Imprimir acórdão
Processo n.º 97/11
3.ª Secção
Relatora: Conselheira Ana Maria Guerra Martins
Acordam na 3.ª Secção do Tribunal Constitucional:
I – Relatório
1. Nos presentes autos, em que são recorrentes A., B., Lda. e C., S.A. e recorrida D., S.A., foi interposto recurso, ao abrigo da alínea b) do nº 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional, de acórdão proferido pela 2ª Secção do Tribunal de Relação do Porto, em 04 de janeiro de 2011 (fls. 70 a 78), para que seja apreciada a constitucionalidade da norma extraída do artigo 28º, n.º 2, da Lei da Arbitragem Voluntária (aprovada pela Lei n.º 31/86, de 29 de agosto), quando interpretada no sentido de que “o prazo de propositura da ação de anulação, mesmo havendo duas decisões arbitrais, a inicial e outra complementar, se conta logo da primeira, independentemente e sem o conhecimento do resultado da arguição de nulidades e pedido de reforma suscitados e em apreciação” (fls. 627), por violação do direito de acesso à Justiça, consagrado no artigo 20º da Constituição da República Portuguesa.
2. Notificados para tal pela Relatora, os recorrentes produziram alegações, das quais se podem extrair as seguintes conclusões:
«1. Em termos fácticos, o que sucedeu nos autos foi o seguinte:
- Sob o nº 01/07/IAC/ACP/FP correu termos no Centro de Arbitragem Comercial do Instituto de Arbitragem Comercial da Associação Comercial do Porto uma ação (arbitral) em que foram partes recorrentes e recorrida.
- no âmbito de tal processo arbitral, foi proferida no dia 7/11/2008 uma primeira decisão, a qual veio a ser notificada aos requeridos, aqui recorrentes, em 13/11/2008 (cfr.doc. 1 com a P1);
- Em 24/11/2008 pelos aí requeridos, ora recorrentes, foi apresentado naquele processo arbitral requerimento em que se formulou o pedido de retificação de lapsos de escrita, a arguição de nulidade por assinaladas contradições entre os fundamentos e a decisão e por omissões de pronúncia bem como o pedido de reforma da decisão arbitral, tudo nos termos do disposto nos art.°s 667.°, 668°, n.º 1 alíneas c) e d) e 669.° n.º 2 do CPCiv;
- O Tribunal Arbitral, apreciou o requerimento referido, a que deu parcial provimento, mas apenas quanto à retificação de lapsos materiais, do que resultou não só a retificação de vários erros materiais como o esclarecer das alegadas omissões através dos esclarecimentos de fls. 2716 e seguintes quanto às arguidas nulidades e pedido de reforma, o que teve direta influência na decisão, nomeadamente quanto à data do início da contagem de juros;
- Tal apreciação do Tribunal Arbitral consubstancia uma verdadeira decisão pelo que proferiu, assim, decisão arbitral complementar da primeira em 18/12/2008 (Cfr.Doc.2 com a PI);
- Essa decisão complementar foi notificada aos requeridos, ora recorrentes, em 23/12/2008;
- A presente ação de anulação foi instaurada em 20/1/2009.
- O Douto Aresto em crise confirmou a decisão da 1ª instância, mantendo a interpretação e sentido que aí se deu ao Artigo 28. ° n.º 2 da Lei n.º 3 1/86 de 29 de agosto (LAV), ou seja, de que a caducidade do direito de intentar ação de anulação da decisão arbitral se conta desde a data da notificação da 1a decisão, sendo irrelevante o requerimento apresentado e a apreciação que fez ou não do mesmo o Tribunal Arbitral.
8. Esta interpretação do Art. 28° nº 2 LAV, julgada conforme ao Art. 20º CRP, determinou a improcedência da ação por se julgar caducado o direito dos recorrentes a intentarem.
9. Não resulta da lei nem do Regulamento Arbitral do Centro de Arbitragem Comercial da Associação Comercial do Porto a eliminação da possibilidade de a decisão arbitral, mediante reclamação de uma ou ambas as partes, poder ser retificada, esclarecida ou reformada pelos próprios árbitros que a proferiram.
10. Tal possibilidade é essencial para dar vida à efetiva tutela jurisdicional dos interesses das partes consagrado no Art. 20° CRP (sobretudo quando, como no caso dos autos, não há lugar a recurso por, nos termos do Regulamento Arbitral em questão, as partes ao aderirem ao mesmo estarem a renunciar ao seu direito de recorrer.
11. Todas as questões levantadas no requerimento que implicou a segunda decisão do Tribunal Arbitral são de ordem substantiva, material, pelo que apenas tal Tribunal poderia conhecer das mesmas, já que a ação de anulação, único expediente de recurso aos Tribunais Judiciais ainda viável, apenas se pode basear em fundamentos de cariz adjetivo ou processual - Art. 27° LAV.
12. Houve, por isso, duas decisões arbitrais — a proferida em 7/11/2008 e a proferida em 13/11/2008, sendo que esta, subsequente à primeira, a complementa, nela se integrando.
13. Assim o prazo de 30 dias para o exercício da ação judicial de anulação tem que se contar a partir da notificação desta última decisão arbitral.
14. De acordo com o disposto no art.° 329. ° do CCiv, o prazo de caducidade começa a correr ou seja, dá-se o seu início, no momento em que o direito puder legalmente ser exercido.
15. Estando pendente uma reclamação da decisão arbitral proferida onde se peticiona a sua retificação e reforma com vista à sua alteração, não faria sentido que se pudesse instaurar a ação de anulação sem que, apreciado o requerimento pelo qual se requereu a sua retificação e reforma, a mesma tomasse o seu figurino normativo final.
16. Só com a decisão arbitral notificada a 23/12/2008, a qual efetuou alterações na factualidade que alicerça a primeira decisão, é que se consolida a decisão e se inicia o prazo de 30 dias legalmente fixado para a instauração da ação de anulação.
17. Tal entendimento ou interpretação não pode ser afastado pelo facto de ter havido renúncia ao direito de recorrer ou por se estar perante direitos disponíveis, fatores que em caso algum podem legitimar o cercear de direitos fundamentais dos recorrentes como o de uma efetiva tutela jurisdicional.
18. De tal interpretação da lei resulta irremediavelmente precludido o direito dos recorrentes a uma efetiva tutela jurisdicional dos seus direitos e interesses que o Art. 20º da CRP consagra.
19. Como ensina J. Gomes Canotilho (Direito Constitucional — Almedina) “Os direitos fundamentais dos cidadãos são protegidos através da abertura da via judiciária, que deve conceber-se como uma garantia sem lacunas” — sic.
