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Proc. nº 78/92
1ª Secção Cons. Rel.: Assunção Esteves
Acordam no Tribunal Constitucional:
I - O 7º Juízo Correccional de Lisboa julgou extinto, por prescrição, o procedimento criminal por crime de açambarcamento imputado a A.
Arquivados os autos, o sr. juiz ordenou, em despacho de 8 de Março de 1988, a devolução àquele das quantias depositadas à ordem do Tribunal na Caixa Geral de Depósitos, correspondentes a caução económica [50.000.00] e caução carcerária [5.000.00] prestadas, e ainda ao produto da venda da mercadoria apreendida [em duas parcelas, de 24.815.40 e 18.000.00]. O despacho remetia para a Caixa Geral de Depósitos a liquidação e pagamento de juros compensatórios devidos.
Foram então emitidos três precatórios cheques, no valor total de Esc. 106.716$00, correspondente à soma daquelas quantias com os juros compensatórios. Estes juros, de Esc. 8.900.00, eram determinados por aplicação da taxa de 1% ao ano, fixada pelo Ministro das Finanças, em razão do artigo
26º, nº 1, do Regulamento da Caixa Geral de Depósitos, Crédito e Previdência, aprovado pelo Decreto nº 694/70, de 31 de Dezembro.
A. propôs, então, no Tribunal Administrativo do Círculo de Lisboa acção de condenação contra o Estado. O fundamento era o de que os juros compensatórios , referidos aos nove anos de duração do processo, não poderiam ser liquidados àquela taxa de 1%, devendo-o antes ser às taxas de 5%, 15% e
23%, segundo o artigo 559º do Código Civil e as Portarias nºs. 447/80, de 31 de Julho, 581/83, de 18 de Maio, e 339/87, de 24 de Abril. Assim, o valor global dos juros era de Esc. 159.847$00 e não o que se achou, de Esc. 8.900$00. E, em resposta à contestação do Ministério Público, o recorrente suscitava a questão de constitucionalidade 'do Decreto [nº 694/70, de 31 de Dezembro] e artigo 26º nº 2 do Regulamento da Caixa'.
A acção foi julgada improcedente, no despacho saneador de 21 de Novembro de 1989.
Deste despacho foi interposto recurso para o Supremo Tribunal Administrativo. De novo o recorrente reiterava a tese de inconstitucionalidade
'do Decreto-Lei nº 694/70, de 31 de Dezembro e do artigo 26º, nº 2, do Regulamento da Caixa Geral de Depósitos', tendo como normas-parâmetro os artigos
16º e 62º da Constituição da República e também o artigo 17º da Declaração Universal dos Direitos do Homem.
O Supremo Tribunal Administrativo, em acórdão de 10 de Outubro de
1991, negou provimento ao recurso. Aí se consignou, no essencial:
'(...) a obrigação de restituir o montante do enriquecimento só existe quando este seja imputável a causa injusta, quer dizer, quando tenha sido
'conseguido sem ter base o direito'.
Não foi isso, porém, que ocorreu no caso vertente, uma vez que o pretenso enriquecimento resultou da aplicação da taxa de juro (de 1%) expressamente prevista na lei.
Com efeito, o Regulamento da Caixa Geral de Depósitos, aprovado pelo Decreto nº 694/70, de 31 de Dezembro, dispõe no nº 1 do seu artigo 26 que
'compete ao Ministro das Finanças, mediante proposta do Conselho de Administração da Caixa, fixar as taxas de juro a abonar aos depósitos obrigatórios, os respectivos limites e os casos em que esse abono não é devido'.
Foi ao abrigo deste preceito que foi fixada em 1% ao ano a taxa de juro dos depósitos obrigatórios, categoria em que se enquadram os depósitos em causa, como resulta do disposto no artigo 10º do Regulamento.
Entende, porém, o ora recorrente que não deveria ter sido aplicada tal taxa, mas, em relação aos períodos temporais que indicou, as taxas de 5%, de
15% e de 23%, fixados no artigo 559 do Código Civil e nas Portarias nºs 447/80,
581/83 e 339/87 e que devem ser considerados revogados ou inconstitucionais o decreto que aprovou o Regulamento da Caixa e o nº 2 do artigo 26 deste último.
