos factos, a autoridade investigadora sobre a conveniência de tal acesso aos autos, acabando por decidir de acordo com o que for proposto pela mesma, a qual detém o controlo dos meandros da investigação e é até a única entidade que pode ajuizar da oportunidade ou inoportunidade de tal acesso. Com os consequentes recursos dos despachos de indeferimento e a necessária perturbação da averiguação dos factos, já de si tão conturbada.
Uma última questão. A factualidade que decorre dos presentes autos é, resumidamente, a seguinte:
O recorrente começou por ser interrogado, com a presença de advogado, como testemunha, no dia 10 de Abril de 1996, em inquérito instaurado na sequência do homicídio de uma artista de variedades; ainda no decurso de tal depoimento veio a ser constituído arguido, tendo então declarado que só pretendia prestar declarações em tribunal. Havendo fortes suspeitas de que fosse o autor desse homicídio, foi ordenada a sua detenção e, nesse mesmo dia, foi presente ao juiz da Comarca de Lousada, onde foi interrogado, na presença do seu advogado, e viu validada a sua detenção sendo decretada prisão preventiva, por despacho fundamentado do juiz.
A decisão que ordenou a prisão preventiva do arguido não foi impugnada, tendo transitado.
Em 20 de Maio de 1996, o arguido veio requerer ao Tribunal a consulta dos autos de inquérito afirmando desconhecer por completo os indícios existentes nos autos e que determinaram a prisão preventiva que pretendia impugnar. Da decisão que negou tal acesso veio a ser interposto recurso para a Relação que confirmou a decisão de 1ª instância e é do Acórdão da Relação do Porto que vem interposto o presente recurso de constitucionalidade.
Ora, esta situação fáctica é substancialmente diferente - para além de ser também razoavelmente diverso o enquadramento jurídico - daquela em que assentou a prolação do invocado Acórdão Lamy. Daí que não possa, sem mais, invocar-se a sua doutrina para a aplicar no nosso direito, onde o arguido, em situações como a que decorre dos autos, vê respeitadas as suas garantias de defesa e pode aceder ao processo em termos que não se têm por violadores da Constituição.
Portanto, as normas dos artigos 86º, nº 1 e 89º, nº 2, ambos do CPP, enquanto interpretadas como foram pela decisão recorrida, segundo a qual o juiz de instrução não pode autorizar em caso algum e fora das situações tipificadas na última norma referida, o advogado do arguido a consultar o processo na fase de inquérito para poder impugnar a medida de coacção de prisão preventiva que foi aplicada ao arguido, não são inconstitucionais, pois não violam as garantias de defesa do arguido nem o direito de acesso deste aos autos que continua a ser possível nos termos previstos não só no nº 2 do artigo 89º como também no nº 4 do artigo 86º, ambas do CPP. José Manuel Cardoso da Costa (vencido, com as posições assumidas pelos Exmºs. Conselheiros Tavares da Costa e Vítor Nunes de Almeida)