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Processo nº 305/96
1ª Secção Rel. Cons. Tavares da Costa
Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional
I
1.- A empresa seguradora A., deduziu, no 5º Juízo Cível do Tribunal da Comarca de Lisboa, embargos à execução que o Hospital de S. José instaurou contra ela, por dívida resultante de serviços prestados no exercício da sua actividade em que prestou assistência hospitalar a sinistrada em acidente de viação, estando a respectiva responsabilidade civil transferida por contrato de seguro para a seguradora.
Instaurada acção executiva ao abrigo do disposto no Decreto-Lei nº 194/92, de 8 de Setembro, a seguradora veio invocar a inconstitucionalidade das normas dos artigos 2º, nº 2, alínea a), 4º e 9º desse diploma, como fundamento dos embargos.
Nada adiantando quanto às duas primeiras normas, que tem por violadoras do artigo 205º, nº 1, da Constituição da República (CR), convoca especialmente a do artigo 9º que, em sua tese, afronta o disposto nos artigos 12º, nº 1, 13º, nºs. 1 e 2, e 80º e seguintes da lei fundamental.
Tendo o embargado negado existir qualquer inconstitucionalidade, o Senhor Juiz, por decisão de 25 de Novembro de 1995, veio a julgar os embargos procedentes e declarou extinta a execução, após ter recusado a aplicação das citadas normas, aceitando a tese de inconstitucionalidade professada pela autora dos embargos.
2.- Do assim decidido a respectiva magistrada do Ministério Público interpôs recurso para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do disposto nos artigos 70º, nº 1, alínea a), e 72º, nºs. 1 e 3, da Lei nº
28/82, de 15 de Novembro.
Recebido o recurso, alegou tão só o Senhor Procurador-Geral adjunto neste Tribunal, tendo formulado as seguintes conclusões:
'1º- Não violam qualquer princípio ou preceito constitucional as normas constantes dos artigos 2º, nº 2, alínea a) e 4º do Decreto-Lei nº
192/94.
2º- O estabelecimento de um prazo especial de prescrição - alongado relativamente ao que decorreria do estatuído no nº 1 do artigo 498º do Código Civil - relativamente aos débitos a instituições do Serviço Nacional de Saúde não constitui, atentos os fins públicos que lhe são cometidos e a relevância das tarefas que lhe competem, solução arbitrária ou discricionária, violadora do princípio da igualdade, perspectivado como proibição do arbítrio legislativo.
3º- Termos em que deverá ser julgado procedente o presente recurso, determinando-se a consequente reforma da decisão recorrida.'
Corridos os vistos legais, cumpre decidir.
II
1.- Constitui objecto do presente recurso de constitucionalidade, com fundamento na alínea a) do nº 1 do artigo 70º da Lei nº 28/82, o julgamento da conformidade constitucional das normas da alínea a) do nº 2 do artigo 2º, do artigo 4º e do artigo 9º do Decreto-Lei nº 194/92, de 8 de Setembro, diploma que veio regular a cobrança de dívidas às instituições e serviços integrados no Ministério da Saúde.
Relativamente às duas primeiras normas, a jurisprudência deste Tribunal é numerosa, reiterada e firme no sentido da sua não inconstitucionalidade, pelo que nos basta para ela remeter, dada a actual simplicidade da questão, que justificaria, de resto, o recurso ao expediente previsto no nº 1 do artigo 78º-A daquele Lei nº 28/82, se fosse só essa a questão (cite-se, por todos, o acórdão nº.118/96, publicado no Diário da República, II Série, de 7 de .Maio de 1996, dado toda a doutrina nele contida aproveitar ao caso subjacente).
No entanto, o Senhor Juiz julgou a norma do artigo
9º, igualmente desaplicada, inconstitucional, fundamentalmente por suposta violação do princípio da igualdade, consagrado no artigo 13º da CR, se bem que tenha, do mesmo passo, trazido à colação quer o artigo 12º, nº 1, quer os artigos 80º e seguintes (sic) do mesmo texto.
2.- O citado artigo 9º, sob a epígrafe 'Prescrição', dispõe:
'As dívidas pelos encargos referidos neste diploma prescrevem no prazo de cinco anos, contados da data em que cessou o tratamento.'
A tese da embargante, que o magistrado recorrido abraçou, é a de que, confrontando este preceito com o disposto nos artigos 498º, nº 1, e 495º, nº 2, do Código Civil, ressalta uma desigualdade de tratamento legal, entre, por um lado, as instituições e serviços públicos integrados no Serviço Nacional de Saúde e, por outro, os próprios lesados e as entidades, nomeadamente hospitais ou clínicas privadas, que prestam serviços de saúde, em concorrência com aquele Serviço.