Mas não tem razão.
Aquele preceito do Código Civil e as três Portarias invocadas, publicadas ao seu abrigo respeitam a taxas de juros legais ou estipuladas sem determinação de taxa ou quantitativo em matéria contratual.
Ora, no caso vertente, não é disso que se trata.
Com efeito, os depósitos não resultaram de qualquer contrato celebrado com a instituição de crédito, nomeadamente de contrato de depósito, mas sim de imposição legal, constante do preceito especial do artigo 10º do Regulamento da Caixa, no qual se determina que serão efectuadas obrigatoriamente naquela instituição 'os depósitos de terceiros à ordem de entidades de direito público'.
Por serem obrigatórios é que tais depósitos, que a Caixa não pode recusar, são remunerados à taxa de 1% ao ano, nos termos da disposição de carácter especial do nº 1 do artigo 26 do Regulamento e nos termos do artigo 559 do Código Civil e das referidas Portarias, que não revogaram, nem poderiam revogar aquele preceito especial, de harmonia com o que estatui o nº 3 do artigo
7º do mesmo Código.
Tendo os depósitos sido remunerados, como foram, em conformidade com a lei, não se verifica o requisito estabelecido no nº 1 do artigo 473 - falta de causa justa de enriquecimento - o que, só por si, inviabiliza a pretensão do ora recorrente apoiada no preceito'.
E depois:
'Acresce, porém, que nem sequer existiu o alegado enriquecimento do Estado, como é bem de ver.
O nº 2 do artigo 26 do Regulamento, que o recorrente afirma, sem fundamentar, dever ser considerado revogado ou inconstitucional, dispõe que 'os juros calculados aos depósitos obrigatórios existentes na Caixa constituem receita do Estado e devem, depois de liquidados, ser entregues à Fazenda Pública, salvo o disposto no número seguinte'.
Terá sido com base neste preceito, sem se atender à ressalva nele feita relativamente ao nº 3, que o recorrente construiu a sua tese do locupletamento do Estado à sua custa.
Ora, de harmonia com o disposto no ressalvado nº 3 do artigo 26,
'constituem receita das entidades depositantes os juros atribuídos aos depósitos de entidades particulares (...) e os juros que não devam ser entregues ao Tesouro por expressa disposição da lei ou despacho do Ministro das Finanças'.
Os juros dos depósitos obrigatórios que constituem receita do Estado são apenas, como resulta do disposto nos nºs. 1, 2 e 3 do artigo 9º e no artigo 10º do Regulamento, e como aliás é lógico, os juros de dinheiros dos serviços públicos, estabelecimentos e pessoas colectivas de direito público e mais entidades indicadas nos nºs. 1 e 2 do artigo 9º e não os juros dos depósitos feitos com dinheiros de particulares à ordem de entidades de direito público.
Nesta última categoria se enquadram os depósitos em causa, cujos montantes e respectivos juros, calculados à taxa legal aplicável, foram entregues ao recorrente através de precatórios cheque.
Assim sendo, a ter havido enriquecimento com a utilização dos dineiros depositados, tal enriquecimento não beneficiou o Estado, mas a Caixa Geral de Depósitos, entidade jurídica diferente do Estado, não demandada na acção (...)'.
O autor ainda interpôs recurso para o Tribunal Pleno, mas não foi admitido. Depois, recorreu para o Tribunal Constitucional, nos termos do artigo
70º, nº 1, alínea b), da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro. Alegando, concluiu assim:
'1. Em princípio, transitada decisão de absolvição do réu, ou, sempre, de extinção de procedimento criminal, oficiosamente, ou a requerimento do interessado, devem ser-lhe restituídos os objectos, instrumentos, valores eventualmente apreendidos ou depositados.
2. A figura da prescrição do procedimento criminal envolve renúncia do Estado à perseguição do suposto delito, tudo se passando como se não tivesse decorrido processo algum.
