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Proc. nº 565/96
1ª Secção Rel: Cons. Ribeiro Mendes
Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional: I
1. J..., proprietário de uma loja num centro comercial sito em Castelões de Capeda, concelho de Paredes, interpôs recurso para o Tribunal Judicial de Paredes da decisão do Presidente da Câmara Municipal de Paredes, proferido em processo de contra-ordenação em 31 de Julho de 1995, que o condenou a pagar a quantia de 6.740$00, sendo 2.000$00 de coima, 4.200$00 da tarifa estabelecida na 'Postura sobre Sistema de Lixo e Higiene Pública' vigente nesse concelho. Na petição de recurso, além de fundamentos atinentes à referida falta de publicidade do regulamento, suscitou a questão da sua inconstitucionalidade orgânica, invocando que não se tratava de uma tarifa ou taxa devida pelo pagamento de um serviço prestado ao recorrente, mas antes de um verdadeiro imposto lançado pelo município, ao arrepio do disposto na Constituição.
Sem necessidade de audiência de julgamento, veio o Juiz do 1º Juízo Criminal desse Tribunal a conceder provimento ao recurso, absolvendo o recorrente e revogando a decisão administrativa sancionatória, por considerar que o art. 10º, nº 2, da versão em vigor da referida Postura violava os arts.
115º, nº 7, e 168º, nº 1, alínea i) da Constituição.
Pode ler-se nessa decisão:
' Não foi feita, portanto, referência à norma que confere competência à Assembleia Municipal para legislar sobre a matéria (alínea d) do nº 1 do art. 2º do Dec-Lei nº 100/84), à norma que confere competência ao Presidente da Câmara Municipal para fixar as tarifas devidas pela prestação de serviços ao público pelos serviços municipais no âmbito de recolha, depósito e tratamento de lixo
(alínea p) do nº 1 do art. 51º do Dec-Lei 100/84), e à norma que permite às autarquias locais fixarem coimas pelo não cumprimento do disposto nas posturas e regulamentos que aprovam (nº 2 do art. 21º da Lei 1/87, de 6 de Janeiro). Concluindo, é insuficiente à salvaguarda do princípio de primariedade da lei a mera referência à norma que confere a um órgão de autarquia local competência genérica para aprovar regulamentos (competência subjectiva) [...] Do que foi exposto conclui-se, porque no regulamento não é feita qualquer referência à lei habilitante (subjectiva e objectivamente), e porque no edital com que se lhe conferiu publicidade apenas é citada a norma que habilita a Assembleia Municipal a aprovar regulamentos, que a Postura sobre Sistema de Lixo e Higiene Pública aprovada pela Assembleia Municipal de Paredes padece do vício de inconstitucionalidade formal, por violação do disposto no nº 7 do art. 115º da CRP [...] Face à redacção do nº 2 do art. 10º da postura em análise, é manifesto que a obrigação de pagar a tarifa nasce independentemente da prestação do serviço de recolha do lixo: a posição do devedor define-se apenas pela qualidade de munícipe [...] No entanto, esta utilidade comum [entenda-se da recolha do lixo], que indiscutivelmente existe, extravasa claramente a relação concreta com o serviço
(base da definição do conceito de taxa) - como exemplo poderão apontar-se os casos em que o lixo pura e simplesmente não é recolhido pelos serviços e as situações de bens imóveis cujo proprietário não habite no município [...] Assim, face ao exposto, o facto de se definir o obrigado ao pagamento da quantia pela qualidade de munícipe e não como beneficiário pela prestação do serviço em causa, determina que o valor de tal quantia não possa ser considerado como tarifa [...] Assim, de tudo o que foi exposto resulta claro que a «tarifa» constante do nº 2 do art. 10º da postura em causa nos autos constitui um verdadeiro imposto local. A criação de impostos é uma matéria abrangida pela reserva relativa da Assembleia da República (alínea i) do nº 1 do art. 168º da CRP). Desta forma, porque, constitucionalmente, a Assembleia Municipal de Paredes não possuía competência para a aprovar, a norma em causa padece do vício de inconstitucionalidade orgânica, pelo que a aplicação ao caso dos autos da actual norma constante do nº 2 do art. 10º da Postura Sobre Sistema de Lixo e Higiene Pública aprovada pela Assembleia Municipal de Paredes na 2ª reunião de Secção ordinária de 15 de Setembro de 1995, realizada em 13 de Outubro de 1995, deve ser recusada por força do disposto no nº 1 do art. 277º e no art. 207º, ambos da CRP'. (a fls. 120 a 127 dos autos)
Desta decisão interpôs recurso de constitucionalidade a Magistrada do Ministério Público, ao abrigo da alínea a) do nº 1 do art. 70º da Lei do Tribunal Constitucional. Este recurso foi admitido por despacho de fls. 139.
