Imprimir acórdão
Processo n.º 702/11
3.ª Secção
Relatora: Conselheira Ana Maria Guerra Martins
(Conselheiro Carlos Fernandes Cadilha)
Acordam na 3.ª Secção do Tribunal Constitucional:
I – Relatório
1. O Ministério Público interpôs recurso, ao abrigo da alínea a) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei n.º 28/82, de 15 de novembro (Lei do Tribunal Constitucional), da sentença do Tribunal do Trabalho de Setúbal, de 15 de junho de 2011, que recusou aplicação à norma da alínea m) do n.º 6 do artigo 12.º da Lei n.º 7/2009, de 12 de fevereiro, que alterou o Código do Trabalho, na versão constante da Declaração de Retificação n.º 21/2009, de 18 de março.
O recurso prosseguiu, tendo o Ministério Público apresentado alegações, que concluiu do seguinte modo:
“1. A Lei n.º 74/98, com as alterações introduzidas pelas Leis n.º 2/2005, de 24 de janeiro, n.º 26/2006, de 30 de junho e n.º 42/2007, de 24 de agosto, define e circunscreve rigorosamente o âmbito em que podem ser feitas retificações aos diplomas legais.
2. Subjacente a um tal quadro jurídico está a preocupação de assegurar que se não alterem diplomas fora do quadro definido pelos requisitos constitucionais e legais que legitimem uma tal alteração.
3. A Declaração de Retificação n.º 21/2009, no entanto, procedeu a alterações substanciais no texto do diploma que, aparentemente, vinha retificar (Lei 7/2009, de 12 de fevereiro, que aprovou o novo Código de Trabalho), designadamente “recuperando” matéria contraordenacional que deixara, entretanto, de vigorar no ordenamento jurídico, por força da versão inicial da referida Lei.
4. Na verdade, relativamente ao presente recurso, havia contraordenações de natureza laboral, que se encontravam contempladas no Código de Trabalho de 2003, aprovado pela Lei 99/2003, de 27 de agosto, bem como na Regulamentação do mesmo Código, aprovada pela Lei 35/2004, de 29 de julho.
5. Posteriormente, certos factos, por força da Lei n.º 7/2009, de 12 de fevereiro, que aprovou o atual Código do Trabalho, na sua versão original (cfr. art. 12.º, n.º 1, alíneas a) e b), da lei preambular que aprovou o novo Código do Trabalho), deixaram de ser considerados “ilícitos”, não podendo, portanto, nenhum tribunal, ou entidade competente, proceder contraordenacionalmente com base nesses factos, após a publicação daquela lei.
6. Com efeito, nos termos do art. 12.º, n.º 3, alínea a), da versão original da Lei 7/2009, o Código de Trabalho de 2003 foi revogado e, nos termos da alínea b) do n.º 1 da mesma disposição, o Regulamento do mesmo Código de Trabalho, também.
7. No entanto, no elenco das exceções, previstas no n.º 6, alínea m), deste mesmo artigo 12.º, excecionaram-se expressamente os artigos 212.º a 280.º, sobre segurança e saúde no trabalho, do Regulamento do Código do Trabalho – Lei 35/2004, devendo, em consequência, a revogação destes preceitos apenas produzir efeitos a partir da entrada em vigor do diploma que regulasse a mesma matéria.
8. Não se fazia, contudo, qualquer referência, na mesma disposição, ao art. 484.º do referido Regulamento, que considerava os factos previstos, no artigo 245.º, como constituindo uma contraordenação grave, pelo que tal preceito ficou abrangido pela revogação genérica do Regulamento do Código de Trabalho, efetuada pelo artigo 12.º, n.º 1, alínea b), da Lei n.º 7/2009.
9. Num terceiro momento, houve, finalmente, uma “inovação” incriminatória (através da repristinação de normas), por meio de uma “retificação” retroativa (cfr. alterações introduzidas ao artigo 12.º, n.º 6, alínea m), da lei preambular que aprovou o novo Código do Trabalho, pela Declaração de Retificação n.º 21/2009, de 18 de março).
10. Ora, uma tal atuação do legislador acaba por infringir, inapelável e negativamente, os princípios da não retroatividade da lei penal (e contraordenacional), da igualdade e da segurança jurídica, inerente ao modelo do Estado de Direito Democrático, protegidos pela Constituição da República Portuguesa (cfr. artigos 2.º, 9.º, alínea b), 13.º e 29.º, nºs. 1, 3 e 4 do texto constitucional).
11. Na verdade, a pretensa “retificação”, com a vultuosa dimensão da que foi efetuada pela Declaração de Retificação n.º 21/2009, de 18 de março de 2009, ultrapassa largamente o âmbito de aplicação que a Constituição autoriza e que a lei rigorosamente delimita para este efeito.
