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Proc.Nº 557/95
Sec. 1ª
Rel. Cons. Vitor Nunes de Almeida
Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional:
I - RELATÓRIO:
1. - A. depois de citado em processo de execução fiscal para pagamento do imposto de transacções incidente sobre a importação de peças para fabrico de armas, no valor de 803 602$00, veio deduzir oposição à mesma execução, alegando essencialmente que, face às dificuldades levantadas pela Alfândega, o oponente optou pela reexportação das peças, que não só não chegaram a entrar em consumo no mercado nacional, como também na sua reexportação foram cumpridos os prazos legais e obtida a autorização da Alfândega de Lisboa, pelo que, configurando toda a operação uma situação de importação temporária, entende que não é devido qualquer imposto, invocando como fundamentos de oposição o disposto nas alíneas e) e h) do artigo 286º do Código de Processo Tributário
(adiante, CPT).
Remetidos os autos ao Tribunal Tributário de 1ª Instância de Lisboa, veio a ser aí proferida uma decisão, em 5 de Janeiro de
1993, pela qual se decidiu, nos termos do disposto no artigo 291º, nº1, alínea c), do CPT rejeitar liminarmente a oposição deduzida, porquanto não só não é possível no processo de oposição conhecer da invocada inexistência da dívida como também não se verifica nenhum dos fundamentos legais de oposição à execução fiscal.
2. - Não se conformando com tal decisão, o oponente veio interpor recurso para a Secção do Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo (STA).
O recorrente, formulou as seguintes conclusões nas pertinentes alegações:
'A douta sentença enferma de erro quando rejeita a oposição por dar como não verificados os fundamentos previstos nas al. e) e h) do artº 286º do C.P.T.;
A dívida foi anulada pela reexportação autorizada e controlada pela Alfândega;
A recorrente foi objecto de actos ilegais anulados sistematicamente pelos Tribunais;
O artº 286º do C.P.T. se prevalecesse a interpretação subjacente na douta sentença recorrida, colidiria com os artºs 106º, 266º e 268º da C.R.P.;
Designadamente, privava o particular do direito efectivo ao recurso das decisões administrativas que lhe são prejudiciais.'
Admitido o recurso como agravo, o Ministério Público junto do STA pronunciou-se no sentido do improvimento do recurso.
Por acórdão de 22 de Março de 1995, a Secção do Contencioso Tributário do STA decidiu negar provimento ao recurso, mantendo a decisão recorrida.
Para chegar a este resultado, o acórdão assentou na seguinte argumentação:
- o recorrente sempre pôs em causa, na oposição deduzida a legalidade da dívida exequenda derivada do facto de a mercadoria ter sido reexportada, sendo a situação equivalente a uma importação temporária isenta de imposto de transacção e ocorrendo com aquela exportação a anulação da dívida constituída;
- pretende, por isso, o recorrente pôr em causa a liquidação em concreto, não sendo eficaz a invocação da anulação da dívida exequenda, derivada da referida operação de reexportação, pois ao tribunal de execução não compete conhecer de tal facto para dele extrair os respectivos efeitos;
- a anulação da dívida exequenda admitida como fundamento de oposição à execução é apenas a que se mostra decretada pelos competentes serviços ou pelo tribunal, situação que nunca foi demonstrada pelo recorrente;
- o tribunal da execução não tem que se pronunciar quanto à verificação dos pressupostos daquela alegada situação de isenção com a decorrente anulação da dívida exequenda;
- mas se a impugnação foi deduzida, como se alega, as consequências de uma eventual procedência repercutem-se na execução, que será suspensa se tiver sido prestada a garantia, mas a oposição não é o meio idóneo para alcançar tal finalidade;
- por último, a impugnação judicial invocada demonstra que não tem qualquer consistência a alegada postergação de valores constitucionais derivadas da rejeição da oposição, uma vez que por aquela via sempre poderia o recorrente por em crise a legalidade da dívida, com vários fundamentos.
O acórdão conclui que a oposição foi bem rejeitada com fundamento na sua manifesta improcedência.
É desta decisão que vem interposto o presente recurso de constitucionalidade, em que o recorrente pretende que se aprecie a conformidade constitucional da interpretação feita do artigo 286º do Código de Processo Tributário, por violação dos artigos 268º, 106º e 266º da Constituição da República Portuguesa (CRP).