20. Ora, os direitos patrimoniais que se discutiam em tal processo arbitral, embora totalmente disponíveis, são merecedores e gozam de proteção jurídica.
21. O artigo 20° da Constituição é uma norma-princípio estruturante do Estado de Direito Democrático da qual emanam vários princípios e direitos conexos, entre os quais o princípio da proibição da indefesa e o direito à tutela jurisdicional efetiva, que postula a possibilidade de recurso a tipos de ações que assegurem a efetividade da proteção de direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos.
22. O Estado, só porque se está no âmbito de direitos disponíveis, apreciados num Tribunal Arbitral, alhear-se em absoluto da sorte dos seus cidadãos e dos seus direitos fundamentais.
23. A sua obrigação constitucional de garantir a efetiva tutela dos direitos dos cidadãos é bem demonstrada mesmo quando legitima o recurso a meios privados de resolução de conflitos, como os centros de arbitragem.
24. Como demonstra o Art. 38° da LAV, de que resulta o poder/dever, para o Estado, de definir os requisitos e o regime para outorga de competências a determinadas entidades para realizarem arbitragens voluntárias institucionalizadas, assim como as regras de reapreciação e eventual revogação das autorizações concedidas, quando se justifique — sic.
25. A alínea b) do Art. 9° da Constituição da República Portuguesa, elege como uma tarefa fundamental do estado garantir os direitos e liberdades fundamentais entre os quais avulta precisamente o direito à efetiva tutela jurisdicional — Art. 20° CRP.
26. Este Art. 20° CRP mais não é, por sua vez, do que um corolário do Art. 2° da CRP, que consagra que “A República Portuguesa é um Estado de Direito Democrático, baseado …no respeito e na garantia de efetivação dos direitos, liberdades e garantias fundamentais .
27. Como ensinam Jorge Miranda e Rui Medeiros (Constituição Portuguesa Anotada, tomo 1, 190) muito embora disponha o legislador de uma ampla margem de liberdade na concreta modelação do processo, não sendo incompatível com a tutela jurisdicional a imposição de determinados ónus processuais às “partes”, o que é certo é que o direito ao processo inculca que “os regimes adjetivos devem revelar-se funcionalmente adequados aos fins do processo e conformar-se com o princípio da proporcionalidade, não estando, portanto, o legislador autorizado, nos termos dos artigos 13º e 18º, nºs 2 e 3, a criar obstáculos que dificultem ou prejudiquem, arbitrariamente ou de forma desproporcionada, o direito de acesso aos tribunais e a uma tutela jurisdicional efetiva “.
28. Que é precisamente o que a interpretação dada ao nº 2 do Art. 28° LAV faz, violando o Art. 20° CRP.
29. Trata-se de uma interpretação infundada, desproporcionada e violadora do direito fundamental, constitucionalmente consagrado no n.º 1 do artigo 20. ° da Lei Fundamental, pois que preclude em absoluto quer a possibilidade de arguir seja perante quem for os vícios invocados perante o Tribunal Arbitral quer ainda a possibilidade de, respondida pelo Tribunal Arbitral tal arguição, considerar a data em que tal resposta foi notificada como integrando a decisão arbitral, de modo a que só a partir da mesma se inicie a contagem do prazo de caducidade do direito de requerer a anulação judicial de tal decisão.
30. De facto, houve realmente duas decisões arbitrais, sendo a segunda complementar da primeira e proferida na sequência de requerimento de arguição de nulidades e pedido de retificações e reforma daquela.
31. Só com a receção desta segunda decisão é que os recorrentes, como interessados diretos, tiveram acesso a uma verdadeira decisão definitiva.
32. Sendo a primeira decisão arbitral, insuscetível de recurso tinham necessariamente os recorrentes que, junto do Tribunal (arbitral) que a proferiu, arguir as nulidades que entendessem ocorrer e pedir a reforma da mesma nos termos previstos nos art.°s 666° a 670º do CPCiv.
33. Desconsiderar em absoluto a segunda decisão emanada do Tribunal Arbitral por se entender que começou logo com a primeira a correr o prazo de um mês para intentar ação de anulação é uma interpretação de tal preceito da LAV de que resulta, necessariamente, uma redução da garantia constitucional de acesso ao direito e da efetiva apreciação jurisdicional, consagrada no art.° 20. ° n.º 1 da Constituição da República Portuguesa.
34. Na verdade, tal interpretação ou obriga a intentar uma coxa ação de anulação, prematura, em que se desconhece o teor final da decisão arbitral ou tem como consequência a deslealdade de, quando se recebe a decisão arbitral definitiva, percebendo-se todo o seu teor, sentido e alcance, já se encontra caducado o direito de, em ação judicial, requerer a sua anulação.
35. É evidente que em qualquer destas hipóteses fica minado, seriamente comprometido, o direito dos recorrentes a uma efetiva tutela jurisdicional dos seus interesses, o que acarreta violação do Art. 20º CRP.
36. De facto, os vícios da nulidade emergente da contradição entre os fundamentos e a decisão (art.° 668.° n.º 1 alínea c) do CPCiv), do manifesto lapso do juiz na qualificação jurídica dos factos ou a existência no processo de elementos que, só por si, impunham decisão diversa, todos eles invocados pelos recorrentes perante o Tribunal arbitral não têm natureza processual ou adjetiva.
37. Pelo que só perante o Tribunal Arbitral, como fizeram os recorrentes, podiam ser arguidos e conhecidos.
38. O direito de obter tal reparação nada tem que ver com o direito a recorrer, esse sim, totalmente afastado das partes ao aderirem à convenção de arbitragem referida nos autos.
39. Assim, era obrigatório que os recorrentes aguardassem a posição final do Tribunal Arbitral, a qual nos termos da lei se integra na decisão inicial — cfr. nº 2 Art. 670° CPCiv na redação aplicável — para, obtida a decisão final, definitiva, corrigida ou não de tais vícios, propor, caso ainda se justificasse ou quisessem, a ação de anulação.
