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Procº nº 38/95 Rel. Cons. Alves Correia
Acordam na 2ª Secção do Tribunal Constitucional:
I - Relatório.
1. O Lic. J... interpôs recurso contencioso de anulação perante a 1ª Secção do Supremo Tribunal Administrativo do acórdão do plenário do Conselho Superior do Ministério Público de 2 de Julho de 1991, o qual, na sequência da reclamação por si apresentada para esse órgão do acórdão da Secção Disciplinar do mesmo Conselho de 19 de Março de 1989, lhe manteve a pena de aposentação compulsiva.
A par de diferentes vícios de ilegalidade imputados ao acto recorrido, suscitou o recorrente a inconstitucionalidade da norma constante do artigo 101º, nº 3, da Lei nº 39/78, de 5 de Julho, na redacção que lhe foi dada pelo artigo 3º do Decreto--Lei nº 264-C/81, de 3 de Setembro, por violação do direito à segurança no emprego, condensado no artigo 53º da Constituição.
Por Acórdão de 2 de Dezembro de 1992, o Supremo Tribunal Administrativo negou provimento ao recurso, por
considerar que o acto recorrido não enfermava de qualquer vício de ilegalidade e, bem assim, que aquela norma não padecia de qualquer vício de inconstitucionalidade.
2. Inconformado, interpôs o Lic. J... recurso jurisdicional daquele aresto para o Pleno da 1ª Secção do Supremo Tribunal Administrativo. Nas alegações, invocou o recorrente, inter alia, a inconstitucionalidade das normas constantes do nº 3 do artigo 101º da Lei nº 39/78, na redacção do artigo 3º do Decreto-Lei nº 264-C/81, e do nº 2 do artigo 88º da Lei nº 47/86, de 15 de Outubro, por violação do princípio da necessidade e da proporcionalidade na restrição de direitos, como é indubitavelmente a segurança no emprego, uma vez que não há qualquer previsão constitucional de tal restrição, bem como por infracção ao artigo 30º, nº 4, da Constituição.
Mais uma vez sem êxito, dado que o Pleno da 1ª Secção do Supremo Tribunal Administrativo, por Acórdão de 25 de Outubro de 1994, negou provimento ao recurso e confirmou o acórdão recorrido.
3. Deste aresto foi interposto o presente recurso para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do artigo 70º, nº 1, alínea b), da Lei do Tribunal Constitucional (Lei nº 28/82, de 15 de Novembro), tendo o recorrente, na sequência de convite feito pelo Conselheiro Relator do Supremo Tribunal Administrativo, indicado como seu objecto a questão da inconstitucionalidade das normas constantes dos artigos 101º, nº 3, e 104º, nº 2, da Lei nº 39/78, de 5 de Julho (o primeiro na redacção do artigo 3º do Decreto-Lei nº 264-C/81, de 3 de Setembro), e 88º, nº 2, e 91º, nº 3, da Lei nº 47/86, de 15 de Outubro.
O recorrente conclui as alegações produzidas neste Tribunal do seguinte modo:
'A) O artº 88º nº 2 da Lei nº 47/86 de 15 de Outubro, ao determinar a imediata suspensão do exercício de funções como consequência necessária da classi- ficação de medíocre, afasta da carreira quem tenha obtido tal classificação, antes de qualquer inquérito e menos ainda de processo disciplinar; B) Traduzindo-se aquele preceito na aplicação duma pena disciplinar tipificada como consequência duma classificação de serviço; C) Não são asseguradas garantias de defesa - com directa violação do nº 3 do artº 269º da Constituição da República; D) Constituindo tal medida uma restrição excessiva, desproporcionada e sem qualquer justificação - o inquérito pode concluir pela existência de razões não disciplinares e até não atribuíveis ao magistrado classificado - violando o direito à segurança no emprego; E) O artº 88º nº 2 reproduz o artº 101º nº 3 da Lei nº 39/78 na redacção dada pelo Decreto-Lei nº 264-C/81 de 3 de Setembro.
