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Processo nº 69/96
2ª Secção Relator: Cons. Guilherme da Fonseca
Acordam, em conferência, na 2ª Secção do Tribunal Constitucional:
1. A., com os sinais identificadores dos autos, veio 'nos termos dos artºs 69º e 70º, nº 1, al. b) da Lei nº 28/82, de 15.11', interpor recurso para este Tribunal Constitucional do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça (4ª Secção-Social), de 22 de Novembro de 1995, que a condenou, em acção emergente de contrato de trabalho, sobre a forma ordinária, a pagar ao Autor e ora recorrido B. 'a quantia de 1 494 000$00 (um milhão e quatrocentos e noventa e quatro mil escudos) a título de indemnização por despedimento com justa causa'.
O acórdão recorrido, depois de enunciar as duas questões que essencialmente foram suscitadas pela recorrente no recurso de revista por ela interposto ('a da aplicabilidade às partes do C.C.T. celebrado entre a associação C. e a federação D., designadamente, no aspecto da legalidade dos nºs 7 e 8 da sua cláusula 74º; e a dos juros de mora que, a serem devidos, só o deveriam ser a partir do trânsito em julgado da decisão condenatória)', deu-lhes as seguintes respostas, na parte que aqui interessa:
'A questão sobre qual deveria ser o C.C.T. aplicável às partes foi no acórdão recorrido decidida no sentido de ser aquele que foi subscrito pela associação C. e a federação D., associações patronal e sindical nas quais o réu e o autor estavam inscritos, este através do sindicato E. - e foi bem decidida, a nosso ver.
Na verdade, provou-se que a Ré se encontrava inscrita na associação C. e que o autor era, há mais de oito (8) anos associado no sindicato E.. Este Sindicato, isso não é posto em causa nos autos, integrava-se na federação D.
Ora, nos termos do nº 1 do art. 7º do DL 519-CI/79, de 29 de Dezembro, as convenções colectivas de trabalho obrigam as entidades patronais que as subscrevam e as inscritas nas associações sectoriais signatárias, bem como os trabalhadores ao seu serviço que sejam membros, quer das associações sindicais celebrantes, quer das associações sindicais representadas pelas associações sindicais celebrantes. Assim, as convenções outorgadas por uma Federação obrigam as entidades patronais e os trabalhadores inscritos, respectivamente, nas associações patronais e nos sindicatos representados.
Deste modo, tendo a associação C. e a federação D., subscrito os C.C.T. publicados nos BTE nºs 9, 16 e 18, de 8 de Março de 1980, 29 de Abril de 1982 e
15 de Maio de 1987, são estas convenções colectivas que se aplicam à recorrente e ao recorrido por força da disposição legal referida.
A circunstância de, a partir de 1985, a associação C. haver também subscrito uma outra convenção colectiva de trabalho com o sindicato F., não envolve qualquer situação de concorrência de instrumentos de regulamentação colectiva pelas razões atrás apresentadas quanto ao universo abrangido pelas convenções colectivas. Por isso, no caso concreto dos autos, aos trabalhadores da Ré representados pela federação D., e pelo sindicato F. aplicavam-se pura e simplesmente os C.C.T. subscritos pela associação C. e as referidas associações sindicais. É, assim, perfeitamente irrelevante que nem os sindicatos, nem os trabalhadores tivessem dado cumprimento ao disposto nos nºs 3 e 4 do art. 14º do DL 519-CI/79, ou seja, fazer à entidade patronal a comunicação de qual o instrumento de regulamentação colectiva potencialmente aplicável que considerassem mais favorável. É que tal faculdade só teria lugar no caso de concorrência de convenções, o que não era seguramente o caso dos autos. Os destinatários de cada uma das convenções estavam bem definidos e, por isso, não poderia haver lugar a qualquer confusão quanto ao âmbito subjectivo da sua aplicação.
Assente que era aplicável ao recorrido o C.C.T. celebrado entre a associação C. e a federação D., e Outros, publicado no BTE nº16, de 29/4/82, é manifesto que estava aquele abrangido pela cláusula 74º, subordinada à epígrafe 'Regime de trabalho para os trabalhadores deslocados no estrangeiro. Tal cláusula dispunha o seguinte:
(...)
Uma vez que se provou exercer o autor, por acordo com a Ré, as funções de motorista na condução de veículos pesados de transporte internacional de mercadorias, parece inquestionável o seu direito à remuneração prevista no referido nº 7, tanto mais que nenhuma, a tal titulo, a recorrente lhe pagou.
