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Processo nº 621/96 Conselheiro Messias Bento
Acordam na 2ª Secção do Tribunal Constitucional:
I. Relatório:
1. A empresa seguradora A., deduziu embargos à execução para pagamento de quantia certa que contra si moveu o HOSPITAL DE SÃO JOSÉ, alegando a inconstitucionalidade, por violação do princípio da igualdade, do artigo 9º do Decreto-Lei nº.194/92, de 8 de Setembro, que fixa em cinco anos o prazo de prescrição das dívidas às instituições e serviços públicos integrados no Serviço Nacional de Saúde, razão por que - acrescentou - deve aplicar-se no caso o prazo de três anos fixado no artigo 498º, nº.1, do Código Civil, julgando-se prescrito o direito que o exequente pretende exercer.
O Juiz do 17.º Juízo Cível da Comarca de Lisboa, por sentença de 15 de Junho de 1995, julgou procedente a oposição e absolveu o embargante do pedido, tendo, para o efeito, recusado aplicação ao mencionado artigo 9º do Decreto-Lei nº.194/92, com fundamento na sua inconstitucionalidade
(violação do princípio da igualdade), e aplicado no julgamento do caso o referido artigo 498º, nº.1, do Código Civil.
2. É desta sentença (de 15 de Junho de 1995) que vem o presente recurso, interposto pelo Ministério Público ao abrigo da alínea a) do nº.1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional, para apreciação da constitucionalidade do aludido artigo 9º do Decreto-Lei nº.194/92, de 8 de Setembro.
Neste Tribunal, apenas alegou o Procurador-Geral Adjunto aqui em exercício, tendo formulado as seguintes conclusões:
1º. O princípio da igualdade, entendido como proscrição do arbítrio legislativo, apenas veda ao legislador ordinário o estabelecimento de regimes discriminatórios, arbitrários ou discricionários, por carecidos de qualquer suporte material razoável, não obstando, porém, à estatuição de regimes jurídicos especiais ou excepcionais, ditados pela peculiar configuração dos interesses subjacentes a certas e determinadas relações litigiosas.
2º. A massificação emergente do carácter geral e universal do serviço nacional de saúde e a frequente necessidade de cobrar do responsável pelo facto ilícito os custos de tratamentos médicos de que beneficiou o lesado, desprovido de capacidade económica, constituem justificação suficiente para a ampliação para 5 anos do prazo prescricional de curta duração, estabelecido na lei civil para a efectivação da responsabilidade extracontratual.
3º. Termos em que deverá proceder o presente recurso, determinando-se a reforma da decisão recorrida.
3. Corridos os vistos, cumpre decidir se a norma constante do artigo 9º do Decreto-Lei nº.194/92, de 8 de Setembro, é inconstitucional, designadamente por violação do princípio da igualdade.
II. Fundamentos:
4. A norma sub iudicio:
O Decreto-Lei n.º 194/92, de 8 de Setembro, regula a cobrança de dívidas às instituições e serviços públicos integrados no Serviço Nacional de Saúde - matéria que, antes, era regulada pelo Decreto-Lei n.º
147/83, de 5 de Abril, que veio substituir a disciplina constante dos artigos
41º a 44º do Decreto-Lei n.º 46 031, de 27 de Abril de 1965.
Face aos 'insatisfatórios resultados conseguidos com o Decreto-Lei n.º 147/83, de 5 de Abril' - que se terão ficado a dever ao facto de as dívidas aos estabelecimentos de saúde estarem sujeitas ao regime da prescrição de curto prazo [dois anos, no caso de a dívida ser exigida do próprio assistido ou familiares [cf. artigo 317º, alínea a), do Código Civil]; três anos
(salvo se 'o facto ilícito constituir crime para que a lei estabeleça prescrição sujeita a prazo mais longo', que então se observará), quando o hospital interpela 'o terceiro responsável pela lesão corporal ou quem, por sub-rogação, haja assumido tal responsabilidade, v. g., entidades seguradoras' (cf. artigo
498º, nºs 1 e 3, do mesmo Código)] e, bem assim, à circunstância de 'o recurso, sempre moroso, à acção declarativa, como forma de obter a declaração de direitos quase sempre certos e indiscutíveis, funciona(r), muitas vezes, como obstáculo de vulto à efectiva cobrança de créditos' - o legislador decidiu 'generalizar a todas as unidades de saúde públicas' a solução, 'de acerto indiscutível',
'consagrada no artigo 6º da Lei nº.1 981, de 3 de Abril de 1940, que atribui força de título executivo às certidões de dívida pelo tratamento de doentes passadas pelos Hospitais Civis de Lisboa' (cf. o preâmbulo do referido Decreto-Lei nº.194/92). Além disso, uniformizou o prazo de prescrição, fixando-o em cinco anos, tanto para o caso de o pagamento da dívida ser exigida do próprio assistido (ou de seus familiares), como para a hipótese de ser reclamado de um terceiro (maxime a uma seguradora).