2. Subiram os autos ao Tribunal Constitucional.
Alegaram o Ministério Público e o particular recorrido. O Ministério Público formulou as seguintes conclusões:
'1º. Não é formalmente inconstitucional, por preterição do preceituado no nº.7 do artigo 115º. da Constituição da República Portuguesa, o regulamento local que cita expressamente, embora de modo eventualmente insuficiente, a respectiva lei habilitante, no instrumento destinado a possibilitar a sua publicação junto dos munícipes.
2º. A tarifa de saneamento, estabelecida como contraprestação de um serviço especificamente prestado pela autarquia no âmbito da recolha e tratamento de lixos, independentemente da dimensão e grau com que tal serviço foi efectivamente solicitado e prestado, deve ser qualificada como taxa, não se situando consequentemente no âmbito da reserva de competência legislativa da Assembleia da República, decorrente do estatuído no artigo 168º, nº.1, alínea i), da Constituição da República Portuguesa'.(a fls. 151-152)
O recorrido, por seu turno, sustentou a bondade do despacho recorrido, considerando que a norma desaplicada era inconstitucional, estando-se na presença de um imposto local, tanto mais que na loja de ouriversaria de que era proprietário não se produzia lixo (a fls. 154 a 156).
3. Foram corridos os vistos legais.
Por não haver motivos que a tal obstem, cumpre conhecer do objecto do recurso.
II
4. A fls. 62 a 88 e 91 a 113 dos autos, acham-se juntos exemplares da Postura sobre o Sistema de Lixo e Higiene Pública do Município de Paredes, aprovada na 2ª reunião de sessão ordinária da Assembleia Municipal de Paredes, de 30 de Dezembro de 1987, realizada em 15 de Janeiro de 1988, bem como as alterações à mesma Postura, aprovadas pela mesma assembleia na 2ª reunião de sessão ordinária de 15 de Setembro de 1995, realizada em 13 de Outubro de 1995.
Acha-se também junta aos autos cópia do edital subscrito pelo Presidente da Câmara de Paredes, datado de 23 de Outubro de 1995, através do qual se torna público que a respectiva assembleia municipal 'deliberou aprovar a
«POSTURA SOBRE SISTEMA DE LIXOS E HIGIENE PÚBLICA - AJUSTAMENTOS E NÍVEL DA SUA MELHOR INTERPRETAÇÃO E DA SUA APLICAÇÃO PRATICA», de conformidade com o disposto na alínea a) do nº 2 do art. 39º do Decreto-Lei nº 100/84, de 29 de Março, na redacção dada na Lei nº 18/91, de 12 de Junho' (a fls. 32 dos autos).
5. Na referida Postura, depois de se referir que é da competência exclusiva da Câmara Municipal de Paredes 'ordenar o depósito, recolha e destino final dos lixos, em todo o Concelho de Paredes', sem prejuízo de, 'casuisticamente' poder essa Câmara, 'sempre que necessário conceder o exercício das funções referidas (...) a outras entidades' (art. 1º, nºs. 1 e 3), estabelece-se uma classificação dos lixos consoante a sua tipologia (domésticos, comerciais, industriais e especiais) e estabelecem-se regras sobre o depósito de cada um dos tipos de lixo, prevendo-se as tarifas a pagar pelos munícipes relativamente a esses tipo de lixos nos arts. 18º, 18º-A e 18º-B.
Dispõe o artigo da Postura onde se encontra a norma desaplicada, na redacção introduzida em 1995:
' Artigo 10º
1- A recolha de detritos previstos no artigo 2º e depositados nos termos do artigo 3º está sujeita ao pagamento das tarifas respectivas, na presente postura previstas.
2- O pagamento das tarifas previstas no artigo 18º desta postura é obrigatório a todos os munícipes, sejam pessoas singulares ou colectivas, e é independente da quantidade de lixo produzida e ou depositada.
3- O regime de cobrança das tarifas previstas no presente diploma será definido através de deliberação do executivo camarário.'
Como resulta do despacho recorrido, o Senhor Juiz de Paredes desaplicou, com fundamento em inconstitucionalidade, o nº 2 deste artigo, por ser a norma que, em última análise, serve de base ao ilícito de mera ordenação social previsto no ponto C), alínea a), do artigo 17º (alteração de 1995): 'o não pagamento das tarifas previstas no artigo 18º dentro dos prazos definidos nos artigos 18º-A e 18º-B constitui contra-ordenação punida com coima de
2.000$00 a 5.000$00 acrescida do pagamento do valor relativo às tarifas não pagas'. Esta norma sancionatória acha-se em conformidade com o que prescreve o art. 21º, nºs. 1 e 2, da Lei das Finanças Locais (Lei nº 1/87, de 6 de Janeiro).