Preceitos que deverão ser considerados inconstitu- cionais'.
Como reforço das suas alegações apresentou o recorrente um Parecer Jurídico subscrito pelo Prof. Doutor Jorge Miranda.
Por sua vez, o recorrido não apresentou alegações.
4. Corridos os vistos legais, cumpre, então, apreciar e decidir, começando-se pela delimitação do objecto do presente recurso de constitucionalidade.
II - Fundamentos.
5. Tendo o recurso do Acórdão do Pleno da 1ª Secção do Supremo Tribunal Administrativo de 25 de Outubro de 1994 sido interposto ao abrigo da alínea b) do nº 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional, importa averiguar a existência dos três pressupostos processuais específicos deste tipo de recurso de constitucionalidade:
- que a incontitucionalidade da norma tenha sido suscitada durante o processo
(pelo recorrente);
- que tal norma seja aplicada na decisão impugnada;
- que não haja recurso ordinário dessa decisão.
Está perfeitamente estabelecido na jurisprudência do Tribunal Constitucional que suscitar a inconstitucionalidade 'durante o processo' implica
- salvo casos excepcionais - invocar tal questão num momento em que se não encontre esgotado o poder jurisdicional do tribunal a quo, de forma a que este se possa pronunciar sobre tal questão. Em consequência, as questões de inconstitucionalidade colocadas, pela primeira vez, no requerimento de interposição do recurso para o Tribunal Constitucional - ou nas alegações aqui produzidas - não preenchem, em princípio, aquele pressuposto (cfr. o Acórdão nº
591/95, ainda inédito; o Acórdão nº 318/90, publicado no Diário da República, II Série, de 15 de Março de 1991; o Acórdão nº 94/88, publicado no Diário da República, II Série, de 22 de Agosto de 1988; e o Acórdão nº 90/85, publicado no Diário da República, de 11 de Julho de 1985).
Em face do exposto, as questões de inconstitucio- nalidade das normas constantes dos artigos 104º, nº 2, da Lei nº 39/78, de 5 de Julho, e 91º, nº 3, da Lei nº 47/86, de 15 de Novembro, não podem fazer parte do objecto do presente recurso de constitucionalidade, desde logo porque foram suscitadas, pela primeira vez, no requerimento de interposição do recurso para este Tribunal.
Por sua vez, a questão da inconstitucionalidade da norma constante do nº 2 do artigo 88º da Lei nº 47/86, de 15 de Outubro - cujo conteúdo não é substancialmente diferente do da norma do artigo 101º, nº 3, da Lei nº 39/78, na redacção conferida pelo artigo 3º do Decreto-Lei nº 264-C/81, de 3 de Setembro - também não pode fazer parte do objecto do presente recurso, já que aquela norma não foi, nem poderia ter sido aplicada pelo acórdão recorrido. Com efeito, o período de tempo abrangido pela classificação de serviço atribuída ao recorrente foi o ocorrido entre 15 de Janeiro de 1981 e 12 de Novembro de 1982, isto é, um período em que ainda não existia a Lei nº 47/86, de 15 de Outubro, mas apenas a Lei nº 39/78, de 5 de Julho, primeiro na redacção originária e depois na que lhe foi conferida pelo Decreto-Lei nº 264-C/81, de 3 de Setembro.
O objecto do presente recurso de constitucionalidade circunscreve-se, por isso, à questão da inconstitucionalidade da norma constante do artigo 101º, nº 3, da Lei nº 39/78, de 5 de Julho, na redacção que lhe foi dada pelo artigo 3º do Decreto-Lei nº 264-C/81, de 3 de Setembro.
Analisemos, então, a questão de inconstitucionalidade mencionada.
6. No período temporal a que respeita a classificação de serviço do recorrente, estava em vigor a Lei Orgânica do Ministério Público, aprovada pela Lei nº 39/78, de 5 de Julho, na redacção que lhe foi dada pelo Decreto-Lei nº
264-C/81, de 3 de Setembro.