Sustenta esta, porém, que, mesmo a não existir concorrência de convenções colectivas, o C.C.T. entre a associação C. e a federação D., não poderá aplicar-se ao caso dos autos por três razões, a saber:
a) implicar a violação dos princípios constitucionais de 'trabalho igual-salário igual' e da 'liberdade sindical'; b) não lhe ter o recorrido comunicado a sua filiação sindical; c) serem ilegais os nºs 7º e 8º da cláusula 74º em causa.
Vejamos.
Quanto à primeira questão não tem razão a recorrente.
Qualquer daqueles princípios se destina a assegurar os interesses dos trabalhadores e a justiça social e ambos têm por base a instituição da liberdade sindical, que constitui o meio privilegiado de prosseguir e atingir os direitos e os interesses dos trabalhadores. A solução defendida pela recorrente é que seria violadora de tal princípio, ao pretender impor ao recorrente a observância de um C.C.T. relativamente ao qual ele era terceiro. Por isso e justamente porque foi cumprido o princípio da liberdade sindical, a existir violação do princípio 'trabalho igual-salário igual' seria a mesma imputável ao autor, porque tinha ele os meios de obter os salários do C.C.T. que lhe fossem mais favoráveis. Bastaria inscrever-se no sindicato que os tivesse conseguido, sendo a Ré inocente de qualquer eventual discriminação salarial.
Não se verificam, por isso, as alegadas inconstitucionalidades.
No que respeita à não comunicação pelo autor da sua filiação sindical, também não tem a recorrente qualquer razão.
(...)
Finalmente, entende a recorrente que os nºs 7º e 8º da cl. 74º seriam ilegais por contrariarem o artº 7º do DL 421/83, de 2 de Dezembro, uma vez que naquelas se limitaria o pagamento do trabalho extraordinário a duas horas diárias, enquanto neste se prevê o pagamento de todo o trabalho extraordinário prestado.
Não tem razão.
Na verdade, o que se estabelece na cl. 7º é uma gratificação ou subsídio especial correspondente, no mínimo, à atribuição de duas horas extraordinárias,
é algo semelhante à retribuição especial por isenção de horário de trabalho prevista no art. 50º do DL 49 408 e 14º do DL 409/71. Não viola tal cláusula, por isso, o artº 7º do DL 421/83 que respeita a realidade distinta da contemplada no falado nº 7 da cláusula 74º'.
2. Nas suas alegações, concluiu assim a recorrente:
'1. A interpretação que os Acórdãos proferidos nos autos fazem do nº 1 do artº
7º do DL 519-C1/79, a ser correcta, implica a inconstitucionalidade deste normativo legal, por violação do princípio que a trabalho igual corresponderá salário igual, (al. a) do nº 1 do artº 59º da CRP).
2. Ao permitir que, na mesma empresa e a trabalhadores com a mesma categoria profissional, se apliquem vários C.C.T., o que se traduz em retribuições dissemelhantes.
3. O estipulado nos nºs 7 e 8 da cláusula 74º do C.C.T. celebrado entre a associação C. e a federação D., é ilegal, por contrariar normas legais imperativas - o artº 7º do DL 421/83 de 02.12.
4. Na medida em que limita a retribuição do trabalho extraordinário, dos motoristas deslocados no estrangeiro, a duas horas por dia, não sendo, a estes, aplicáveis as disposições sobre o trabalho nocturno e extraordinário.
Termos em que, Vªs. Exªs. declarando a inconstitucionalidade do nº 1 do artº 7º do DL 519-C1/79 de 09.12, bem como a ilegalidade dos nºs 7 e 8 do C.C.T. outorgado entre a associação C. e a federação D., ordenando, consequentemente, a reforma do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, farão, como sempre, JUSTIÇA'.
3. O ora recorrido B. não apresentou alegações.
4. Vistos os autos, incluindo visto do Ministério Público, cumpre decidir.
Uma primeira tarefa se impõe e é a de demarcar o objecto do presente recurso de constitucionalidade, pois não há coincidência entre a vontade de recorrer manifestada pela recorrente no respectivo requerimento e a identificação da norma ou normas jurídicas que preenchem o teor e as conclusões das suas alegações.
Sabido como é que o objecto do recurso, ainda que possa ser restringido nas alegações do recorrente, não pode, todavia, ser aí ampliado, há que in casu extrair as devidas consequências dessa falta de coincidência.