O artigo 9º do Decreto-Lei nº.194/92, de 8 de Setembro, dispõe, na verdade, que: As dívidas pelos encargos referidos neste diploma prescrevem no prazo de cinco anos, contados da data em que cessou o tratamento.
As dívidas aos hospitais pelos serviços de assistência que por eles sejam prestados prescrevem, pois, no prazo de cinco anos.
Se não fora a norma do artigo 9º, acabado de transcrever, tais dívidas prescreveriam, como se viu, no prazo de dois ou de três anos, consoante o seu pagamento fosse exigido do próprio assistido ou de familiares seus [cf. artigo 317º, alínea a), do Código Civil], ou, antes, do terceiro responsável pelas lesões corporais ou de quem, por sub-rogação, tivesse assumido essa responsabilidade (cf. artigo 498º, nº.1, do mesmo Código). Isto, a menos que, constituindo o facto ilícito crime, a lei não estabeleça para ele um prazo de prescrição mais longo, pois, em tal caso, é esse prazo mais longo que se observará (cf. artigo 498º, nº 3, do Código Civil).
5. A questão de constitucionalidade:
5.1. O juiz recorrido entendeu que 'o alargamento [para cinco anos] do prazo de prescrição em benefício das instituições e serviços públicos, quando se manteve o prazo de três anos relativamente a instituições ou serviços que prestam a mesma assistência viola o princípio da igualdade', uma vez que - ponderou - 'as instituições e serviços públicos a que se refere o Decreto-Lei nº.194/92, enquanto prestadoras de serviços, não se encontram em qualquer posição de supremacia que justifique, objectiva e racionalmente, uma diferença de tratamento privilegiada em relação às demais instituições e serviços que prestam a mesma assistência', tanto mais que 'bem pode acontecer que o mesmo facto danoso dê origem a tratamento e/ou assistência por entidades diversas em que ambas se vêem sujeitas a diferente regime no que ao pagamento de tais serviços respeita'.
Será assim?
5.2. O princípio da igualdade, consagrado no artigo 13º da Constituição da República, impõe se dê o mesmo tratamento ao que for essencialmente igual e se trate de maneira diferente o que for essencialmente desigual. Tal princípio não proíbe soluções jurídicas diferenciadas; apenas veda o arbítrio legislativo, as soluções legais que, por carecerem de fundamento material ou racional, sejam irrazoáveis ou injustificadas. Se houver motivo capaz de fundar materialmente o regime jurídico estabelecido, não é o facto de ele ser um regime especial ou, mesmo, excepcional que o torna ilegítimo ratione constitutionis, que o mesmo é dizer no confronto com a exigência de igualdade que a ideia de justiça, própria de um Estado de Direito, faz ao legislador.
Pois bem: A prescrição presuntiva, que é uma prescrição de curto prazo, arranca da ideia de que, atenta a natureza da dívida, o credor não deixa, em princípio, passar muito tempo sem exigir o seu pagamento e, por sua parte, o devedor paga-a, sem que, por via de regra, exija quitação e sem que, quando a exige, a conserve por muito tempo. Decorrido um prazo razoável, mas sempre curto, presume, então, o legislador que o seu pagamento já foi feito e, por isso, dispensa o devedor de fazer a prova deste, já que, pelas razões apontadas, ele teria muita dificuldade em fazê-la [cf. VAZ SERRA, Prescrições Presuntivas (algumas questões), in Revista de Legislação e Jurisprudência, ano
98º, páginas 241 e seguintes).
A prescrição de curto prazo (presuntiva) - dispõe o artigo 312º do Código Civil - funda-se 'na presunção de cumprimento'. Com o estabelecimento deste tipo de prescrições, visa o legislador, no fundo - acentuam PIRES DE LIMA e ANTUNES VARELA (Código Civil Anotado, volume I, anotação ao artigo 312º) -, 'proteger o devedor contra o risco de satisfazer duas vezes dívidas de que não é usual exigir recibo ou guardá-lo durante muito tempo'.
A prescrição ordinária (também chamada prescrição extintiva) explica-se como reacção contra a inércia do titular do direito que, podendo exercê-lo, não o exerce durante um período de tempo mais ou menos longo. Essa inacção do credor leva, razoavelmente, o devedor a convencer-se de que aquele se desinteressou do cumprimento da obrigação. E autoriza o legislador a interpretar um tal comportamento como renúncia ao direito que assim deixou de exercer-se.