A referida lei, depois de prescrever no seu artigo 100º que 'os procuradores da República e os delegados do procurador da República são classificados pelo Conselho Superior do Ministério Público, de acordo com o seu mérito, de Muito Bom, Bom com distinção, Bom, Suficiente e Medíocre', determinava no seu artigo 101º, sob a epígrafe critérios de classificação e efeitos, o seguinte:
'1- Na classificação deve atender-se ao modo como os magistrados desempenham a função, à sua preparação técnica e à sua categoria intelectual e idoneidade cívica.
2- O magistrado classificado de Suficiente ou Medíocre não pode ser transferido a não ser em virtude do sexénio, por motivo de natureza disciplinar ou por conveniência de serviço.
3- A classificação de Medíocre implica a suspensão do magistrado e a instauração de inquérito por inaptidão para o exercício do cargo.
4- Quando, em processo disciplinar instaurado com base no inquérito, se concluir pela inaptidão do magistrado mas pela utilidade da sua permanência na função pública, pode, a requerimento do interessado, substituir-se a aplicação das penas de aposentação compulsiva ou de demissão pela colocação na situação de disponibilidade.
5- No caso previsto nos números anteriores, o processo acompanhado de parecer fundamentado, é enviado ao Ministério da Justiça para efeitos de colocação do interessado em lugar compatível de serviços dependentes deste Ministério; a homologação do parecer pelo Ministro da Justiça habilita o magis- trado para o ingresso nas carreiras de conservador e notário e para os cargos de secretário judicial e escrivão de direito'.
[Registe-se, entre parêntesis, que a norma do nº 2 do artigo 101º foi declarada inconstitucional, com força obriga- tória geral, na parte em que permitia que magistrados classi- ficados com Suficiente fossem transferidos por conveniência de serviço, pela Resolução do Conselho da Revolução nº 189-A/82
(publicada no Diário da República, I Série, nº 247, de 25 de Outubro de 1982), emitida com base no Parecer nº 33/82 da Comissão Constitucional (in Pareceres da Comissão Constitucio- nal,Vol. 21º, p. 107 ss.)].
A disposição transcrita do nº 3 do artigo 101º da Lei Orgânica do Ministério Público determina que, por efeito da classificação de Medíocre - a mais baixa da escala classificativa -, o magistrado seja suspenso e seja instaurado um inquérito por inaptidão para o exercício do cargo. Os efeitos imediatos da classificação de Medíocre são, de acordo com aquela norma, a suspensão do exercício de funções e a instauração de inquérito 'por inaptidão para o exercício do cargo'. O inquérito - que se destina a apurar as razões ou as causas da classificação negativa - pode, por seu lado, conduzir à instauração de processo disciplinar. A abertura ou não de processo disciplinar depende dos resultados a que se chegar no inquérito.
É este, de facto, o sentido do nº 4 do artigo 101º, quando utiliza a expressão 'processo disciplinar instaurado com base no inquérito'. Finalmente, o processo disciplinar pode concluir, ou não, pela inaptidão do magistrado, com a consequente aplicação das penas de aposentação compulsiva ou de demissão, ou, no caso de se concluir pela utilidade da sua permanência na função pública, a colocação do magistrado na situação de disponibilidade (cfr. os nºs. 4 e 5 do artigo 101º). Resulta, assim, dos nºs. 3 e 4 do artigo 101º que a decisão sobre a inadaptação do magistrado para o exercício do cargo não é uma consequência directa e necessária da atribuição da classificação de Medíocre, mas algo a que só pode chegar-se em resultado de processo disciplinar (cfr., neste sentido, M. Leal Henriques, Procedimento Disciplinar, 2ª ed., Lisboa, Rei dos Livros, 1988, p. 275).