Assim, no requerimento de interposição do recurso de constitucionalidade, veio a recorrente claramente identificar as 'normas cuja inconstitucionalidade e ilegalidade se pretende ver apreciada pelo Tribunal Constitucional' e que 'são as que constam dos nºs 7 e 8 da cláusula 74ª do Contrato Colectivo de Trabalho outorgado entre a associação C. e a federação D., publicado nos BTE nº 9 de 08.03.80 e 16 de 15.05.83 e posteriores alterações, nomeadamente, publicadas em
* BTE nº 18 de 15.05.83
* BTE nº 18 de 15.06.86
* BTE nº 18 de 15.05.87
* BTE nº 20 de 29.05.88
* BTE nº 20 de 29.05.89
* BTE nº 19 de 22.05.90'.
Depois, acrescentou os 'princípios constitucionais que se consideram violados' e concluiu desta forma:
'Para além disto, considera-se, ainda, que as disposições referidas se encontram feridas de ilegalidade, por violação das disposições do artº 7º do Dec.Lei nº
421/83 de 02.12 e nº 1 do artº 6º do Dec. Lei nº 519-C1/79 de 09.12'.
Confrontando esse requerimento com as alegações e respectivas conclusões (estas acima transcritas), vê-se que não é objecto do presente recurso o artigo 7º, nº 1, do Decreto-Lei nº 519-C1/79 de 9 de Dezembro, norma que não vinha sequer indicada nesse requerimento e que passou a constar das alegações, ampliando-se, assim, esse objecto, o que não é admissível (e ainda que se queira ver um mero lapso na indicação da norma do artigo 6º, nº 1, do mesmo Decreto-Lei nº519-C1/79, constante daquele requerimento, que deveria ser antes o artigo 7º, nº 1, a ela não é, em todo o caso, apontado um vício de inconstitucionalidade, mas serve só para aferir o motivo de 'ilegalidade' de cláusulas do citado Contrato Colectivo de Trabalho).
Donde se passa a concluir que o objecto do presente recurso de constitucionalidade fica reduzido aos nºs 7 e 8 da cláusula 74º do Contrato Colectivo de Trabalho celebrado entre a associação C. e a federação D., cuja indicação consta do requerimento de interposição do recurso, com identificação dos locais de publicação desse Contrato, e é repetida nas alegações de recurso e respectivas conclusões.
5. Fixado assim tal objecto, coloca-se desde logo uma questão prévia de natureza processual: a de saber se ao Tribunal Constitucional cabe apreciar da (in)constitucionalidade dos questionados nºs 7 e 8 da cláusula 74º do citado Contrato Colectivo, independentemente de saber se a matéria do juízo pretendido
- o de ilegalidade, 'por contrariar normas legais imperativas - o artº 7º do DL
412/83 de 02.12' - cabe ou não numa qualificação de juízo de
(in)constitucionalidade.
Por este pressuposto relativo à competência do Tribunal se vai naturalmente começar.
Com efeito, aquela apreciação depende de se considerar se os citados nºs 7 e 8 da cláusula 74º podem ser tidos como normas 'públicas', normas provindas de um 'poder normativo público', pois que as normas de natureza privada não estão sujeitas ao controlo de constitucionalidade.
Não basta estar-se perante pessoas colectivas de direito privado, como são a Associação e a Federação que outorgaram o Contrato Colectivo de Trabalho em causa, para daí se concluir, sem mais, que os preceitos aí contidos não são normas publicas para efeito de poderem ser submetidas ao controlo de constitucionalidade.
Na verdade, existem entidades privadas que, como que agindo em nome do Estado, e com o objectivo de prosseguirem certos fins de interesse público, podem obter a atribuição, por ele, de poderes que incluam a emanação de disposições que revistam a qualidade de normas, para aquele efeito, significando aí o exercício de prerrogativas de poder público.
No acórdão deste Tribunal Constitucional nº472/89, publicado no Diário da República, II Série, nº 219, de 22 de Setembro de 1989, refere-se a dado passo (ponto nº 7): 'A tal respeito, deve preliminarmente sublinhar-se que uma devolução de competência normativa pública a pessoas colectivas de direito privado só ocorrerá se existir um acto de poder público a operá-la directa e iniludivelmente. Semelhante devolução não pode simplesmente presumir-se, e na dúvida deverá concluir-se pela inexistência dela' - citado no Acórdão nº 730/95, publicado no Diário da República, II Série, nº 31, de 6 de Fevereiro de 1996, acrescentando-se neste: 'Portanto, constitui condição para que ocorra essa devolução de competência normativa a existência de um acto do poder público a operá-la directa e iniludivelmente e, naturalmente, que, para além de existir esse acto do poder público, de uma entidade com competência para o efeito, que a norma equivalha 'a uma regra ou padrão, orientadora e reguladora de condutas ou comportamentos, e não a actos de aplicação dessa regra ou padrão' (cfr. J.J.Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 2ª edição revista e actualizada, 2º volume, pág. 470)'.