Fundamentos desta prescrição são, assim, a certeza do direito e a segurança do comércio jurídico.
A prescrição ordinária - escreve L. CARVALHO FERNANDES
(Prescrição, in Polis, 4, coluna 1 473) -, surge 'na confluência de valores contrapostos, ambos relevantes para o Direito: o valor justiça, que levaria a considerar que o devedor está sempre vinculado, enquanto não cumprir; o valor de certeza ou segurança nas relações jurídicas que se não coaduna com uma situação de inércia prolongada do titular do direito'.
Os prazos das presunções presuntivas são os enunciados nos artigos 316º e 317º do Código Civil: o primeiro fixa o prazo de seis meses e o segundo, o de dois anos.
O prazo ordinário (ou geral) da prescrição ordinária é de vinte anos (cf. artigo 309º do Código Civil). Os prazos especiais deste tipo de prescrição são muito diversos, sendo o mais importante de cinco anos (cf. artigo 310º do Código Civil).
(O artigo 38º, nº.1, do Decreto-Lei nº. 47.032, de 27 de Maio de 1966, fixa o prazo prescricional de um ano, para os créditos resultantes do contrato de trabalho e da sua violação ou cessação).
Como chama a atenção o Procurador-Geral Adjunto, o regime especial consagrado no nº.1 do artigo 498º do Código Civil - que, recorda-se, fixa em três anos o prazo de prescrição, quando o hospital demanda o terceiro responsável pela lesão corporal ou aquele que, por sub-rogação (é o caso das seguradoras), haja assumido essa responsabilidade - não corresponde de tal modo à 'natureza das coisas' que o legislador esteja impedido de estabelecer, quanto a certos créditos emergentes de responsabilidade civil extracontratual, 'um diferente e mais longo prazo prescricional'.
O legislador pode, na verdade, estabelecer para as dívidas às instituições e serviços públicos integrados no Serviço Nacional de Saúde um prazo prescricional diferente e mais longo do que os consagrados nos mencionados artigos 317º, alínea a), e
498º, nº.1, do Código Civil. Questão é que, 'valorando os interesses do credor e devedor e ponderando o conflito entre os valores certeza e segurança do direito e justiça' (as palavras são das alegações do Ministério Público), ele assim o entenda justificadamente - isto é, que esse diferente prazo não seja fruto de uma decisão puramente arbitrária, irracional ou irrazoável, por carecer de fundamento material.
No presente caso, trata-se de dívidas às instituições e serviços públicos integrados no Serviço Nacional de Saúde de cujo pagamento se passa recibo, que os interessados conservam, que mais não seja para o efeito de deduzirem o seu montante nos impostos. Acresce a isto a conhecida lentidão dos serviços públicos administrativos, que tende, naturalmente, a acentuar-se em instituições e serviços integrados num sistema complexo como é o Serviço Nacional de Saúde, que, por estar ordenado à prestação de cuidados de saúde, com carácter 'universal, geral e tendencialmente gratuito' [cf. artigo 64º, nº.2, alínea a), da Constituição], gera fenómenos de massificação e cria dificuldades acrescidas na cobrança do preço dos serviços prestados.
Ora, nos estabelecimentos privados de saúde, não se observa tal morosidade na cobrança dos serviços prestados. Aí, em regra, o doente não entra sem depositar uma caução e, em princípio, também de lá não sai sem liquidar a conta ou, pelo menos, uma parte substancial dela.
O prazo prescricional, fixado pela norma sub iudicio para as dívidas às instituições ou serviços públicos integrados no Serviço Nacional de Saúde (cinco anos), não obstante ser diferente e mais longo do que os das dívidas aos estabelecimentos particulares (este é de dois ou três anos, consoante se peça o pagamento ao próprio assistido ou a um seu familiar, ou a um terceiro, maxime a uma seguradora) é, por isso, materialmente fundado.
6. Conclusão:
A solução legislativa constante do mencionado artigo 9º, sendo embora diferente da que regula o instituto da prescrição quando os cuidados de saúde são prestados por instituições e serviços particulares (o prazo aí fixado é mais longo), não viola o princípio da igualdade, pois que se não apresenta como arbitrária ou irrazoável, antes tem suficiente fundamento material.
III. Decisão:
Pelos fundamentos expostos, concede-se provimento ao recurso e, em consequência, revoga-se a decisão recorrida quanto ao julgamento da questão de constitucionalidade, a fim de ser reformada em conformidade com o aqui decidido quanto a tal questão.
Lisboa, 12 de Março de 1997 Messias Bento Guilherme da Fonseca Bravo Serra José de Sousa e Brito Luís Nunes de Almeida