Neste Tribunal, o recorrente produziu as respectivas alegações em que concluiu pela forma seguinte:
' - A CRP consagra os princípios da legalidade tributária, da subordinação da prossecução da actividade administrativa ao respeito por interesses legalmente protegidos e aos princípios referidos no seu art.266º, nº
2;
- A CRP consagra o direito de recurso contencioso contra decisões ilegais;
- As decisões administrativas gozam do privilégio de execução prévia;
- Conforme o Recorrente vem defendendo o privilégio da execução prévia dos actos tributários cessa quando o contribuinte lança mão dos meios contenciosos e oferece garantia suficiente ao pagamento do imposto;
- A oposição à execução regulada no art.285º e seguintes do CPT, consagra na opinião do Recorrente o último instrumento de natureza contenciosa de resistência a execução prévia;
- Outro tanto não decidiram os tribunais da jurisdição fiscal que negam a adequação do processo de oposição à resistência à execução de dívida não existente ou não exigível.
- Assim, o art.286º do CPT traduziria de forma deficiente o modo de exercício do direito contencioso contra actos violadores dos art.106º
(legalidade tributária) e art.266º (legalidade administrativa) da CRP.'
Também a Fazenda Nacional alegou, formulando as seguintes conclusões:
'1) A ilegalidade da liquidação da dívida exequenda só pode ser fundamento da oposição à execução quando a lei não assegurar, designadamente, meio judicial de impugnação;
2) No caso dos autos, é permitida a impugnação judicial contra o acto de liquidação da dívida, meio de que o recorrente faz uso;
3) É nessa sede que cabe a apreciação da legalidade da liquidação do imposto em causa;
4) Uma vez decidida essa impugnação, poderá o recorrente lançar mãos do recurso jurisdicional;
5) A enunciação dos fundamentos da oposição à execução, constante do artigo
286º do Código de Processo Tributário, não configura a atribuição de qualquer poder discricionário à Administração fiscal;
6) A interpretação feita nos autos do artigo 286º do Código de Processo Tributário é correcta e não colide com qualquer dos invocados direitos do recorrente, consagrados na Constituição da República Portuguesa;
7) Não se surpreende, pois, qualquer inconstitucionalidade no artigo 286º do Código de Processo Tributário.
Termos em que, e com o douto suprimento de V.Exas, deve o recurso ser julgado improcedente.'
Corridos que foram os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.
II - FUNDAMENTOS:
3. - Importa, antes de mais, delimitar com precisão, o
âmbito do recurso, uma vez que o recorrente se limita a referir que 'na interpretação e aplicação que deles fez o douto acórdão recorrido, o artº 286º, do Código de Processo Tributário, é materialmente inconstitucional, porque colidente com os artigos 268º,106º, e 266º da CRP'.
Porém, das alegações apresentadas no STA pelo recorrente, decorre com alguma clareza que o que se pretende impugnar é a interpretação feita na decisão recorrida segundo a qual o artigo 286º do Código do Processo Tributário (CPT) não contém um fundamento válido de oposição à execução fiscal assente em acto ilegal, pelo que tal entendimento violaria os princípios constitucionais da legalidade tributária (artigo 106º), da igualdade, proporcionalidade, da justiça e da imparcialidade (artigo 266º), além de eliminar a garantia de recurso contencioso prevista no artigo 268º da Constituição.
Sendo este o sentido que o recorrente pretende ver apreciado pelo Tribunal, não pode deixar de se referir, desde logo, que o artigo
286º do CPT não foi, todo ele, utilizado na decisão recorrida pelo que se tem de restringir o âmbito do recurso às normas desse preceito que, de facto, constituiram fundamento da decisão recorrida.
Nesta, como na decisão do tribunal tributário de 1ª Instância, o fundamento das decisões assentou na interpretação feita das alíneas e) e h) do artigo 286º do CPT. Com efeito, na 1ª instância, entendeu-se que 'é vedado, em sede de oposição fiscal, discutir a legalidade da liquidação da dívida exequenda, ou a também chamada legalidade concreta da dívida' (alínea h) do artigo 286º), para afastar o argumento invocado pelo recorrente da inexistência da dívida.
E, para afastar o argumento também invocado, da anulação da dívida pela reexportação da mercadoria (alínea e) do artigo 286º),a 1ª instância entendeu que não era no processo de oposição que se devia discutir se a dívida deve ou não ser anulada, pois a anulação a que se refere aquela alínea
é a que já foi declarada e só se prova por documento autêntico.