A partir desta premissa, o magistrado recorrido formou o seu juízo nos termos que se transcrevem:
'Segundo o disposto nos artºs. 80º e seguintes da Constituição da República Portuguesa, em que se regulamenta a organização económica, o legislador não estipulou especial privilégio ao sector público, relativamente ao sector privado, cooperativo e social.
E, de acordo com o artigo 12º nº 1 da CRP, todos os cidadãos gozam dos mesmos direitos e estão sujeitos aos mesmos deveres consagrados na Constituição.
Tal princípio é extensivo às pessoas colectivas, de harmonia com o disposto no nº 2 do mesmo artigo.
Por outro lado, os nºs. 1 e 2 do artigo 13º da Constituição estabeleceram o princípio da igualdade entre os cidadãos portugueses, princípio aplicável, igualmente, às pessoas colectivas públicas.
Por isso, o artigo 9º do DL nº 194/92 é materialmente inconstitucional, por estipular um especial privilégio de prescrição das dívidas pelos serviços prestados pelas instituições e serviços públicos integrados no serviço nacional de saúde.
Assim, julgo materialmente inconstitucional o artigo 9º do Dec. Lei nº 194/92, de 8 de Setembro, por violação dos artigos 12º, 13º e 80º e seguintes da CRP.'
A questão está, assim, em saber se a inegável dualidade de regimes estabelecida na norma do artigo 9º face aos disposto nos citados artigos 498º, nº 1, e 495º, nº 2, do Código Civil, consubstancia inconstitucionalidade.
O Ministério Público não encontra fundamento justificativo, nesta perspectiva , da não aplicação da norma do artigo 9º.
Nas respectivas alegações de recurso di-lo explicitamente:
'Conforme jurisprudência uniforme e reiterada deste Tribunal, para que inteiramente se remete, não ofendem qualquer preceito ou princípio de constitucionalidade as normas constantes dos artigos 2º, nº 2, alínea a) e 4º do Decreto-Lei nº 192/94.
A única questão nova suscitada no presente recurso é pois, a da pretensa inconstitucionalidade da norma constante do artigo 9º daquele Decreto-Lei, por violação do princípio da igualdade.
A argumentação expendida na decisão recorrida parece-nos porém claramente improcedente, já que o estabelecimento de uma dualidade de regimes, no que respeita à prescrição de débitos provenientes de tratamentos hospitalares, se não configura como solução arbitrária e desrazoável, por carecida de qualquer suporte material.
Na verdade, a especificidade e os fins públicos cometidos ao Serviço Nacional de Saúde justificam plenamente - como sempre justificaram, aliás - a existência de particularidades, especificidades e especialidades relativamente ao regime de direito comum das obrigações, a que estão naturalmente sujeitos os débitos a quaisquer entidades privadas, não integradas no referido serviço Nacional.
Nada obstava, deste modo, ao estabelecimento de um prazo especial de prescrição - relativamente ao que emerge do nº 1 do artigo 498º do Código Civil - e que, convém recordar, representa, por sua vez, regime especial relativamente ao prazo-regra de prescrição das dívidas, emergentes do disposto nos artigos 309º e segs. do Código Civil.
Tanto basta para demonstrar que a solução legislativa encontrada se não configura como arbitrária ou discricionária - o que implica naturalmente que se não possa considerar violado o princípio constitucional da igualdade.'
Concorda-se com a tese professada pelo magistrado do Ministério Público na medida em que o princípio da igualdade não proíbe que a lei distinga, veda, isso sim, o estabelecimento de relações discriminatórias, sejam estas diferenciações de tratamento fundadas em categorias meramente subjectivas (como as exemplificativamente indicadas no nº 2 do artigo 13º da CR), sejam desigualdades de tratamento materialmente infundadas, sem qualquer fundamento razoável (vernünftiger Grund) ou sem qualquer justificação objectiva e racional. Como, de resto, constitui impressiva e uniforme jurisprudência deste Tribunal (cfr., por todos, os acórdãos nºs. 186/90, 187/90, 188/90 e
57/95, publicados no Diário da República, II Série, de 12 de Setembro de 1990 e
12 de Abril de 1995, respectivamente os três primeiros e o último).
3.- A norma do artigo 9º violará o princípio da igualdade se não lhe assistir qualquer razão que a justifique, afastando o arbítrio. De outro modo, será, certamente, susceptível de crítica, mas não merecerá censura constitucional.
Neste pressuposto, importa registar que a Lei de Bases da Saúde - Lei nº 48/90, de 24 de Agosto - dispõe, na alínea b) do nº
2 da Base XXXIII, poderem os serviços e estabelecimentos do SNS cobrar receitas, a inscrever nos seus orçamentos próprios, compreendendo-se nestas
'[o] pagamento de cuidados por parte de terceiros responsáveis, legal ou contratualmente, nomeadamente subsistemas de saúde ou entidades seguradoras'.