3. Apreendidas mercadorias, e prestada caução, tudo deve, nesse caso, ser integralmente devolvido.
4. Mandadas vender aquelas, e depositado o correspondente preço, deve este ser mandado devolver com o valor correspondente ao de então.
5. Prestada caução, de qualquer espécie, deve ser também a mesma devolvida com idêntico valor.
6. Depósitos efectuados em dinheiro só podem ser considerados devolvidos, por igual ou equivalente montante, se se proceder à correcção da desvalorização que entretanto ocorrer.
7. A taxa e os coeficientes, fixados no art. 559º do Código Civil, e Portarias entretanto publicadas - 447/80, 981/83, 339/87 - consubstanciam o critério, reconhecido e imposto pelo Estado, através de um seu órgão de soberania - o Governo - para actualizar os valores monetários temporalmente depreciados.
8. A devolução dos depósitos, acrescida de uma taxa fixada há 30 anos, do tempo em que, inclusivamente, o fenómeno da inflação não tinha relevo, representa autêntica retenção do diferencial da desvalorização monetária entretanto ocorrida.
9. A devolução da quantia depositada, sem atender a este fenómeno e ao previsto suprimento legal de tal alteração de circunstâncias, constitui devolução de valor menor do que aquele que foi depositado.
10. A não ser entregue o diferencial, que reporia os valores depositados ao mesmo nível do tempo dos depósitos, é verdadeira sonegação desse valor patrimonial que pertence ao depositante.
11. Tendo, entretanto, os valores depositados subido, em termos nominais, a recusa da entrega desse diferencial constitui clara defraudação do poder de compra ao depositante, extorsão e apropriação indevida de bens deste.
12. O Estado, ordenante desses depósitos, a não os entregar corrigidos do valor da inflação, conforme as tabelas que fixou, está a locupletar-se com tal diferença.
13. Ninguém pode ser privado da sua propriedade, nomeadamente a financeira, por aplicação de uma taxa de juros compensatórios que, ao tempo da devolução, constitui, mesmo perante novas leis do Estado, a devolução de menos do que aquilo que foi entregue.
14. Só a devolução dos valores nominativos das cauções, acrescidas das taxas legais da desvalorização monetária, constitui devolução integral dos depósitos efectuados.
15. O recorrente tem direito a que lhe sejam devolvidos os depósitos, obrigatoriamente efectuados há 13 anos, acrescidos das taxas fixadas legalmente, como juros compensatórios do fenómeno inflacionário, e que neste espaço de tempo variaram de 5 a 23%.
16. A devolução dos depósitos, à taxa fixa de 1%, é efectivo perdimento dessa diferença a favor do Estado.
17. O Regulamento da C.G.D. - nomeadamente o nº 2 do art. 26º do Decreto-Lei 694/70, de 31 de Dezembro (cf. Decreto-Lei 48.057) - é um preceito inconstitucional por violar os artigos 16º, 62º, 29º nº 6 (parte final) e 266º, todos da C.R.P., e art. 17º da Declaração Universal dos Direitos do Homem.
18. A devolução de valor inferior, ainda que se qualifiquem os depósitos como irregulares, ofende os próprios arts. 559º, 473º, 1206º e 1145º, estes do Código Civil, referidas Portarias, e art. 450º, § 2, do Código de Processo Penal de 1929, e arts. 75º e 76º do Código Penal de 1886 (e arts. dos actuais C.P.P. e C.P., respectivamente, 374º, nº 1, al. c) e 107º).
Revogando o douto acórdão do S.T.A., e declarando a inconstitucionalidade do referido artigo 26º, nº 2, do Decreto-Lei 694/70, e, em consequência, ordenando a reposição ao recorrente dos valores depositados, acrescidos das legais taxas da inflação, farão, Vossas Excelências, Senhores Doutores Juízes do Tribunal Constitucional, como sempre, Justiça!'.
