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Proc.Nº 699/95 ACÓRDÃO Nº327/97
Sec. 1ª
Rel. Cons. Vitor Nunes de Almeida
Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional:
I - RELATÓRIO
1. - A. demandou, no 9º Juízo Cível de Lisboa, B. com vista a que fosse proferida sentença que declarasse arrendado à Autora o ......º andar esquerdo do prédio com o nº ......, situado na ..........., em
............, pela renda mensal de 29 682$00, por entender assistir-lhe o direito à celebração de novo arrendamento, logo pedindo a desaplicação, por inconstitucionalidade orgânica, do artigo 92º do RAU. A sentença julgou a acção parcialmente procedente, condenando a Ré a reconhecer à Autora a sua qualidade de arrendatária habitacional pela renda indicada, mas fixou para o respectivo contrato a duração limitada mínima de 5 anos, «ao abrigo do disposto no artigo
98º, nº 2, do RAU ex vi artº 92º».
Depois de a Relação, quanto à questão de constitucionalidade suscitada, ter julgado improcedente o recurso da Autora, veio esta pedir revista do correspondente acórdão, que foi negada pelo Supremo Tribunal de Justiça.
2. - É da decisão deste Supremo Tribunal que vem agora interposto recurso ao abrigo da alínea b) do nº 1 do artigo 70º da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro (Lei do Tribunal Constitucional), o qual tem por objecto o nº
1 do artigo 92º do Regime do Arrendamento Urbano, aprovado pelo Decreto-Lei nº
321-B/90, de 15 de Outubro (RAU), conforme a agora recorrente veio dizer ao processo, em reposta ao convite que lhe foi endereçado pelo relator nos termos do artigo 75º-A da LTC.
Neste Tribunal apresentaram alegações as duas partes, concluindo a recorrente A. da forma seguinte:
4.1. A alínea h) do artº 2º da autorização legislativa constante da Lei
42/90 de 10 de Agosto, autorizou o Governo a instituir, no novo diploma legal que viesse a publicar ao abrigo dessa autorização, 'a liberdade de estipular
[i.e. das partes estipularem] limites certos à duração efectiva dos arrendamentos futuros'.
4.2. O Governo ao impor um limite certo à duração dos contratos celebrados em virtude do direito a novo arrendamento, quando a lei de autorização legislativa [alínea h) citada] apenas previa esse limite como possível no âmbito da liberdade de estipular das partes (e não do Governo...), excedeu claramente a autorização legislativa.
4.3. Pelo exposto, o artº 92º nº 1 do RAU viola a alínea h) do artº 2º da Lei 42/90, bem como, algumas das disposições constitucionais referidas no preâmbulo desta lei, ou seja, os artigos 164º alínea e) e 168º nº 1 alínea h) e nº 2 da Constituição da República.
4.4. Deve, por isso, a douta decisão recorrida ser revogada e substituída por outra que declare a inconstitucionalidade do artº 92º nº 1 do RAU e retire ao contrato de arrendamento objecto desta acção o limite certo de 5 anos, sem prejuízo da sua sujeição ao regime de renda condicionada, a qual deve manter-se.'
Contrária foi a tese sustentada pela recorrida, segundo a qual a norma posta em crise não padece do vício de inconstitucionalidade apontado.
Corridos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.
II - FUNDAMENTOS:
3. - Nos presentes autos, vem questionada a conformidade constitucional da norma contida no nº 1 do artigo 92º do Regime do Arrendamento Urbano (RAU), aprovado pelo Decreto-Lei nº 321-B/90, de 15 de Outubro, cujo teor
é o seguinte:
Artigo 92º Duração Limitada
1. Aos contratos celebrados por força do exercício do direito a novo arrendamento aplica-se o regime de duração limitada previsto e regulado nos artigos 98º e seguintes, sendo o primeiro arrendamento sujeito ao regime de renda condicionada.