40. A interpretação efetuada do Art. 28° nº 2 LAV, tem, inapelavelmente, as seguintes consequências:
- Elege os centros de arbitragem, maxime, aqueles de cujas decisões não há recurso, como o Centro de Arbitragem Comercial da Associação Comercial do Porto à Olímpica natureza de entidades cujas decisões estão por definição isentas de vícios materiais que acarretem a sua nulidade ou imponham a sua reforma, o que não é crível nem aceitável;
- Implica que ainda que ostensivas e flagrantes as causas de nulidade substantiva de uma decisão arbitral e/ou as causas determinantes da sua reforma, tais questões jamais poderiam ser levantadas nem apreciadas por quem quer que fosse - o Tribunal Arbitral porque estaria esgotado o seu poder jurisdicional e o tribunal judicial porque se trata de matérias de cariz substantivo ou material, estranhas por isso às questões meramente adjetivas ou processuais que podem fundar as ações de anulação das decisões arbitrais;
- Em resumo — mesmo quando uma decisão arbitral padece de ilegalidades gritantes as mesmas teriam que se manter na ordem jurídica como se nada se passasse pois que não há nenhum órgão jurisdicional - ainda que o próprio tribunal arbitral — perante o qual se possa levantar as competentes questões de direito de modo a que os interesses e direitos da parte lesada sejam objeto de efetiva apreciação jurisdicional, em clara violação do art. 20º da Constituição da República Portuguesa;
41. Um e outro resultados inadmissíveis, estribados numa interpretação do nº 2 do Art. 28° LAV que, salvo o devido respeito, consubstancia grosseira violação do direito à efetiva apreciação e tutela jurisdicional consagrado no Art. 20° da Constituição da República Portuguesa.» (fls. 673 a 681).
3. Devidamente notificada para o efeito, a recorrida veio apresentar contra-alegações, que ora se resumem:
«(…)
— A ALEGADA DECISÃO ARBITRAL COMPLEMENTAR.
Ficou já dito acima que os recorrentes entendem a alegada segunda decisão como uma decisão arbitral complementar, tanto mais que teria apreciado o requerimento por eles apresentado a 24.11.2008, ter-lhe-ia dado parcial provimento e daí a sua complementaridade relativamente ao “verdadeiro” acórdão arbitral Contudo.
E como se salientou já na alegação da recorrida para o Venerando Tribunal da Relação do Porto, a posição dos srs. árbitros sobre tal requerimento, como facilmente se deduz da sua simples leitura, foi a seguinte:
- “ Assim, nem o julgamento sobre a procedência ou improcedência das alegadas nulidades da sentença, nem a decisão sobre a requerida reforma da sentença, designadamente nos termos em que vêm formulados, estão já ao alcance do extinto poder jurisdiciona! dos Árbitros “;
- “como resulta da orientação acima propugnada e adotada, esgotou-se já o poder jurisdicionai dos árbitros. Estão, por isso, impedidos de apreciar substantivamente o demais requerido — designadamente, por visar a alteração da decisão que, com caráter final, já foi por eles proferida”.
Ora....
Chamar a isto uma decisão arbitral que constitui complemento e parte integrante da decisão arbitral de 2008.11.07 é coisa sem sentido algum.
Não se ignora que os srs. Árbitros, não obstante a afirmação de tal posição relativa ao requerido pelos ora recorrentes, teceram algumas considerações adicionais sobre as questões suscitadas.
Fizeram-no, contudo, fazendo anteceder tais considerações por uma declaração proferida nestes termos:
“Não obstante, deixam ainda consignada algumas notas em relação ao que pelos Requerentes veio alegado” (seguindo-se depois tais notas). Ora,
É manifesto que a pronúncia dos Srs. Árbitros sobre tais matérias foi um ato de pura e simples cortesia, que nada acrescentou ou alterou ao teor da decisão antes proferida, e no pressuposto de que, mesmo que quisessem aceder às pretensões das ora apelantes, tal sempre lhes estaria vedado face às disposições legais que ali citaram.
E nada acrescentou ou alterou ao teor dessa anterior decisão pela simples, mas decisivamente razão de os srs. Árbitos entenderem — e terem-no dito expressamente — que já o não podiam fazer ainda que os ora recorrentes tivessem razão.
É, assim, precisa muita “imaginação” para daqui concluir ter existido uma segunda decisão arbitral, complementar da primeira, e daí admitir que só a partir de então o referido prazo de 30 dias para a propositura da ação de anulação se deveria iniciar.
“Imaginação” essa que justifica também a afirmação constante da alegação dos recorrentes de ter o Tribunal Arbitral apreciado o seu requerimento, dando-lhe parcial provimento.
Esse parcial provimento decorreria de terem os Srs. Árbitros entendido que, podendo apenas “apreciar e retificar eventuais lapsos ou erros materiais involuntariamente cometidos, desde que não alterem nem ponham em causa a substância do já definitivamente decidido”, deveria ser corrigido “o erro datilográfico contido a fis. 170, relativo à data da celebração do contrato discutido nos autos e partir do qual deverão ser contados juros”.
E justificam os Srs. Árbitros tal correção da forma seguinte : “Trata-se de uma data mencionada várias dezenas de vezes ao longo da decisão, sendo, por isso, manifesto o lapso que, assim deve ter-se por retificado, substituindo-se “21.02.2002” por “21.03.2002””.
É a esta retificação que os ora recorrentes chamam, pois, uma decisão complementar do acórdão arbitral que havia sido proferído com data de 07.11.2008 e a eles notificado em 13.11.2008.
É manifesta a sem razão dos recorrentes, tanto mais que a retificação de erros ou meros lapsos materiais pode seguramente ocorrer a todo o tempo, oficiosamente ou a pedido de qualquer das partes, sendo tal possibilidade de todo irrelevante para a questão ora em análise.
Tal como sustentado na “decisão” dos Srs. Árbitros que recaiu sobre o requerimento dos ora recorrentes, citando CARVALHO FERNANDES, “o esgotamento do poder jurisdicional do juiz quanto à matéria da causa significa que, lavrada e incorporada nos autos a sentença, o juiz já não pode alterar a decisão em causa, nem modificar os fundamentos dela.”
“Respeitando, porém, esse núcleo fundamental da pronúncia do Tribunal sobre as pretensões das artes, o juiz mantém ainda o exercício do poder jurisdicional para a resolução de algumas questões marginais, acessórias ou secundárias, que a sentença pode suscitar entre as Partes”.
Foi isso, e apenas isso, que ocorreu no caso dos presentes autos.
A ser como os ora recorrentes referem, ainda hoje poderiam solicitar a retificação de erro material ou simples lapso na decisão arbitral em causa, e teriam sempre o prazo de 30 dias a contar de tal retificação para instaurar a ação de anulação da dita decisão arbitral.
Essa é, contudo, uma consequência que, de todo, se não pode aceitar como processualmente possível.
II — A POSSIBILIDADE DE ESCLARECIMENTO OU REFORMA DE DECISÃO ARBITRAL PELOS PRÓPRIOS ÁRBITROS.