Contra-alegando, o Sr. Procurador-Geral Adjunto neste Tribunal concluiu assim:
'1º Realizado por um particular depósito obrigatório na Caixa Geral de Depósitos, à ordem do tribunal, os juros eventualmente vencidos por tal depósito são integralmente restituídos ao depositante, nos termos do nº 3 do artigo 26º do Regulamento da Caixa Geral de Depósitos (constante do Decreto nº
694/70, de 31 de Dezembro), pelo que, nada tendo o Estado recebido, não pode haver enriquecimento ou locupletamento deste à custa alheia, não sendo portanto aplicável o disposto no artigo 473º do Código Civil;
2º Face ao princípio nominalista, afirmado pelo artigo 550º do Código Civil, não há lugar à aplicação automática de qualquer taxa de correcção monetária, idêntica à da inflação verificada, aquando do cumprimento de obrigação pecuniária;
3º Os depósitos obrigatórios efectuados, nos termos da lei de processo, na Caixa Geral de Depósitos são qualificados como operações bancárias passivas, equiparados em regra aos depósitos à ordem (artigo 9º, nº 4, do referido Regulamento), pelo que, não se invocando mora na restituição das quantias depositadas, não há lugar à aplicação das taxas de juros legais e supletivos, decorrentes do preceituado no artigo 559º do Código Civil e portarias complementares;
4º A norma do artigo 26º, nº 1, do referido Regulamento da Caixa Geral de Depósitos, ao abrigo da qual foi fixada pelo Ministro das Finanças a taxa remuneratória de 1% para os depósitos obrigatórios naquela instituição, não ofende qualquer princípio constitucional, designadamente o da protecção da propriedade privada ou os princípios de protecção da confiança e da proporcionalidade, nem sequer divergindo substancialmente aquela taxa das estabelecidas e praticadas nas instituições de crédito para os depósitos à ordem'.
II - A fundamentação
O recorrente vem construindo uma controvérsia de constitucionalidade durante o processo, sem delimitar, com rigor, a norma ou normas que subentram nessa controvérsia. Refere-se sempre a uma imprecisa e estranha conjunção do Decreto nº 694/70, de 31 de Dezembro, com a norma do artigo 26º, nº 2, que o mesmo Decreto inclui.
A norma do artigo 26º, nº 2 não a considerou o acórdão recorrido do Supremo Tribunal Administrativo aplicável ao caso, como está bem de ver. Esta norma determina que 'os juros calculados aos depósitos obrigatórios existentes na Caixa constituem receita do Estado (...), salvo o disposto no número seguinte'. O número seguinte - que é o nº 3 do artigo 26º - determina quais os juros que constituem receitas das entidades depositantes e não receitas do Estado.
Norma aplicada foi, pois, a do nº 3 do artigo 26º do Decreto nº
694/70, de 31 de Dezembro. O Supremo Tribunal Administrativo convocou-a para afirmar que os juros em causa são os que estão ali previstos, que assim não têm por destino o Estado, e que a haver enriquecimento, só poderia ser da Caixa Geral de Depósitos contra que, afinal, não foi posta a acção ['Assim sendo, a ter havido enriquecimento com a utilização dos dinheiros depositados, tal enriquecimento não beneficiou o Estado, mas a Caixa Geral de Depósitos, entidade jurídica diferente do Estado, não demandada na acção'].
Neste discurso da decisão recorrida do Supremo Tribunal Administrativo, o juízo sobre a validade da norma do artigo 26º, nº 1 e a taxa de 1% que aí se funda, adquire a caracterização de um obiter dictum. Para a decisão recorrida, fosse qual fosse a solução do problema da taxa de juro, ela esbarrava com o facto de dever ser a Caixa, 'pessoa jurídica diferente do Estado', a entidade demandada.
O que, afinal, ali se decide, não é das 'condições da acção'
(Antunes Varela), as quais têm que ver com o bem fundado do direito substantivo, mas dos pressupostos processuais, sendo que se não dá por existente a legitimidade do Estado.
E, então, perante a controvérsia de constitucionalidade, não lograria qualquer eficácia o julgamento do presente recurso.
III - Nestes termos, decide-se não tomar conhecimento do recurso. Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em unidades de conta.
Lisboa, 29 de Abril de 1997 Maria da Assunção Esteves Antero Alves Monteiro Diniz Vítor Nunes de Almeida Alberto Tavares da Costa Maria Fernanda Palma José Manuel Cardoso da Costa