12. Deve, pois, julgar-se inconstitucional a norma vertida na alínea a) do n.º 3 do artigo 12.º do Código do Trabalho, aprovado pela Lei 7/2009, de 12 de fevereiro, na versão constante da Declaração de Retificação n.º 21/2009, de 18 de março de 2009, por violação dos princípios da não retroatividade da lei penal (e contraordenacional), da igualdade e da segurança jurídica, inerente ao modelo do Estado de Direito Democrático, protegidos pela Constituição da República Portuguesa (cfr. artigos 2.º, 9.º, alínea b), 13.º e 29.º, nºs. 1, 3 e 4 do texto constitucional).
A recorrida A., Lda. não apresentou contra-alegações.
Cumpre apreciar e decidir.
II – Fundamentação
2. Em recursos cujo objeto coincide (Acórdãos nºs. 576/09, 584/09, 187/2010, 269/2010 e 270/2010), ou é substancialmente idêntico (Acórdão n.º 6/2010), com o dos presentes autos, o Tribunal Constitucional tem entendido ser inútil o seu conhecimento por considerar que a decisão de recusa de aplicação da Declaração de Retificação n.º 21/2009, de 18 de março de 2009, assenta em fundamentos alternativos, um atinente à sua ilegalidade, por violação do disposto no artigo 5.º, n.º 1, da Lei n.º 74/98, de 11 de novembro, e outro reportado à sua inconstitucionalidade, seja por violação de parâmetros formais de constitucionalidade (artigo 112.º, n.º 1, da Constituição), seja por violação de normas e princípios constitucionais de alcance material ou substancial (princípio da segurança jurídica consagrado no artigo 2.º da mesma Lei Fundamental).
Essa posição foi sintetizada no Acórdão n.º 584/2009, cuja doutrina foi reafirmada noutros arestos, nos seguintes termos:
«É indubitável que a decisão recorrida recusa validade à Declaração de Retificação n.º 21/2009, publicada no Diário da República, I Série, de 18 de março de 2009, por duas ordens de razões. Em primeiro lugar, porque “não cumpre o disposto no artigo 5.º, n.º 1 da Lei n.º 74/98, de 11 de novembro, na versão atualmente em vigor, sendo, por isso, ilegal”. Em seguindo lugar (“ a tanto acresce”), por entender que “esta declaração de retificação padece, também, de inconstitucionalidade, a saber: porque, a coberto de uma retificação, se está a alterar a lei, violando, assim, o disposto no artigo 161º, alínea c), da Constituição da República; e porque qualquer retificação que recupere uma censura contra?ordenacional que não figurava no texto publicado subverte a teleologia do artigo 29º, nº 4, da Constituição da República”.
Verifica-se, pois, que a decisão assenta em fundamentos alternativos, isto é, que a sentença recusou aplicar o conteúdo legal de que a Declaração de Retificação pretendeu dotar a alínea m) do n.º 6 do artigo 12.º da Lei n.º 7/2009, de 12 de fevereiro, com dois fundamentos, um dos quais estranho ao objeto do presente recurso e que, mantendo-se incólume fosse qual fosse o juízo sobre a questão de constitucionalidade, seria suficiente para assegurar o sentido da decisão recorrida.
Vem o Tribunal entendendo que, face à função instrumental do recurso de fiscalização concreta de constitucionalidade, não deve conhecer dos recursos de constitucionalidade quando a decisão recorrida comporte fundamentos alternativos, um dos quais estranho ao objeto do recurso e suficiente para suportar o sentido da decisão. É certo que tais situações surgem, na grande maioria dos casos, em recursos interpostos ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC, mas esse é também o entendimento dominante em recursos interpostos, como o presente, ao abrigo da alínea a) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC (Cf., entre muitos, acórdãos n.º 216/2007, n.º 257/2008, n.º 397/2008, n.º 183/09 e n.º 228/2008, disponíveis em www.tribunalconstitucional.pt).
A esta luz, mesmo que se considere que, tal como a fundamentação da sentença se desenvolve, o juízo de inconstitucionalidade não constitui um mero obiter dictum, o presente recurso não teria utilidade processual, uma vez que, fosse qual fosse a decisão sobre a questão de constitucionalidade, nunca o tribunal a quo admitiria decidir a causa por aplicação do conteúdo da Declaração de Ratificação, uma vez que considera que essa retificação não se conteve nos limites que a lei consente a tal figura.»
Da análise estrutural da decisão de que foi interposto o presente recurso de constitucionalidade, verifica-se que, também no presente caso, nela se alude a um duplo fundamento de ilegalidade e inconstitucionalidade em termos semelhantes ao que justificou, pelas transcritas razões, a decisão de não conhecimento do objeto do recurso proferida nos citados arestos.
Pelas razões invocadas, que se afiguram ser inteiramente transponíveis para o caso sub judicio, não se deve conhecer do objecto do recurso.
III – Decisão
Pelo exposto, decide-se não conhecer do objecto do presente recurso.
Lisboa, 28 de março de 2012.- Ana Maria Guerra Martins – Vítor Gomes – (Vencida, nos termos da declaração aposta ao Acórdão n.º 584/2009). Maria Lúcia Amaral – Carlos Fernandes Cadilha. (vencido nos termos da declaração de voto aposta ao Acórdão n.º 584/2009) – Gil Galvão.