No caso dos presentes autos, como vem perfeitamente esclarecido, não havia nem há direito a recurso relativamente ao douto acórdão do Tribunal Arbitral que foi proferido com data de 07.11.2008, dado que as partes, ao abrigo do disposto no art. 15 nºs 1 e 2 da LAV, acordaram na aplicação do Regulamento do Tribunal Arbitral do Centro de Arbitragem Comercial do Porto, e este regulamento, nos termos do disposto no seu art. 31, expressamente consigna que a submissão do litígio ao Centro de Arbitragem Comercial envolve a renúncia aos recursos, sem prejuízo do direito das partes de requererem a anulação da decisão arbitral, nos termos dos arts. 27 e 28 da LAV.
Para além da expressa renúncia ao recurso que a submissão ao dito Tribunal Arbitral do Centro de Arbitragem Comercial da Associação Comercial do Porto implica e pressupõe, mais refere a disposição do art. 25 da LAV que “O poder jurisdicional dos árbitros finda com a notificação do depósito da decisão que pôs termo ao litígio ou, quando tal depósito seja dispensado, com a notificação da decisão às partes”.
E foi justamente esse facto que os Srs. Árbitros deixaram claro na resposta que subscreveram, por unanimidade, ao teor do requerimento dos ora recorrentes por via do qual pretendiam pôr em causa o douto acórdão arbitral datado de 07.11.2008.
Nem se diga, para contrariar esta evidência, que tal circunstância, decorrente das disposições legais acima citadas, “não afasta a possibilidade de a dita decisão, mediante reclamação de uma ou ambas as partes, poder ser retificada, esclarecida ou reformada pelos srs. árbitros que a proferiram”.
É que quanto à possibilidade de retificação, quando estejam em causa simples erros ou lapsos materiais facilmente detetáveis do próprio teor da decisão que estiver em causa, ela não deixa nunca de existir, como resultado de um princípio geral de direito que, aliás, encontra consagração no disposto no art. 667 nºs 1 e 2 do CPC, que é igualmente aplicável nas instâncias de recurso quando a elas houver lugar, e que a possibilidade de a decisão em causa ser suscetível de recurso não impede ou condiciona de forma alguma.
Isto é, ainda hoje poderia tal retificação ocorrer, se detetado lapso ou erro material do tipo que agora está em causa, e seguramente ninguém admitiria que tal circunstância permitiria que, dentro dos 30 dias posteriores a essa retificação, ter essa dita retificação como objeto de uma decisão complementar da primeira, e logo a propositura de uma ação de anulação dessa primeira decisão arbitral.
A reforçar tudo isso, acrescenta mesmo aquele normativo legal (no seu nº 3) que “se nenhuma das partes recorrer, a retificação pode ter lugar a todo o tempo”, e a requerimento de qualquer das partes ou por iniciativa do próprio juiz.
Já quanto a reclamações que visem a obtenção de esclarecimentos ou a reforma da decisão arbitral, a questão e a resposta é já diferente.
É que, nos termos do disposto no já referido normativo do art. 31 do Regulamento do Tribunal Arbitral do Centro de Arbitragem Comercial, a impossibilidade de recurso não interfere com a admissibilidade da ação de anulação.
E essa ação de anulação apenas pode assentar em vícios de natureza formal, e nunca em razões ou fundamentos relativos ao mérito da ação.
E não se pode ignorar que tal possibilidade existe igualmente quando o lapso ou erro material ocorra em acórdão da segunda instância ou do Supremo Tribunal de Justiça (vide arts. 716 e 726 do CPC ), ou relativamente a acórdão do Tribunal Constitucional (vide art. 69 da Lei n° 28/82, de 15.11, com as sucessivas alterações que lhe foram introduzidas posteriormente).
E vícios que, como se viu já, se acham taxativamente referidos na lei, não admitindo a sua extensão a outros fundamentos para além dos que o legislador enumera nas diferentes alíneas da disposição do art. no art. 27 nº 1 da LAV.
(…)
Os ora recorrentes não invocaram na sua dita reclamação que a decisão arbitral em causa careça de fundamentação, tanto mais que, como bem sustenta LUIS LIMA PINHEIRO já acima citado, “a decisão só será anulável, por falta de fundamentação, se não forem enunciadas as razões em que se baseia. A deficiência ou erro de fundamentação não constituem causa de anulação”.
Os recorrentes invocaram já nessa sua dita reclamação a nulidade da decisão arbitral, bem como peticionaram aí a respetiva reforma
Lendo o teor dessa sua dita reclamação (vide doc. nº 2 junto com a contestação da ora recorrida), verifica-se que, a fundar a arguição da nulidade do douto acórdão arbitral, invocaram os ora recorrentes:
- contradições entre os fundamentos e a decisão;
- omissões de pronúncia.
Já na parte relativa à “pretendida” reforma da decisão arbitral, os recorrentes subdividem esse capítulo da sua reclamação em dois distintos títulos, a saber : a) a ilegal condenação dos RR em obrigações emergentes do mútuo e juros; e b) a ilegal resolução do contrato-promessa pela A. e suas consequências.
Ora....
Sem prejuízo do que abaixo se dirá quanto á constitucionalidade do dispositivo do art. 28 da LAV, na interpretação que o douto acórdão aqui recorrido lhe deu, a verdade é que os acima invocados fundamentos de nulidade do douto acórdão arbitral constituem expressamente fundamentos da ação de anulação, pelo que se não vê como aquela interpretação aqui posta em causa pelos recorrentes possa atentar contra o princípio da tutela jurisdicional efetiva prevista no art. 20 da CRP.
Por outro lado,
A expressa renúncia a recurso que a atribuição convencional de jurisdição ao tribunal arbitral que proferiu no caso presente a competência para o julgamento do litígio entre as partes também se não vê como possa ser entendida como contrária ao mesmo princípio da tutela jurisdicional efetiva.
III — A INEXISTÊNCIA DE QUALQUER INCONSTITUCIONALIDADE NA INTERPRETAÇÃO DADA PELO DOUTO ACÓRDÃO RECORRIDO À DISPOSIÇÃO DO ART. 28 N 2 DA LAV
Deverá aqui começar por se recordar que a CRP expressamente reconhece a possibilidade, no seu art. 202 nº 4, de recurso, por parte do legislador ordinário, a instrumentos e formas de composição não jurisdicional de conflitos, assim consagrando a conformidade constitucional com a existência e funcionamento de tribunais arbitrais, bem como, naturalmente, as decisões por ele proferidas.