Ora, in casu, a situação está facilitada porque este Tribunal tem entendido, conquanto com posições divergentes, que as organizações profissionais que celebram as convenções colectivas de trabalho não têm poderes de autoridade, mas apenas poderes de representação, e, assim, as cláusulas que elas incorporam não contêm normas, entendidas como padrões de conduta emitidas por entidades investidas em poderes de autoridade, (Cfr. os Acórdãos nºs 172/93 e 209/93, publicados nos Acórdãos do Tribunal Constitucional, 24º volume, págs
451 e 537, e, em sentido divergente, o Acórdão nº 214/94, publicado no Diário da República, II Série, nº 165, de 19 de Julho de 1994).
Lê-se no acórdão nº 172/93:
'6 - Ora, se pode discutir-se qual o exacto alcance da palavra norma estabelecida no artigo 280º, nº 1, alínea b), da Constituição, parece seguro, pelo menos, que com ela se teve em vista apenas os actos dispositivos de entidades investidas em poderes de autoridade, e mais precisamente, os actos dispositivos dos poderes públicos. Por exemplo, esta questão é dada como assente no Acórdão nº 26/85 (Diário da República, 2ª série, de 26 de Abril de
1985), onde se concluiu que nem todos os actos dos poderes públicos devem considerar-se normas (e, portanto, sujeitos à fiscalização do Tribunal Constitucional): aí se optou por um conceito funcionalmente adequado, segundo o qual não são normas as decisões judiciais e os actos da administração sem carácter normativo, nem os actos políticos ou actos de governo em sentido estrito.
Tal conceito funcionalmente adequado seria retomado depois no Acórdão nº
150/86 (Diário da República, 2ª série, de 26 de Julho de 1986), onde se considerou ser o mesmo aplicável, não só aos casos de fiscalização abstracta, mas também aos casos de fiscalização concreta, e que neste domínio o que importa verificar é se o preceito a examinar tem por parâmetro de validade imediata a lei ou a Constituição, pois que neste último caso nada justificará que esse exame escape à jurisdição e à competência do Tribunal Constitucional.
O Tribunal, contudo, sempre afirmou com clareza que escapam ao seu poder de cognição as normas provenientes da autonomia privada, salvo quando decorrentes da atribuição de poderes ou funções públicas a entidades privadas (Acórdão nº
472/ /89, in Diário da República, 2ª série, de 22 de Setembro de 1989; e Acórdãos nº 156/88 e nº 157/88, in Diário da República, 2ª série, de 17 de Setembro e de 26 de Julho de 1988, respectivamente).
7 - Ora, como as normas das convenções colectivas de trabalho não provêm de entidades investidas em poderes de autoridade, e muito menos provêm de poderes públicos, então não estão sujeitas à fiscalização concreta de constitucionalidade que incumbe a este Tribunal exercer, nos termos do artigo
280º, nº 1, alínea b), da Constituição.
É certo que o artigo 56º, nº 4, da Constituição se refere a normas das convenções colectivas de trabalho. Todavia, com isto não pretende obviamente usar o termo no sentido de normas provenientes dos poderes públicos, as únicas que são consideradas no sistema de fiscalização de constitucionalidade pelo artigo 3º, nº 3, da Constituição, como nota Jorge Miranda no texto acima referido.
E esta conclusão não conflitua com o decidido no Acórdão nº 392/89 (Diário da República, 2ª série, de 14 de Setembro de 1989), na medida em que aí se conheceu de uma norma constante de uma convenção colectiva de trabalho objecto de uma portaria de extensão. É que, como então se assinalou, 'a cláusula foi aplicada ex vi de uma portaria de extensão, que, assim, a 'apropriou', fazendo seu o respectivo conteúdo normativo', sendo certo que 'as normas de uma portaria preenchem, seguramente, o conceito de norma para o efeito da sua submissão ao controlo de constitucionalidade'.
A este entendimento se adere e, por isso, resta apenas concluir que falta aqui um pressuposto processual o pressuposto relativo à competência do Tribunal Constitucional em razão da matéria a qual tem a ser preenchida por normas jurídicas, com o sentido de actos dispositivos dos poderes públicos, que é o sentido que importa ao caso.
6. Termos em que, DECIDINDO, não se toma conhecimento do recurso. Custas pela recorrente com a taxa de justiça fixada em cinco unidades de conta. Lisboa, 18 de Março de 1997 Guilherme da Fonseca Bravo Serra Messias Bento José de Sousa e Brito (vencido, pelas razões da declaração de voto junta ao Acórdão nº 172/93) Luís Nunes de Almeida