Esta é a interpretação que se afigura correcta das normas dos nºs 3 a 5 do artigo 101º da Lei nº 39/78, de 5 de Julho, na versão decorrente do artigo 3º do Decreto-Lei nº 264-C/81, de 3 de Setembro. Como sublinha Jorge Miranda no Parecer que foi junto aos autos, 'a classificação provoca suspensão e pode estar na origem de um iter em que surja um juízo de inaptidão. Mas a suspensão é medida cautelar e seguem-se um inquérito e, se assim se entender necessário, um processo disciplinar, um e outro procedimentos dotados de toda a autonomia; nem poderia, em Estado de Direito, haver uma presunção desfavorável e de carácter sancionatório sem prévia condenação'. Ainda segundo o mesmo autor, não há um encadeamento mecânico desde a classificação à sujeição a certa pena, seja a de aposentação compulsiva, a de demissão ou a de colocação na situação de disponibilidade. 'Precisamente porque a classificação não está revestida dessa virtualidade é que se prevêem o inquérito e o processo disciplinar. E a cada momento correspondem regras próprias, diferentes intervenções, juízos independentes e efeitos adequados'.
A interpretação acabada de referir das normas constantes dos nºs. 3 a 5 do artigo 101º da Lei nº 39/78, na redacção do Decreto-Lei nº 264-C/81, foi também a adoptada no Acórdão da 1ª Secção do Supremo Tribunal Administrativo de
2 de Dezembro de 1992 e, por remissão para este, pelo acórdão aqui sob recurso
(o Acórdão do Pleno da 1ª Secção do Supremo Tribunal de 25 de Outubro de 1994). Pode ler-se, com efeito, naquele aresto, em determinado passo:
«O que se encontra em jogo é a permanência do visado no seio da magistratura do Ministério Público, já que, no processo disciplinar a instaurar, poderá ficar demonstrada a aptidão do inspeccionado para o desempenho de quaisquer outras funções públicas de menor grau de exigência e melindre e responsabilidade;
a instauração do processo, consequente da classi- ficação de 'Medíocre' não tem, pois, como consequência necessária o afastamento do apreciado da função pública. Consequência necessária e imediata é a instauração de inquérito com a concomitante suspensão do exercício efectivo de funções, de resto plenamente justificada face à presunção aludida de inaptidão para o exercício do cargo. E, de qualquer modo, a classi- ficação do mérito do inspeccionado não constitui uma
'pena', mas sim uma apreciação de carácter funcional de que a lei faz decorrer determinadas consequências de carácter disciplinar e estatutário - inquérito e suspensão imediata e processo disciplinar subsequente, podendo este desembocar numa medida de carácter expulsivo (aposentação compulsiva ou demissão) ou, eventualmente, na colocação do visado em qualquer outra função pública».
Aqui chegados, é ocasião de perguntar: violará a norma constante do nº 3 do artigo 101º acima transcrito, com o sentido que vem de ser exposto, os artigos 269º, nº 3, e 53º da Constituição, como sustenta o recorrente? O Tribunal entende que não, pelas razões que, sucintamente, se vão expor.
7. Na óptica do recorrente, a norma constante do artigo 101º, nº.3, da Lei nº 39/78, na redacção introduzida pelo Decreto-Lei nº 264-C/81, ao determinar a imediata suspensão do exercício de funções como consequência necessária da classificação de Medíocre, afasta da carreira quem tenha obtido tal classificação, antes de qualquer inquérito e menos ainda de processo disciplinar, traduzindo-se, por isso, na aplicação de uma pena disciplinar tipificada como consequência de uma classificação de serviço.
Sendo assim, tal norma, na opinião do recorrente, não assegura as garantias de defesa, pelo que viola o artigo 269º, nº 3, da Constituição.
Não assiste, porém, razão ao recorrente.