Por outro lado,
Nessa expressa admissibilidade de recurso a meios e instrumentos e formas de composição não jurisdicional de conflitos está contida naturalmente a possibilidade de as partes acordarem sobre as regras de processo a observar na arbitragem, tal como previsto no art. 15 n2 1 e 2 da LAV.
(…)
A conformidade com a CRP de tal possibilidade acha-se prevista na disposição do art. 16° da LAV, que contém os princípios fundamentais a que a essa tramitação processual deverá necessariamente subordinar-se, sob pena de a decisão arbitral que venha a ser proferida vir a ser anulada (arf. 27 n° 1 ai c) da LAV).
(…)
No caso dos presentes autos, e ressalvando a situação do erro material e mero lapso de escrita a que já acima se fez referência, viu-se já também que as hipóteses de nulidades invocadas pelos recorrentes na sua “reclamação” assentavam na alegada contradição entre os fundamentos e a decisão, por um lado, e na omissão de pronúncia do douto acórdão arbitral.
No que toca ao primeiro de tais vícios, como no que respeita às apontadas ilegalidades que estão subjacentes à pretendida reforma do douto acórdão do Tribunal Arbitral, e como é fácil de concluir, está em causa uma discordância dos recorrentes relativamente ao teor e sentido da decisão proferida, implicando a sua apreciação uma reanálise do mérito da questão.
Ora
Tal reanálise está, no caso presente, e por acordo das partes, de todo afastada, uma vez afastada a possibilidade de recurso do douto acórdão arbitral.
E não existe dúvida legítima sobre a admissibilidade constitucional de tal renúncia, expressa ou implícita, ao direito de recorrer, dispondo o legislador de liberdade para estabelecer os meios de impugnação que considere oportunos e de os condicionar a determinadas exigências.
Ponto é que tais exigências se não afigurem como obstáculos injustificados e arbitrários o que seguramente não se verifica no caso presente.
Não pode ignorar-se que se está, no caso presente, perante direitos disponíveis pelas partes, como bem salienta o douto acórdão recorrido, e que no âmbito do processo que correu seus termos pelo tribunal arbitral, os recorrentes dispuseram das mais amplas possibilidades de defesa.
Não pode também ignorar-se que, relativamente ao instituto da arbitragem voluntária, e havendo renúncia ao recurso, a “filosofia” subjacente à respetiva regulamentação é a de que, no que toca à decisão relativa ao mérito da causa, é ela definitiva, esgotando-se o poder jurisdicional dos árbitros com o depósito do acórdão arbitral na secretaria ou com a sua notificação às partes Essa é, como se viu, a solução consagrada no Regulamento do Centro de Arbitragem Comercial da Associação Comercial do Porto, que as partes expressamente adotaram na convenção arbitral entre elas celebrada.
Relativamente aos vícios de forma, ou àqueles que se traduzam na violação de princípios fundamentais de qualquer processo, a impugnação da decisão arbitral apenas pode ser desencadeada por força da ação de anulação, nos termos do disposto no art. 27 nº 1 da LAV, ação essa a propor no prazo de 30 dias a contar da data da decisão arbitral em causa.
Dúvidas são levantadas na doutrina sobre se, para além dos fundamentos indicados na disposição do art. 6 da LAV, por remissão do art. 27 n° 1 al. c), apenas quanto à hipótese de a decisão arbitral ser contrária á ordem pública portuguesa (Vide Lima Pinheiro, obra e local citados acima 3, hipótese essa que no caso se não verifica seguramente).
Esta “arquitetura legal” em nada ofende ou viola o princípio constitucional da tutela judicial efetiva, cabendo inequivocamente na esfera da livre conformação legislativa do legislador ordinário.
(…)
Por outro lado,
Nem sequer podem os ora recorrentes invocar ter sido aqui desrespeitado o princípio da proporcionalidade, tido como marcante em termos da regulamentação e condicionamento dos direitos fundamentais por parte do legislador ordinário.
É que a arbitragem voluntária como instrumento de resolução de conflitos privados, para além de ter reconhecimento constitucional como se viu acima, tem por finalidade a maior celeridade na realização da justiça, com uma aceitável redução das formalidades inerentes à normal tramitação processual
E o único limite é justamente aquele núcleo de garantias processuais cuja inobservância se traduziria numa situação de “indefesa” constitucionalmente proibida, tendo o legislador ordinário, dentro de tais limites, total liberdade na formulação das soluções legislativas concretas que tenha por mais adequadas ao prosseguimento de uma eficaz aplicação do direito e realização da justiça.
Mas no caso presente nada disso ocorreu, isto é, tais limites foram seguramente respeitados como os recorrentes bem sabem, tendo-se o legislador ordinário, na redação dada ao art. 28 nº 2 da LAV, e com a interpretação acolhida no douto acórdão recorrido, mantido dentro dos seus poderes de livre conformação concreta do direito à proteção jurídica e de acesso aos tribunais.
(…)
Quanto à outra nulidade assacada ao douto acórdão arbitral em causa — a alegada omissão de pronúncia — constitui ela fundamento expresso da ação de anulação, e não se vê por que razão os recorrentes não a intentaram desde logo, optando antes por deduzir reclamação não prevista e processualmente inadmissível.
Tratou-se uma estratégia dos recorrentes processualmente assumida, tida por desadequada e errada pelo douto acórdão recorrido ao que se vê, e que não pode ser “remediada” com o recurso ao vício da inconstitucionalidade baseado na inexistência da tutela jurisdicional efetiva.
Tutela jurisdicional, no caso presente, tinham-na os recorrentes à sua disposição, porque abstratamente prevista na lei, e só a não utilizaram porque não quiseram.
Não faz, assim, qualquer sentido dizer-se aqui que o legislador criou, de forma desproporcionada, um obstáculo ao direito de acesso aos tribunais e a uma tutela jurisdicional efetiva.
(…).» (fls. 687-verso a 697)
Posto isto, cumpre apreciar e decidir.
II – Fundamentação
4. A norma cuja fiscalização de constitucionalidade se requer consta da Lei de Arbitragem Voluntária (aprovada pela Lei nº 31/86, de 29 de agosto) e dispõe o seguinte:
“Artigo 28º
Direito de requerer a anulação; prazo
1 – (…)
2 – A ação de anulação pode ser intentada no prazo de um mês a contar da notificação da decisão arbitral.”