O Decreto-Lei nº 194/92 reflecte a preocupação de dar consistência ao princípio de que os hospitais devem organizar-se e ser administrados em termos empresariais (preâmbulo do Decreto-Lei nº 19/88, de 21 de Janeiro), assim se devendo compreender as medidas nele adoptadas, com as quais se procurou obter um meio mais expedito de efectivar a cobrança de créditos das unidades de saúde pública integradas no SNS, conjugadamente com uma maior eficiência de gestão.
Tenha-se presente, nomeadamente, a estrutura complexa deste sistema e as inerentes dificuldades de cobrança, contrastando claramente, com o que se passa nos estabelecimentos privados, onde, em regra, os doentes e sinistrados só são admitidos mediante o depósito de caução e as saídas implicam a prévia liquidação das despesas, ou de parte delas. E repare-se na seguinte passagem da nota preambular ao diploma, que se transcreve:
'Actuação que se impõe seja tanto mais rápida quanto é certo que as dívidas aos estabelecimentos de saúde - os públicos incluídos - estão sujeitas ao regime das prescrições presuntivas e, por inerência, a uma prescrição de curto prazo [artigo 317º, alínea a), do Código Civil], que é concretamente de dois anos no caso de a unidade de saúde que prestou tratamento ou assistência ao lesado exercer o seu direito de crédito contra o próprio assistido ou familiares.
Mas mesmo na hipótese de o hospital interpelar o terceiro responsável pela lesão corporal ou quem por sub-rogação haja assumido tal responsabilidade (v.g. entidades seguradoras), o prazo de prescrição não vai além de três anos (artigo 498º do Código Civil).'
O artigo 9º integra-se nesse conjunto de medidas, fruto de determinada opção político-legislativa. Não se reduz, por conseguinte
à manifestação de uma 'desigualdade de tratamento legal entre, por um lado, as instituições e serviços públicos integrados no Serviço Nacional de Saúde e, por outro, os próprios lesados e as entidades, nomeadamente hospitais ou clínicas privadas, que prestam serviços de saúde, em concorrência com aquele Serviço', como se argumenta na decisão recorrida, ao ponderar-se que, na organização económica, a que respeita a Parte II da Constituição, não foi 'estipulado especial privilégio ao sector público, relativamente ao sector privado, cooperativo e social'.
À luz da filosofia que informa todo o diploma em que se insere a norma sindicanda retira-se que a diferenciação criada pelo legislador não é, em si, arbitrária, pois que objectivamente fundada, nem irrazoável, sem apoio material bastante.
Não só, numa perspectiva histórica, não deixa, ainda, de interessar a menção da especificidade do regime dos créditos dos hospitais (com interesse, nesta matéria, os pareceres da Procuradoria-Geral da República nº 1/68, de 19 de Fevereiro de 1968, publicado no Boletim do Ministério da Justiça, nº 205, págs. 68 e segs., e 44/69, de 31 de Outubro de
1969, publicado, com anotação de Antunes Varela, na Revista de Legislação e de Jurisprudência, ano 103, págs. 245 e segs. e no citado Boletim, nº 196, págs.
161 e segs.), como, também, colherá atentar na improcedência da tese recorrida sempre que haja um facto ilícito que constitua crime (como ocorre quotidianamente, v.g., com os acidentes de viação que geram internamento hospitalar), sujeito a prazo prescricional mais longo (cfr. o nº 3 do artigo
498º do Código Civil em conexão com o artigo 118º do Código Penal).
Não existe, em suma, 'um especial privilégio' de prescrição das dívidas pelos serviços prestados pelas instituições e serviços públicos integrados no SNS, como pretende o magistrado recorrido, com inerente violação do princípio da igualdade: a diferenciação é justificada em termos que não merecem censura jurídico-constitucional, sem prejuízo de deles se poder discordar como solução legislativa. E, de igual modo, não se vislumbra motivo para convocar o princípio da universalidade, plasmado no nº 1 do artigo 12º da CR, que também se teve por violado.
Como se escreveu em recente acórdão deste Tribunal
(nº 241/97, de 12 de corrente) '[o] prazo prescricional, fixado pela norma sub iudicio para as dívidas às instituições ou serviços públicos integrados no Serviço Nacional de Saúde (cinco anos), não obstante ser diferente e mais longo do que os das dívidas aos estabelecimentos particulares (este é de dois ou três anos, consoante se peça o pagamento ao próprio assistido ou a um seu familiar, ou a um terceiro, maxime a uma seguradora) é, por isso, materialmente fundado.' III
Em face do exposto, decide-se conceder provimento ao recurso e ordena-se a reformulação da decisão em conformidade com o presente julgamento das questões de constitucionalidade.
Lisboa, 18 de Março de 1997 Alberto Tavares da Costa Antero Alves Monteiro Diniz Maria da Assunção Esteves Vítor Nunes de Almeida Armindo Ribeiro Mendes José Manuel Cardoso da Costa