Já vimos que aquela norma não tem o sentido sugerido pelo recorrente, nem foi interpretada e aplicada pelo acórdão recorrido com o sentido que ele lhe imputa. Se a atribuição da classificação de serviço de Medíocre tivesse como consequência necessária e automática o 'afastamento' do magistrado do serviço, com carácter definitivo e com perda total e por tempo indeterminado do vencimento, então estaríamos perante a aplicação antecipada de uma pena (e de uma pena revestida de especial gravidade), isto é, perante a aplicação de uma pena, sem precedência de processo disciplinar. Numa hipótese dessas, a norma questionada pelo recorrente violaria o princípio da presunção de inocência do arguido, plasmado no artigo 32º, nº 2, da Constituição - princípio esse que não se circunscreve aos domínios penal e processual penal, antes é aplicável, em geral, aos procedimentos sancionatórios de natureza administrativa, designadamente ao procedimento disciplinar (cfr., neste sentido, Giorgio Pagliari, Profili Teorici della Sanzione Amministrativa, Padova, Cedam, 1988, p.
279,280; E. Garcia de Enterría/T.-Ramón Fernández, Curso de Derecho Administrativo, II, 3ª ed.,Madrid, Civitas,1991, p. 166, 167; e J.J. Gomes Canotilho/Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 3ª ed., Coimbra, Coimbra Editora, 1993, p. 947) - e, bem assim, o princípio das garantias de defesa, consagrado no artigo 269º, nº
3, da Lei Fundamental.
O sentido da norma do nº 3 do artigo 103º da Lei nº 39/78, na versão decorrente do Decreto-Lei nº 264-C/81, é totalmente diverso. Da atribuição da classificação de serviço de Medíocre ao magistrado do Ministério Público apenas resulta a suspensão do mesmo e a instauração de inquérito por inaptidão para o exercício do cargo. Essa suspensão é uma suspensão cautelar ou preventiva, que tem como fundamento a existência de indícios suficientes, recolhidos na inspecção, de que o magistrado do Ministério Público a quem tenha sido atribuída a classificação de Medíocre não possui as qualidades humanas e profissionais necessárias para o desempenho das funções de relevante interesse público cometidas pela Constituição e pela lei ao Ministério Público (cfr. os artigos
221º, nº 1, da Constituição e 3º da Lei Orgânica do Ministério Público), que tem um período de duração limitado e não implica a perda do tempo correspondente à sua duração para efeitos de remuneração, antiguidade e aposentação.
De facto, a suspensão cautelar ou preventiva referida no nº 3 do artigo 101º da Lei nº 39/78 não pode exceder 90 dias (cfr. o artigo 188º, nº 2, da Lei nº 39/78, aplicável por força do artigo 204º da mesma lei - esse prazo actualmente também não pode exceder 90 dias, mas estes podem ser prorrogados mediante justificação por mais 30 dias, nos termos do nº 3 do artigo 171º da Lei nº 47/86, de 15 de Outubro) e não tem os efeitos da pena disciplinar de suspensão de exercício, isto é, não comporta a perda do tempo correspondente à sua duração para efeitos de remuneração, antiguidade e aposentação (cfr. o citado artigo 188º, nº 2, e 164º, nº 1, da Lei nº 39/78).
Neste contexto, que é o de a suspensão do magistrado do Ministério Público ser uma medida de natureza cautelar e não uma sanção (cfr. Marcello Caetano, Manual de Direito Administrativo, Vol. II, 9ª ed., Coimbra, Almedina,
1980, p. 841), que só pode ser utilizada no caso de se verificarem os pressupostos definidos na lei (a obtenção da classificação negativa de Medíocre), com duração temporal limitada e que não afecta a remuneração e a contagem do tempo para efeitos de antiguidade e aposentação do magistrado, a norma questionada pelo recorrente não viola o princípio constitucional da
'presunção da inocência do arguido' [cfr. E. Miguez Ben, Suspension Provisional del Fun- cionario «Versus» Presuncion de Inocencia:Ultima Jurisprudencia, in Revista de Administracion Publica, 108 (1985), p. 242, e F. Lopez Ramón, Limites Constitucionales de la Autotutela Administrativa,in Revista de Administracion Publica, 115 (1988), p. 82]. E não infringe também o princípio das garantias de defesa do arguido em processo disciplinar, previsto no artigo 269º, nº 3, da Constituição, desde logo porque a decisão de inaptidão para o exercício do cargo apenas é tomada na sequência de processo disciplinar, estando neste garantidos todos os direitos de audiência e de defesa do magistrado visado. Acresce que este é, inclusive, chamado a pronunciar-se sobre o relatório da inspecção, podendo sobre ele fornecer os elementos que entender convenientes.