6. Terá razão o Senhor Juiz de Paredes quando julgou procedente o recurso interposto pelo ora recorrido, com fundamento na inexistência das dívidas objecto de condenação administrativa, decorrente de inconstitucionalidade formal e orgânica das normas desaplicadas, nomeadamente do nº 2 do art. 10º da Postura sobre o Sistema de Lixo e Higiene Pública, na versão de 1995?
Responde-se negativamente a tal questão.
De facto, a 2ª Secção do Tribunal Constitucional teve ocasião recentemente de conceder provimento a idênticos recursos de constitucionalidade interpostos de decisões do mesmo teor, proferidas pelo Senhor Juiz do 1º Juízo do Tribunal Judicial de Paredes.
Seguir-se-á, por isso, de perto o acórdão nº 1141/96, tirado em 6 de Novembro de 1996, ainda inédito.
7. Antes de mais, importa abordar a questão de inconstitucionalidade decorrente da invocada violação do nº 7 do art. 115º da Constituição.
Não restam dúvidas de que o nº 2 do art. 10º da Postura - que foi expressamente desaplicado na decisão recorrida, com fundamento em inconstitucionalidade - faz parte de um regulamento de eficácia externa, sendo, pois, uma norma regulamentar externa na medida em que projecta os seus efeitos para o exterior, atingindo todos os munícipes de Paredes que ficam obrigados ao que nela se dispõe.
Por outro lado, só no edital que publicitou em 1995 as alterações introduzidas à Postura se invocou, como sua lei habilitante, o art. 39º, nº 2, alínea a), do Decreto-Lei nº 100/84, de 29 de Março, na redacção dada pela Lei nº 18/91, de 12 de Junho.
Ora, como se demonstrou no referido acórdão nº 1141/96, a menção da lei habilitante nestes termos cumpriu a exigência do nº 7 do art. 115º da Constituição, decorrendo do próprio texto da Postura a sua ligação à competência camarária prevista na alínea h) do nº 1 do art. 51º do Decreto-Lei nº 100/84, de
29 de Março (redacção da Lei nº 18/91, de 12 de Junho). Pode ler-se nesse acórdão:
' É certo que, no Edital, se cita apenas a norma legal que define a competência da assembleia municipal para aprovar posturas e regulamentos, sob proposta da câmara (o mencionado artigo 39º., nº.2, alínea a), do Decreto-Lei nº.100/84), e não também a que inclui na competência dos municípios deliberar sobre «remoção, despejo e tratamento de lixos, detritos e imundícies domésticas» (artigo 49º., nº.3, do Código Administrativo), nem tão-pouco a que confere à câmara municipal competência para, ela própria, «fixar tarifas pela prestação de serviços ao público pelos serviços municipais (...), no âmbito da (...) recolha, depósito e tratamento de lixos» (artigo 51º., nº.1, alínea h), do Decreto-Lei nº.100/84). Simplesmente, para cumprir a exigência do artigo 115º, nº 7, da Constituição, o que importa é que os destinatários dos regulamentos fiquem a saber qual a norma ou normas legais que habilitam o seu autor a editá-los. Ora, tendo em conta que o Decreto-Lei nº 100/84, de 29 de Março, contém a definição da competência subjectiva e objectiva para a emissão de um regulamento deste tipo, a sua invocação é bastante para que os cidadãos fiquem a saber qual a habilitação legal do regulamento aqui em causa. Também não obsta à legitimidade constitucional da norma aqui sub iudicio o facto de a citação da lei habilitante se fazer apenas no Edital com que se lhe deu publicidade. De facto, a Constituição, ao impor à Administração o dever de citar, da forma expressa, nos próprios regulamentos, a lei habilitante, o que pretende é que os destinatários das normas regulamentares saibam em que norma legal se funda o poder com base nas quais elas são editadas, já que isso constitui garantia de segurança e de transparência. Ora, sendo essa a ratio da exigência constitucional, logo se vê que, para que aquele desiderato seja atingido, basta que a indicação de lei habilitante se faça no acto que dá publicidade ao regulamento (no caso, no edital que o deu a conhecer aos munícipes)'. (nº 4)
8. Tão-pouco se pode qualificar a tarifa em causa como um imposto local.
De facto, o nº 3 do art. 240º da Constituição inclui, entre as receitas próprias das autarquias locais 'as cobradas pela utilização dos seus serviços', receitas essas que abrangem o produto das taxas de utilização e de tarifas e preços de serviços (Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 3ª ed., Coimbra, 1993, p. 891).