No entendimento da recorrente, tal norma viola a alínea h) do artigo 2º da Lei nº 42/90, de 10 de Agosto, que é a Lei de Autorização Legislativa ao abrigo da qual foi elaborado o Decreto-Lei que introduz o RAU no ordenamento jurídico, bem como viola o disposto na alínea e) do artigo 164º,
(competência da Assembleia da República para conferir ao Governo autorizações legislativas), e o artigo 168º, nº 1, alínea h), e nº 2, todos da Constituição
(estabelece a competência exclusiva da Assembleia da República para legislar, salvo autorização ao Governo, sobre o regime geral do arrendamento rural e urbano -alínea h) - e o nº2, determina que as leis de autorização legislativa devem definir o objecto, o sentido, a extensão e a duração da autorização)
Segundo a recorrente, o Governo terá excedido
'claramente a autorização legislativa' cujo artigo 2º, na sua alínea h), invocada como parâmetro de validade do Decreto-Lei autorizado, dispõe como segue:
Artigo 2º As alterações a introduzir ao abrigo da presente autorização legislativa devem obedecer às directivas seguintes:
....................................................
h) Liberdade de estipular limites certos à duração efectiva dos arrendamentos futuros.
Vejamos.
4. - No caso concreto, o primeiro arrendatário de um contrato celebrado em 2 de Dezembro de 1910 faleceu em 24 de Fevereiro de 1957, tendo transmitido o direito de arrendamento a sua filha, a qual veio a falecer em 21 de Janeiro de 1991. A ora recorrente é neta daquele primeiro arrendatário.
Como se escreve no acórdão sindicado, 'existe trânsito em julgado quanto ao reconhecimento do direito da autora à celebração do novo arrendamento, no regime de renda condicionada, do montante mensal de 29.682$00 e relativamente ao andar identificado nos autos'.
Logo de seguida precisa-se, na mesma decisão, que 'a autora, como se viu, apenas discorda e impugna o acórdão recorrido que confirmou a decisão da 1ª instância que fixou o limite de 5 anos ao contrato de arrendamento'.
Neste Tribunal, sem alterar o sentido da argumentação que já desenvolvera nas instâncias comuns, entende a recorrente que a Lei nº
42/90 não concedeu ao Governo quaisquer poderes para alterar o regime dos contratos celebrados em virtude do direito a novo arrendamento 'sendo literal e substancialmente omissa, isto é, completamente omissa, em quaisquer normas que se refiram directa ou indirectamente ao regime desses contratos'. Na óptica da recorrente, a matéria relativa aos contratos celebrados em virtude do direito a novo arrendamento era já objecto de tratamento específico na Lei nº 46/85, de 20 de Setembro, que previa para essas situações o regime de renda condicionada e
'sem sujeição a quaisquer limites na sua renovação automática - portanto, subtraído à liberdade de estipulação das partes' (2.1. das alegações). 'A liberdade de estipular limites certos à duração efectiva dos arrendamentos futuros, em que se baseia a limitação de novos contratos a um prazo de 5 anos, só podia ser estabelecida para os novos contratos em que as partes tivessem plena liberdade de estipular' (2.14. das alegações), contratos esses que, é legítimo deduzir-se, seriam apenas os contemplados nos artigos 98º e seguintes do RAU. O regime dos contratos celebrados com base em direito a novo arrendamento, cujo conteúdo não se encontrava sujeito à liberdade de estipulação das partes não estará abrangido na autorização (3.2 das alegações).
Será, de facto, assim?
5. - Quando o RAU entrou em vigor, em data anterior
àquela em que se constituiu o direito que a recorrente fez valer em tribunal e que lhe foi reconhecido, o regime dos contratos celebrados com base no direito a um novo arrendamento encontrava-se disciplinado pela Lei nº 46/85, de 20 de Setembro. O direito a um novo arrendamento era conferido às pessoas referidas nas várias alíneas do nº 1 do artigo 28º dessa Lei, e a renda a convencionar seguia o regime das rendas condicionadas (artigo 7º, nº 1). O contrato era um contrato de prorrogação obrigatória, automaticamente renovável, só podendo ser denunciado nos casos e nas condições previstas no artigo 29º. Só quanto aos prédios urbanos construídos para habitação que à data da entrada em vigor dessa Lei se encontrassem comprovadamente aptos a ser habitados através da competente licença de habitabilidade, ou que nos dois anos imediatos viessem a encontrar-se nessa situação e que nunca tivessem sido objecto de arrendamento, seria aplicável um regime especial cuja característica mais relevante residia precisamente na faculdade conferida aos senhorios de, sem mais, os poderem denunciar 'para o termo do respectivo prazo quando a duração convencionada do mesmo for igual a 5 anos' (artigo 32º, nº 1).