8. Segundo o recorrente, a norma aqui em causa encerra uma restrição excessiva, desproporcionada e sem qualquer justificação ao direito à segurança no emprego, consagrado no artigo 53º da Constituição, tanto mais que o inquérito pode concluir pela existência de razões não disciplinares e até não atribuíveis ao magistrado classificado.
Também neste ponto a razão não está com o recorrente.
O artigo 53º da Constituição garante aos trabalhadores a segurança no emprego, proibindo os despedimentos sem justa causa ou por motivos políticos ou ideológicos. Trata-se de um direito, liberdade e garantia que abrange todo 'o trabalhador subordinado, ou seja aquele que trabalha ou presta serviço por conta e sob direcção e autoridade de outrem, independentemente da categoria deste
(entidade privada ou pública) e da natureza jurídica do vínculo (contrato de trabalho privado, função pública, etc.)'. Cfr. J.J. Gomes Canotilho/Vital Moreira, ob. cit., p. 286. Uma das vertentes mais importantes do direito à segurança no emprego é o direito à manutenção do emprego, isto é, 'o direito de não ser privado dele', através da proibição de despedimentos sem justa causa - direito esse que,no que respeita aos magistrados do Ministério Público, tem uma expressão particular no artigo 221º, nº 3, da Constituição, enquanto aí se prevê a proibição da sua transferência, suspensão, aposentação, ou demissão senão nos casos previstos na lei.
O direito à segurança no emprego, mesmo na dimensão que reveste no caso dos magistrados do Ministério Público, não protege o trabalhador apenas contra despedimentos, isto é, contra cessações da relação jurídica de emprego sem justa causa. Garante também contra quaisquer actos praticados sem justa causa pela entidade empregadora que se traduzam no impedimento do exercício das funções por parte do trabalhador ou no seu afastamento do emprego, como, por exemplo, a suspensão do trabalhador. Como sublinham J.J. Gomes Canotilho/Vital Moreira, 'o direito à segurança no emprego não garante apenas a permanência da relação de trabalho, mesmo contra a vontade do empregador, antes envolve ainda protecção contra figuras como a suspensão do contrato de trabalho, redução do horário de trabalho e suspensão da prestação de trabalho, pois todas estas figuras afectam aquele direito, pelo que, no caso de serem admitidas, a sua aplicação carece igualmente de 'justa causa' '(cfr. ob. cit., p. 289).
A delimitação intensional e extensional do conceito de 'justa causa' não suscita a unanimidade entre os especialistas. Segundo alguns, o conceito constitucional de justa causa é susceptível de cobrir factos, situações ou circunstâncias objectivas, não se limitando à noção de justa causa disciplinar, que está aceite no nosso direito do trabalho desde 1976, proibindo apenas os despedimentos arbitrários, isto é, sem motivo justificado ou ad nutum. Outros, ao invés, partindo de uma 'densificação semântica' do conceito constitucional de
'justa causa' que privilegie a história dos trabalhos prepa- ratórios e a preocupação do legislador constituinte de proscrever os despedimentos com base em motivo atendível, previstos na lei dos despedimentos de 1975, entendem que a
'justa causa' referida no artigo 53º é fundamentalmente uma 'justa causa' disciplinar, isto é, baseada num comportamento culposo do trabalhador, não deixando, no entanto, de admitir que a Constituição não veda em absoluto ao legislador ordinário a consagração de certas causas de rescisão unilateral do contrato de trabalho pela entidade patronal com base em motivos objectivos, desde que as mesmas não derivem de culpa do empregador ou do trabalhador e que tornem praticamente impossí- vel a subsistência do vínculo laboral (cfr., sobre estes dois entendimentos do conceito constitucional de 'justa causa' do despedimento, o Acórdão deste Tribunal nº 64/91, publicado Diário da República, I Série-A, nº 84, de 11 de Abril de 1991, e a bibliografia aí citada).