Para efeitos de determinação do objeto do presente recurso, importa notar que a decisão recorrida procedeu a uma interpretação normativa daquele preceito legal de acordo com a qual o início da contagem do referido prazo de instauração de ação de anulação deveria ser contado a partir da decisão arbitral originária, que decidiu sobre o mérito da questão controvertida, e não a partir da decisão arbitral subsequente, que, determinando a retificação de erros materiais, concluiu pela impossibilidade de pronúncia sobre alegadas contradições entre a decisão e seus fundamentos, omissões de pronúncia e, consequentemente, pela impossibilidade de reforma da decisão arbitral originária.
Senão veja-se:
“Para a questão da caducidade do direito à ação relevam os seguintes factos:
No processo arbitral os Autores, e ora recorrentes, foram notificados em 13 de novembro de 2008, do acórdão arbitral;
Em 24 de novembro de 2008, os Autores (ora recorrentes) apresentaram requerimento no qual invocavam a existência de lapsos de escrita no acórdão arbitral, bem como contradições entre os fundamentos e a decisão, omissões de pronúncia, a ilegalidade da condenação dos R.R., em obrigações emergentes do mútuo e juros e a ilegalidade da resolução do contrato promessa pela ora recorrida e as suas consequências, concluindo por dever ser ordenadas as retificações referidas e julgados procedentes a arguição de nulidades e o pedido de reforma da decisão arbitral;
Os Autores, ora recorrentes, foram notificados da decisão sobre as antecedentes pretensões no dia 23/12/2008;
As partes no litígio em causa na instância arbitral renunciaram à possibilidade de recurso (art. 31°, do Regulamento do Tribunal Arbitral do Centro de Arbitragem Comercial, junto a fls. 308 e 319 dos presentes autos).
A ação foi instaurada em 20 de janeiro de 2009.
Como já acima referimos o art. 27°, da citada Lei n.º 31/86, de 29 de agosto estipula que só o tribunal judicial pode anular uma sentença arbitral com os fundamentos aí enunciados.
E tal como a decisão recorrida entendemos que pretendendo os A.A. a anulação daquela decisão arbitral (e estando excluída a via de recurso) o meio processual adequado para ultrapassar as nulidades indicadas nas diversas alíneas do citado art. 27°, n.º 1, era terem exercido o direito de requerer a anulação perante o tribunal judicial, aí intentando a respetiva ação, no prazo de um mês a contar da notificação daquela decisão arbitral (art. 28°, da Lei 31/86).
E assim, entende-se que o prazo de um mês para exercer o direito de propor a ação de anulação da decisão arbitral deve contar-se desde a respetiva notificação ou seja, desde 13 de novembro de 2008, momento a partir do qual também começou a correr o prazo de caducidade desse direito.
É que expressamente a lei proclama (art. 328°, do Código Civil) que, em princípio a caducidade não se suspende nem se interrompe, apenas se impede ou não impede. Como?
Só a impede, a prática, dentro do prazo, do ato a que a lei atribua efeito impeditivo (art. 331°, do C. Civil).
Aqui se revela, que o ato impeditivo da caducidade é o da propositura da ação (de anulação).
Não pode pois, tal como sustentaram os recorrentes, contar-se o prazo de um mês para a propositura da ação de anulação, a partir da notificação da decisão que recaiu sobre a pretensão de anulação da decisão arbitral e cuja notificação ocorreu em 13 de novembro de 2008.
E não obstante os Autores, ora recorrentes, também terem pedido a retificação de lapsos manifestos de escrita no mesmo requerimento em que pediram a anulação da decisão arbitral (e que foi deferida), não estando a retificação de tais erros ou lapsos dependente de prazo e não conduzindo os mesmos a anulação da decisão, nada obsta a que o decurso do prazo de caducidade se iniciou a partir da notificação da decisão arbitral aos A.A. em 13/11/2008.
E considerando-se efetuada a proposição da ação com o recebimento da petição inicial na secretaria, e, tendo esta sido recebida em 20 de janeiro de 2009, verifica-se que o prazo de caducidade estabelecido no art. 28°, n.º 2, da Lei 31/86, de 29/08 já estava consumado quando a ação foi proposta.
A caducidade do direito de acionar é uma exceção de direito material conduzindo o decurso do prazo à morte daquele direito, operando a extinção de forma direta e automática.
Nestes termos, conclui-se ter caducado o exercício do direito dos A.A. assim se tornando impossível o seu exercício judicial.
Improcedem, pois, as respetivas conclusões.” (fls. 613 a 615)
Não competindo ao Tribunal Constitucional apreciar se aquela interpretação normativa corresponde à solução mais adequada, no plano do Direito infraconstitucional, importa tão só apreciar se contraria o direito fundamental de acesso à Justiça (artigo 20º, n.º 1, da CRP).
5. Note-se, antes de mais, que é jurisprudência consolidada neste Tribunal (cfr., a mero título de exemplo, o Acórdão n.º 250/96, disponível in http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/) que a compatibilização entre o direito de acesso à Justiça (artigo 20º, da CRP) e a legitimação constitucional dos tribunais arbitrais (artigo 209º, n.º 2, da CRP) impõe uma garantia de não privação do direito de acesso aos tribunais comuns, com vista a um controlo – mais ou menos amplo, consoante a vontade expressa pelo legislador – daquelas decisões arbitrais. Assim, através do acórdão supra citado, afirmou-se que:
“(…) garantindo a Lei nº 31/86, de 29 de agosto, a possibilidade de impugnação da decisão arbitral, quer através de requerimento de anulação, dirigido ao tribunal judicial, quer através de recurso, a interpor para o Tribunal da Relação, em nada o tribunal arbitral voluntário contraria o artigo 20º da Constituição. Pode mesmo dizer-se que o tribunal arbitral, como tribunal que é, faz parte da própria garantia de acesso ao direito e aos tribunais
10. Permitindo a Constituição a existência de tribunais arbitrais voluntários para a resolução de litígios, admite também, necessariamente, que às respetivas decisões não impugnadas tempestivamente seja conferida força de caso julgado, sem ulterior possibilidade de reapreciação da questão por outro tribunal. Para que um tribunal, qualquer que seja, possa dirimir os conflitos de interesses públicos e privados que lhe são submetidos no exercício da função jurisdicional, é indispensável que as suas decisões, reunidos que estejam certos requisitos, sejam dotadas da estabilidade e da força características do caso julgado.”