Com o RAU, o legislador veio admitir que nos contratos a celebrar futuramente as partes possam estipular um prazo, que não poderá ser inferior a 5 anos, para a duração efectiva dos arrendamentos urbanos para habitação desde que a respectiva cláusula seja inserida no texto escrito do contrato, assinado pelas partes (artigo 98º, nºs 1 e 2). Nesses contratos a denúncia pelo senhorio para o fim do prazo convencionado obsta à respectiva renovação automática (nºs 2 e 1 do artigo 100º). Este é o regime que o RAU manda aplicar aos contratos 'celebrados por força do exercício do direito a novo arrendamento' (nº 1 do artigo 92º), sendo que o primeiro arrendamento fica sujeito ao regime de renda condicionada (mesmo número).
A posição da recorrente é a de que só os arrendamentos futuros regulados pelo artigo 98º e seguintes se encontrarão a coberto da autorização legislativa concedida pela Lei nº 42/90, a qual não abrange os contratos celebrados com base em direito a novo arrendamento, basicamente porque quanto a estes não admitia a lei anteriormente em vigor liberdade de estipulação das partes quanto à respectiva duração efectiva.
Mas, diga-se desde já, que esta tese não tem qualquer base de sustentação.
Com efeito, a alínea h) do artigo 2º da Lei de autorização, ao aludir a arrendamentos futuros, não estabelece qualquer distinção entre contratos a celebrar com base em direito a novo arrendamento e outros contratos futuros. Todos eles são arrendamentos futuros. A distinção que, neste domínio largamente trabalhado pela doutrina e pela jurisprudência, foi introduzida pelo legislador parlamentar foi a distinção entre «arrendamentos futuros», conceito que utilizou na alínea h) transcrita, e transmissão dos arrendamentos já existentes, entre vivos, na alínea d), e por morte, na alínea n). Ninguém o poderá censurar por ter recorrido a uma linguagem de rigor técnico, antes pelo contrário, até porque desta forma contribuiu para a adequada delimitação dos poderes normativos que conferiu ao Governo.
Que, neste particular, o legislador soube exprimir o seu pensamento em termos adequados (nº 3 do artigo 9º do Código Civil), é algo que não parece poder ser posto em dúvida. Designadamente não autonomizou, de entre os 'arrendamentos futuros' aquelas situações específicas em que os novos contratos têm por pressuposto contratos anteriores cuja cessação se verificara. Por outro lado não equiparou estas últimas situações às de transmissão da posição contratual do anterior inquilino.
É o legislador autorizado que vem distinguir entre
'contratos celebrados por força do exercício do direito a um novo arrendamento'
(artigos 90º e seguintes do RAU) e contratos ditos de 'duração limitada', designação esta utilizada na epígrafe da Subsecção que abrange os artigos 98º e seguintes do RAU, e que são contratos novos no sentido de não terem conexão com outros anteriores. Aliás, no contexto do diploma e quanto ao conteúdo dos contratos a celebrar, o alcance da distinção quase se limita apenas ao estabelecimento do regime de renda condicionada para o primeiro contrato a celebrar ao abrigo do artigo 92º. Mas o legislador governamental procedeu a essa distinção no exercício legítimo do poder de conformação legislativa que a própria estrutura preceptiva da autorização lhe conferiu.
Não há, portanto, violação da alínea h) do artigo 2º da Lei nº 42/90, de 10 de Agosto, nem, paralelamente, violação dos artigos 164º, alínea e), e 168º, nº 1, alínea h), da Constituição.
6. - A recorrente aponta ainda como norma violada o nº 2 do artigo 168º da Constituição, reportando-se à própria Lei de Autorização Legislativa. Sobre este ponto, e, especificamente, sobre a alínea h), do artigo
2º da Lei nº 42/90, já teve o Tribunal Constitucional oportunidade de se pronunciar no Acórdão nº 311/93 (publicado no 'Diário da República', IIª Série, de 22 de Junho de 1993, e nos Acórdãos do Tribunal Constitucional, 24º vol., pag. 207 e segs.), tirado em fiscalização abstracta sucessiva. Aí se entendeu não padecer tal norma dos vícios que lhe vinham imputados e para as considerações então formuladas agora se remete (cfr. pontos A.7.3 e, quanto a uma eventual violação do direito à habitação, B.5.1 do referido Acórdão).