Referido, em termos muito sintéticos, o sentido e alcance do direito
à segurança no emprego, condensado no artigo
53º da Lei Fundamental, já se antevê que a norma constante do nº 3 do artigo
101º da Lei nº 39/78, na redacção conferida pelo artigo 3º do Decreto-Lei nº
264-C/81, não colide com aquele pre- ceito constitucional. A suspensão do magistrado do Ministério Público, resultante da atribuição de Medíocre na classificação de serviço, é, de facto, uma medida restritiva do direito à segurança no emprego do magistrado. Ela tem, no entanto, como base uma 'justa causa', traduzida na circunstância de ao magistrado do Ministério Público ter sido atribuída uma classificação de serviço negativa, da qual resultam elementos individualizadores suficientes da ausência das qualidades humanas e profissionais necessárias para o exercício das suas funções - funções de relevante interesse público, que consistem na representação do Estado, no exercício da acção penal e na defesa da legalidade democrática e dos interesses que a lei determinar (cfr. o artigo 221º, nº 1, da Constituição) -, em termos tais que a sua manutenção no cargo implicaria um grave desprestígio da magistratura do Ministério Público e, em último termo, do próprio poder judicial
(cfr., neste sentido, o Acórdão do Conselho Consultivo da Procuradoria-Geral da República de 11 de Dezembro de 1979, transcrito por M. Leal Henriques, ob. cit., p. 273-276).
A norma impugnada pelo recorrente não é também uma medida restritiva do direito à segurança no emprego desne- cessária, desadequada e desproporcionada, não violando, por isso, o disposto no artigo 18º, nº 2, da Constituição, nem o princípio do Estado de direito, plasmado nos artigos 2º e 9º, alínea b),da Lei Fundamental. Na verdade, a suspensão do magis- trado do Ministério Público é, com se viu, uma medida cautelar ou preventiva que tem um período de duração limitado e que não coenvolve a perda de quaisquer direitos do magistrado, não sendo, por isso, uma medida excessivamente onerosa para o visado. Ela apresenta-se, além disso, como uma medida necessária e adequada para a satisfação do interesse público acima caracterizado.
É certo que, depois de o magistrado do Ministério Público ser suspenso do exercício de funções em consequência da obtenção da classificação de Medíocre, pode concluir-se, em resultado do inquérito ou do processo disciplinar, pela não inaptidão do mesmo magistrado para o exercício das suas funções. Todavia, se isso acontecer - hipótese muito rara, tendo em conta os elementos a considerar nas inspecções, o rigor e o profissionalismo com que estas são feitas e ainda a obrigatoriedade da audição do magistrado sobre o relatório da inspecção, podendo sobre este o visado fornecer os elementos que entender convenientes (cfr. os artigos 100º a 104º da Lei nº 39/78 e os artigos
87º a 91º da Lei nº 47/86, de 15 de Outubro) -, terá de ser levado à conta do
'risco' que vai implicado em todas as decisões administrativas, em especial nas decisões complexas, o qual, embora em grau controlado, não pode deixar de ser assumido em homenagem à realização do interesse público.
Há, assim, que concluir que a norma constante do nº 3 do artigo 101º da Lei nº 39/78, de 5 de Julho, na redacção que lhe foi dada pelo artigo 3º do Decreto-Lei nº 264-C/81, de 3 de Setembro, não é inconstitucional.
III - Decisão.
9. Nos termos e pelos fundamentos expostos, decide-se negar provimento ao recurso e, em consequência, confirmar o acórdão recorrido, na parte impugnada.
Lisboa, 21 de Janeiro de 1997 Fernando Alves Correia Messias Bento Guilherme da Fonseca Bravo Serra Luis Nunes de Almeida