Sintetizando o regime jurídico português vigente admite a impugnação das decisões arbitrais mediante três vias: i) ação de anulação – que apenas permite um controlo restrito de aspetos formais da decisão arbitral (assim, ver Albino Mendes Batista, Arbitragem Desportiva – Tribunal competente para o conhecimento da ação de anulação de decisão arbitral, in «Revista do Ministério Público», n.º 87, 2001, p. 134; Rui Ferreira, Anulação da Decisão Arbitral – Taxatividade dos Fundamentos de Anulação, in «Análise de Jurisprudência sobre Arbitragem» (org. Maria França Gouveia), Almedina, 2011, p. 203); ii) recurso – que permite um controlo mitigado da decisão de mérito, dependente da eventual renúncia, parcial ou integral; iii) oposição à execução – através da qual se invocam fundamentos específicos de impugnação da decisão arbitral (para uma análise mais exaustiva do sistema tripartido de impugnação de decisões arbitrais, ver Paula Costa e Silva, Os meios de impugnação de decisões proferidas em arbitragem voluntária no Direito interno português, in «Revista da Ordem dos Advogados, 1996, pp. 182-192; Cardona Ferreira, Arbitragem: Caminho da Justiça? Perspetiva de um magistrado judicial. Breves referências ao recurso, à anulação e execução da sentença arbitral, in «O Direito», 2009, II, pp. 282-286).
Daqui decorre, igualmente, que – por se tratar de tribunais voluntariamente constituídos pelas partes – é admissível que o direito de recurso, para os tribunais comuns, das decisões proferidas pelos tribunais arbitrais possa ser mais intensamente restringido e até mesmo alvo de supressão, desde que mediante renúncia livre e voluntária dos respetivos titulares (como sucede, nos presentes autos, por força da adesão ao Regulamento do Tribunal Arbitral do Centro de Arbitragem Comercial do Porto que, no seu artigo 31º, prevê a renúncia ao direito de recurso da decisão arbitral final). Deste modo, apesar de vigorar um princípio de recorribilidade das decisões arbitrais, não pode deixar de se notar que aquele é profundamente limitado pela possibilidade de renúncia voluntária ao respetivo direito de recurso (assim, entre outros, ver Paula Costa e Silva (cfr. Anulação e recursos da decisão arbitral, in «Revista da Ordem dos Advogados», dezembro 1992, pp. 1007-1009; Carvalho Fernandes, Dos recursos em processo arbitral, in «Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor Raúl Ventura», Volume II, 2002, pp. 143-149).
Além disso, é opinião consensual, na doutrina (cfr. Carvalho Fernandes, ob. cit., pp. 160 e 161) que a notificação às partes do depósito da decisão arbitral que coloca termo ao litígio (cfr. artigo 25º da Lei de Arbitragem Voluntária) implica o esgotamento do poder jurisdicional dos juízes-árbitros que, consequentemente, ficam impedidos, a partir daquela data, de alterar – de modo substancial – a decisão sobre o mérito da causa. Sem que, evidentemente, tal impeça os juízes-árbitros de resolver questões processuais acessórias, que não versem sobre o conteúdo substancial da questão controvertida. Neste sentido, referindo-se ao preceito legal supra referido, Carvalho Fernandes (cfr. ob. cit., pp. 160 e 161) esclarece que:
“(…) a partir daquele dos referidos momentos que seja aplicável, consoante os casos, os árbitros ficam impedidos de qualquer outra intervenção no processo e que o próprio tribunal deixava «ipso facto», de existir. No mesmo sentido é invocada a natureza efémera do tribunal arbitral.
Temos alguma dúvida em aceitar, sem exame, este entendimento.
(…)
É certo que o art. 25.º da Lei n.º 31/86 não ressalva, como consta do n.º 2 do art. 666.º do Código de Processo Civil, a possibilidade de o tribunal arbitral retificar erros materiais, suprir nulidades, esclarecer dúvidas da decisão ou de a reformar quanto a custas, nos casos em que tais tarefas incumbem ao juiz do processo. Não vemos, porém, razão válida, em especial nos casos em que a decisão não admita recurso, para tais atos serem vedados aos árbitros e ter a sua decisão de subsistir com erros ou inexatidões que podem ter na sua origem manifestos lapsos.
Em verdade, parece-nos que valem, para o tribunal arbitral, as considerações tecidas por Antunes Varela, Miguel Bezerra e Sampaio e Nora a respeito da lei processual comum em análise, nomeadamente, quanto à necessidade de o entender em termos hábeis. É que o «esgotamento do poder jurisdicional do juiz quanto à matéria da causa significa que, lavrada e incorporada nos autos a sentença, o juiz já não pode alterar a decisão da causa, nem modificar os fundamentos dela.
Respeitado, porém, esse núcleo fundamental do pronunciamento do tribunal sobre as pretensões das partes, o juiz mantém ainda o exercício do poder jurisdicional para a resolução de questões marginais, acessórias ou secundárias que a sentença pode suscitar entre as partes»”.
Por outro lado, ainda que numa perspetiva de Direito a constituir, Paula Costa e Silva (cfr. Os meios de impugnação de decisões proferidas em arbitragem voluntária no Direito interno português, cit., p. 184) chegou mesmo a propor que fosse adotada uma solução legislativa que permitisse a recolha de assinaturas dos juízes-árbitros em falta, o que, “a contrario”, corresponde ao reconhecimento de que, de acordo com a solução legislativa vigente, aquela arguição de nulidade apenas poderia ter lugar em sede de ação de anulação:
“Partindo certamente da observação de que o tribunal arbitral se constitui para a resolução de um litígio e se extingue com o proferimento da decisão final, o legislador terá pensado ser impossível colher a assinatura em falta, optando por facultar às partes a anulação da decisão. Também os argumentos derivados do esgotamento dos poderes jurisdicionais do tribunal, à semelhança do que encontramos no art. 666.º/1 do Código de Processo Civil, poderão ter influenciado o legislador.
Parece-nos, porém, ser solução questionável. Desde logo porque nem sempre se assiste a uma extinção do tribunal com o proferimento da decisão. Bastará pensar nas arbitragens institucionalizadas, às quais se aplicará o disposto no art. 27.º. E mesmo que o tribunal veja esgotados os seus poderes jurisdicionais e se desmembre com a prolação da sentença, teria sido preferível conceber um esquema alternativo que permitisse a recolha da (ou das) assinatura(s) em falta, à semelhança do regime previsto no art. 668.º/3 do Código de Processo Civil.”
Ora, nos autos recorridos, sucedeu precisamente que o tribunal arbitral considerou não dispor de poderes para apreciar os pedidos formulados pelos recorrentes, tendo-se limitado a proceder a meras retificações de erros materiais:
“Nos termos do art. 30°, nº 1 do Regulamento do Tribunal Arbitral do Centro de Arbitragem Comercial, “o Presidente do Tribunal mandará notificar as Partes da pronúncia da decisão e o depósito do original na Secretaria ...”. O que aconteceu.