O acórdão do STA, ao confirmar a decisão da instância não deixou de utilizar as mesmas normas, tendo concluído que 'porque assim o entendeu o Mmo. Juiz, bem andou em rejeitar a oposição com fundamento na sua manifesta improcedência'.
Tem, por isso, de se concluir que apenas constitui objecto do presente recurso a interpretação das alíneas e) e h) do artigo 286º do CPT que não considera tais fundamentos invocáveis em processo de oposição à execução fiscal e que segundo o recorrente violaria as normas e princípios constitucionais já atrás referidos.
4. - Vejamos os textos legais em questão.
É o seguinte o teor do preceito, na parte questionada:
Artigo 286
(Fundamentos da oposição à execução)
'1. A oposição só poderá ter alguns dos seguintes fundamentos:
.................................................. e) - Pagamento ou anulação da dívida;
................................................... h) - Ilegalidade da liquidação da dívida exequenda, sempre que a lei não assegure meio judicial de impugnação ou recurso contra o acto de liquidação;'
Segundo o recorrente, o acima referido entendimento viola o artigo 268º da Constituição, na medida em que priva o recorrente do direito ao recurso das decisões administrativas prejudiciais, viola também o princípio da legalidade tributária ínsito no artigo 106º da Constituição e ainda o princípio da legalidade e imparcialidade consagrado no artigo 266º, nºs 1 e 2 da CRP.
Vejamos se será, de facto, assim.
5. - O entendimento propugnado destas normas pela decisão recorrida viola o princípio da legalidade tributária?
A resposta a esta questão não pode deixar de ser negativa.
O artigo 106º da CRP consagra, efectivamente, o princípio da legalidade tributária na criação dos impostos, ao estabelecer no seu nº2 que 'os impostos são criados por lei, que determina a incidência, a taxa, os benefícios fiscais e as garantias do contribuinte', assim se impondo que a criação e determinação dos elementos essenciais de um imposto, esteja condicionada a reserva de lei, o que implica também uma exigência de tipicidade legal.
Ora, mesmo que se entenda que o princípio em causa vale também para as situações em que a liquidação e cobrança de impostos se não faça na forma prescrita na lei, o certo é que no caso em apreço, esta questão não tem cabimento.
Com efeito, trata-se aqui de um processo de oposição à execução fiscal cujos fundamentos constam da lei e foi intenção clara do legislador, além de criar o ónus de uma impugnação imediata da liquidação, evitar que a eventual questão da ilegalidade de um imposto não pudesse ser discutida, em simultâneo ou posteriormente, em mais do que um processo, designadamente, no processo de impugnação judicial e no de oposição à execução fiscal, para que não pudessem existir decisões transitados de teor eventualmente contraditório. Não pode ser outra a leitura do texto da alínea g) do artigo 286º do CPT.
Nesta norma se consigna com clareza que a ilegalidade da liquidação da dívida exequenda, só é fundamento de oposição à execução 'sempre que a lei não assegure meio judicial meio judicial de impugnação ou recurso contra o acto de liquidação'.
Ora, no caso em apreço, o próprio recorrente refere expressamente que, quando em Outubro de 1988, a Repartição de Finanças de Sacavém se apressou a liquidar o imposto de transacções no montante de 803
602$00 e a instaurar um processo de transgressão, o recorrente reagiu contestando a acusação e 'impugnando a legalidade da liquidação'
Não viola, pois, o princípio da legalidade tributária, na vertente das garantias fiscais do contribuinte nem da tipicidade tributária, o entendimento da decisão recorrida de que a ilegalidade da liquidação apenas pode fundamentar a oposição à execução fiscal quando o contribuinte não disponha de meio judicial de impugnação ou de recurso contencioso contra tal liquidação, improcedendo, assim, nesta parte o recurso.
6. - Também a interpretação feita na decisão recorrida das normas questionadas em nada contende com a garantia de recurso contencioso constante do artigo 268º da CRP.