Fique apenas apontado que o legislador parlamentar ao conferir ao Governo 'liberdade de estipular limites certos à duração efectiva dos arrendamentos futuros', indo além do que constitucionalmente lhe é exigido na delimitação dos poderes do Governo, procedeu à própria determinação do conteúdo preceptivo dos comandos a emitir. Ou seja, a indicação do sentido da legislação futura como que transbordou em concretização desse sentido em normas. Para o Governo não ficou mais do que a opção de consagrar ou não consagrar o regime correspondente e, na primeira hipótese, de introduzir modulações no regime a consagrar até ao limite da moldura dos poderes que lhe tinham sido conferidos.
Ora bem, na presente situação ocorreu a primeira hipótese. O legislador derivado optou por tutelar o futuro arrendatário no primeiro arrendamento celebrado por força do direito a um novo arrendamento mais fortemente do que o comum dos novos arrendatários, na perspectiva da renda.
Convir-se-á em que, na autorização caberia um regime em que aquelas situações não teriam de ser especialmente previstas, se bem que as soluções encontradas a final, porventura, até se integrem na economia da Lei de autorização melhor do que uma opção que, pura e simplesmente, desconhecesse essas situações.
Nestes termos, e de acordo com as razões que ficam explicitadas, a norma constante do nº 1 do artigo 92º do Regime do Arrendamento Urbano, aprovado pelo Decreto-Lei nº 321-B/90, de 15 de Outubro, não viola as disposições constitucionais invocadas pela recorrente, pelo que não pode duração efectiva dos arrendamentos futuros' - não parece cobrir literalmente, enquanto mera previsão da liberdade de estipulação das partes, a duração limitada estabelecida para o arrendamento no decreto-lei autorizado (artigo 92º, nº 1, do Regime do Arrendamento Urbano). Pelo contrário, a fixação de uma duração determinada para o arrendamento é contraditória com a aludida liberdade de estipulação.
Deste modo, só uma interpretação pela qual se conclua que o legislador parlamentar pretendeu conferir liberdade de estipulação de limites certos à duração efectiva dos arrendamentos futuros ao Governo e não às partes permite concluir, como faz o presente Acórdão, pela não inconstitucionalidade orgânica da norma sub judicio. Esta é ainda uma real possibilidade interpretativa - por isso, votei a decisão constante do Acórdão -, mas não é a que ser julgada inconstitucional.
III - DECISÃO:
Pelo exposto, decide-se negar provimento ao recurso, confirmando-se a decisão recorrida, na parte impugnada.
Lisboa, 1997.04.17 Vítor Nunes de Almeida Armindo Ribeiro Mendes Antero Alves Monteiro Diniz Alberto Tavares da Costa Maria da Assunção Esteves (com declaração de voto) Maria Fernanda Palma (vencida nos termos de declaração de voto junta) Declaração de voto
Votei a decisão constante do presente Acórdão com fortes dúvidas quanto à solução encontrada pelo Tribunal de rejeitar a inconstitucionalidade orgânica da norma ínsita no nº 1 do artigo 92º do Regime do Arrendamento Urbano, aprovado pelo Decreto-Lei nº 321-B/90.
Com efeito, a expressão da lei de autorização legislativa -
'liberdade de estipular limites certos à duração efectiva dos arrendamentos futuros' - não parece cobrir literalmente, enquanto mera previsão da liberdade de estipulação das partes, a duração limitada estabelecida para o arrendamento no decreto-lei autorizado (artigo 92º, nº 1, do Regime do Arrendamento Urbano). Pelo contrário, a fixação de uma duração determinada para o arrendamento é contraditória com a aludida liberdade de estipulação.
Deste modo, só uma interpretação pela qual se conclua que o legislador parlamentar pretendeu conferir liberdade de estipulação de limites certos à duração efectiva dos arrendamentos futuros ao Governo e não às partes permite concluir, como faz o presente Acórdão, pela não inconstitucionalidade orgânica da norma sub judicio. Esta é ainda uma real possibilidade interpretativa - por isso, votei a decisão constante do Acórdão -, mas não é a que corresponde ao sentido habitual atribuído no direito privado e, em particular, no direito das obrigações, à locução 'liberdade de estipulação', que toma como destinatários tradicionais as partes do contrato - daí as minhas dúvidas.
José Manuel Cardoso da Costa