O Tribunal Constitucional teve ocasião de considerar a criação de taxas como uma 'manifestação típica da autonomia local' (Acórdão nº 76/88, in Acórdãos do Tribunal Constitucional, 11º volume, p. 331), consideração que a Assembeia da República também acolheu ao publicar a Lei das Finanças Locais
(art. 4º, nº 1, alínea h), da Lei nº 1/87, onde se estabelece que constituem receitas dos municípios 'o produto da cobrança de taxas ou tarifas resultantes da prestação de serviços pelo município').
Ora, a distinção entre imposto e taxa, no plano constitucional, tem sido feita por contraposição entre o carácter unilateral daquele e a natureza bilateral ou sinalagmática da taxa, como resulta de jurisprudência firme do Tribunal Constitucional (por todos, vejam-se os acórdãos nºs. 76/88, agora citado, 640/95, publicado no Diário da República, II Série, nº 17, de 20 de Janeiro de 1996, e 1108/96, publicado no mesmo jornal e série, nº 294, de 20 de Dezembro de 1996).
Pode ler-se no acórdão nº 1141/96 que se vem acompanhando:
' Pois bem: recorda-se que, na área do concelho de Paredes, a recolha e destino definitivo do lixo estão a cargo dos Serviços de Limpeza da respectiva Câmara Municipal (cf. artigo 1º., nº.2, da Postura) e que o pagamento das tarifas devidas por essa recolha e destino é obrigatório para todos os munícipes, tanto pessoas singulares, como colectivas (cf. artigo 10º, nº.2, aqui sub iudicio). E acrescenta-se que o montante dessas tarifas, quando estiverem em causa indústrias, hospitais, centros de saúde ou supermercados, é determinado em função da área de cada estabelecimento (cf. artigo 18º., alínea D), na redacção de 13 de Outubro de 1995). A tarifa é, pois, uma quantia coactivamente paga pela utilização de um serviço - o serviço de recolha e destino do lixo -, que é um bem semipúblico, que a Câmara Municipal de Paredes, através do respectivo Serviço de Limpeza, põe à disposição dos munícipes que o pretendam utilizar.
Trata-se, assim, de uma taxa. Tal tarifa não perde a natureza de taxa pelo facto de ser paga por todos os munícipes (pessoas singulares ou colectivas), sendo o seu pagamento
«independente da quantidade de lixo produzido e/ou depositado».
É que - como se sublinhou no citado acórdão nº.76/88, a propósito de uma tarifa cobrada pela Câmara Municipal de Lisboa pela prestação, por parte do município, do serviço «de recolha, depósito e tratamento de lixos» (designada tarifa de saneamento) -, de um lado, «pela própria natureza do serviço em questão, é verdadeiramente impossível uma determinação rigorosa do universo dos utentes»; de outro, «o esquema de identificação previsto (na) deliberação não se configura como ilógico ou irrealista», pois «o índice de identificação escolhido para esse efeito envolve uma presunção muito forte de que os sujeitos tributados realmente utilizam o serviço de recolha, depósito e tratamento de lixos», já que todos os munícipes são produtores de lixo; por último - e recordando a lição de Teixeira Ribeiro - «as utilizações dos bens por que se pagam taxas (...) podem ser voluntárias ou obrigatórias. E as utilizações obrigatórias, por seu turno, ainda podem ser ou não solicitadas».' (nº 5)
Atendendo, por outro lado, a que apenas foi desaplicada a norma do nº 2 do art. 10º da Postura em causa, não tem sentido averiguar se os montantes fixados pelo art. 18º poderiam ou não ser tidos por desproporcionados, no caso de serem superiores ao custo do serviço prestado pela Camara (cfr. citado acórdão nº 640/95).
9. Não sofre, assim, de inconstitucionalidade a norma desaplicada, não se mostrando violada a alínea i) do nº 1 do art. 168º da Constituição.
III
10. Nestes termos e pelas razões expostas, decide o Tribunal Constitucional conceder provimento ao recurso, revogando-se o despacho recorrido, o qual deverá ser reformado em conformidade com a decisão sobre as questões de constitucionalidade.
Lisboa, 23 de Janeiro de 1997 Armindo Ribeiro Mendes Maria da Assunção Esteves Vitor Nunes de Almeida Maria Fernanda Palma Antero Alves Monteiro diniz Alberto Tavares da Costa José Manuel Cardoso da Costa