Já neste sentido se pronunciou este Tribunal no Acórdão nº 1171/96, publicado no DR, II S, de 7 de Fevereiro de 1997, no qual se demonstrou, precisamente a propósito destas normas, como não tem cabimento sustentar a violação da garantia do recurso contencioso, nem o princípio geral de acesso aos tribunais para defesa dos direitos e interesses legítimos, nos casos em que a impugnação da liquidação do imposto está ao alcance do contribuinte, pelas vias legais previstas para o efeito fora do contexto do processo de execução; com efeito, a anulação da liquidação ferirá de nulidade todos os actos que consequencialmente dela derivam.
Nestes autos, o recorrente interpôs os recursos que entendeu e pode ainda recorrer nos autos de impugnação da liquidação, logo que neles venha a ser proferida uma decisão. Tanto basta para concluir que é manifesto que a interpretação das normas que vêm questionadas em nada conflitua com o direito de recurso contencioso que o recorrente estima violado.
7. - Por último, importa apurar se existe qualquer violação dos princípios referidos no nº 2 do artigo 266º da CRP.
A interpretação feita na decisão recorrida no sentido de que no processo de oposição à execução fiscal não é legítimo nem possível discutir quer a legalidade da dívida exequenda (a não ser no caso da alínea g) do artigo 286º do CPT) e de que só é legitimamente invocável como fundamento de oposição a anulação de dívida que encontre demonstrada por documento autêntico, não viola quer o princípio da igualdade quer o princípio da proporcionalidade, da imparcialidade ou da justiça.
Desde logo, a posição exposta na decisão recorrida e na que esta confirmou, traduz o entendimento jurisprudencial e doutrinal corrente: em sede de oposição fiscal é vedado discutir a legalidade da liquidação da dívida exequenda, isto é, a concreta legalidade da dívida. Neste sentido, afirma expressamente o artigo 236º do CPT que: 'o processo de execução fiscal não abrange o conhecimento da legalidade da liquidação das dívidas por ele cobradas, salvo as excepções previstas neste Código.'
Como única excepção a este princípio estabelece a alínea g) do artigo 286º, do mesmo diploma, a possibilidade de apreciação da legalidade da dívida exequenda sempre que a lei não assegure meio judicial de impugnação ou recurso contencioso do acto de liquidação.
Também quanto ao segundo aspecto da interpretação das normas que vem questionada, quer a jurisprudência quer a doutrina fiscal sempre tem entendido que a anulação da dívida exequenda a que se refere a alínea e) do artigo 286º do CPT é a que já foi declarada e se prova por documento autêntico
(cf. neste sentido, A.Sousa e J.Paixão, 'Código de Processo Tributário Anotado', nota 32 ao artigo 286º).
Destes elementos decorre que a decisão impugnada se limitou a seguir o entendimento tradicional, uma vez que se deu por demonstrado nos autos que o recorrente tinha impugnado a respectiva liquidação do imposto em execução, não se descortinando como podia ter violado o princípio da igualdade, em qualquer das suas vertentes.
Também essa interpretação não viola o princípio da proporcionalidade: a decisão apenas resolveu, dentro de um processo de oposição a execução fiscal, a questão de saber se os fundamentos invocados pelo ora recorrente eram subsumíveis aos fundamentos taxativamente admissíveis em tal tipo de processo, concluindo pela negativa, utilizando, para chegar a tal conclusão o entendimento tradicional já referenciado, o qual não afecta desproporcionadamente os direitos do recorrente, sendo também uma solução adequada da questão suscitada nos autos pelo recorrente, pelo que não briga também com o princípio de justiça ou com o da imparcialidade.
Tem, assim, de se concluir que a interpretação feita na decisão recorrida não viola as normas e princípios constitucionais invocados, não acarretando também qualquer diminuição das garantias do recorrente, pois este continua a poder impugnar contenciosamente a liquidação do imposto em causa, não podendo acompanhar-se a posição do recorrente que levaria à descaracterização do processo de oposição fiscal tal como o legislador o configurou, se se admitisse a discussão da legalidade da dívida exequenda quando o oponente tem ao seu dispor o meio judicial próprio para tal fim e o usou - a impugnação judicial da liquidação do imposto exequendo.
III - DECISÃO:
Nestes termos, o Tribunal Constitucional decide negar provimento ao recurso.
Lisboa, 18 de Março de 1997 Vítor Nunes de Almeida Armindo Ribeiro Mendes Alberto Tavares da Costa Maria da Assunção Esteves Antero Alves Monteiro Diniz José Manuel Cardoso da Costa