O art. 32° do mesmo Regulamento, estabelece que “a decisão do Tribunal Arbitral é final”.
Por seu lado, o art. 25° da LAV (Lei nº 3 1/86, de 29 de agosto), determina que “o poder jurisdicional dos árbitros finda com a notificação do depósito da decisão que pós termo ao litígio...”.
A partir deste texto, tem-se defendido que, depois daquele momento, os árbitros ficam impedidos de qualquer outra intervenção no processo e que, a partir dali, designadamente face à natureza efémera do Tribunal Arbitral, ele deixa de existir.
(…)
Acompanhando a orientação assim propugnada por CARVALHO FERNANDES, pode então admitir-se que os Árbitros tenham ainda poder para proceder à retificação de lapsos e erros materiais involuntários, conquanto não alterem a decisão da causa, nem modifiquem os seus fundamentos.
Assim, nem o julgamento sobre a procedência, ou improcedência, das alegadas nulidades da sentença, nem a decisão sobre a requerida reforma de sentença, designadamente nos termos em que vêm formulados, estão já ao alcance do extinto poder jurisdicional dos Árbitros.
Perante a posição adotada, apenas poderão, agora, ser apreciados e retificados eventuais lapsos ou erros materiais involuntariamente cometidos, que não alterem nem ponham em causa a substância do já definitivamente decidido.” (fls. 218 e 219)
Assim sendo, face ao teor da supra referida decisão arbitral, a decisão ora recorrida, proferida pelo Tribunal da Relação do Porto, considerou que o prazo de um mês fixado pelo n.º 2 do artigo 28º da Lei de Arbitragem Voluntária deveria, portanto, ser contado a partir da data de notificação da decisão arbitral originária e não a partir da data da notificação da decisão arbitral que se limitou a corrigir erros materiais
Ora, não podendo os recorrentes deixar de conhecer a doutrina a este respeito, a qual coincide com o sentido adotado pela decisão recorrida (e pela decisão do tribunal judicial de primeira instância), deveriam ter agido, processualmente, de modo tal que tivessem logrado obstar à expiração do prazo de caducidade contado nos termos em que o foi. Na verdade, é doutrinariamente consensual que o poder jurisdicional dos tribunais arbitrais se esgota com a prolação da decisão arbitral que decide, originariamente, sobre o mérito da causa, pelo que era objetivamente exigível aos recorrentes que tivessem instaurado a respetiva ação de anulação no prazo de um mês contado daquela decisão.
6. E nem se diga que esta interpretação normativa não tem justificação constitucional. Pelo contrário, conforme bem notado por Paula Costa e Silva (cfr. Os meios de impugnação de decisões proferidas em arbitragem voluntária no Direito interno português, cit., p. 180), “(q)uando as partes recorrem à arbitragem, questionam-se certamente sobre as vantagens que este tipo de jurisdição oferece quando comparada com a jurisdição dos tribunais judiciais. Entre estas vantagens contam-se a celeridade e a confidencialidade do processo arbitral e a especialização técnica dos árbitros”. E, continuando a refletir sobre as consequências da submissão, ex voluntate, à jurisdição arbitral, continua a Autora: “Porém, e apesar destes benefícios, as partes oferecem alguma resistência a que o julgamento por via arbitral seja definitivo no que respeita ao juízo de mérito. Raramente se conformam com a inexistência de duplo grau de jurisdição. Só que este duplo grau, que pode ser assegurado mediante a criação de um sistema de recursos, levará à perda das três vantagens anteriormente apontadas à arbitragem voluntária” (ob. cit, p. 180). Ou seja, a interpretação em causa permite a promoção de outros bens jurídicos constitucionalmente protegidos, tais como a celeridade processual na apreciação jurisdicional de questões controvertidas (artigo 20º, n.º 4, da CRP) e a segurança jurídica dos sujeitos da relação controvertida (artigo 2º da CRP), sejam esses sujeitos a recorrida ou quaisquer terceiros reflexamente interessados na solução definitiva daquela controvérsia.
Esta interpretação permite, portanto, reduzir as possibilidades de retardar o trânsito em julgado da decisão arbitral sobre o mérito da questão, o que também configura um bem jurídico constitucionalmente protegido.
Por último, refira-se que, mesmo que o prazo de caducidade do direito de instauração de ação de anulação tenha expirado, tal não obsta a que o interessado possa ver os respetivos fundamentos de anulação apreciados por um tribunal comum. Nesse sentido, afigura-se esclarecedor o ensinamento de Paula Costa e Silva (cfr. Anulação e recursos da decisão arbitral, cit., pp. 959 e 960):
“No entanto, seria incorreto afirmar que o decurso do prazo de um mês sobre a notificação da decisão às partes sanaria os vícios, que geram a nulidade da sentença arbitral. Com efeito, estabeleceu o artigo 31º da Lei n.º 31/86 que o decurso do prazo de propositura da ação de anulação não prejudica a invocabilidade dos seus fundamentos em oposição à execução.
Deste modo, se, passado um mês sobre a notificação da decisão às partes, não têm estas a possibilidade de requerer autonomamente a anulação da decisão arbitral, é facultada à parte vencida a dedução, na execução, de qualquer dos fundamentos geradores de nulidade da decisão arbitral, sobrevindo, em embargos à execução, uma extinção da instância executiva”.
Deste modo, importa constatar que a solução interpretativa adotada pela decisão recorrida nem sequer priva os recorrentes, irremediavelmente, de obter um controlo, pelos tribunais comuns, da validade da decisão arbitral. Não só o podem fazer através da ação de anulação da decisão arbitral (artigo 27.º, n.º 1, al. e) da LAV), mas também podem sempre invocar os fundamentos de anulação em sede de (eventual) oposição à execução, caso a recorrida venha a instaurar a competente ação executiva. Aliás, deve frisar-se que, nos termos do artigo 815º do Código de Processo Civil (CPC), constituem fundamentos de oposição à execução de decisão arbitral não só aqueles especificamente previstos para os demais títulos executivos, mas também os próprios fundamentos que justificam a instauração de uma ação de anulação (neste sentido, ainda que referindo-se a uma versão anterior da lei processual civil, Paula Costa e Silva, Os meios de impugnação de decisões proferidas em arbitragem voluntária no Direito interno português, cit., pp. 191 e 192).
Por outro lado, a fixação de um prazo de caducidade bastante reduzido – v.g., de apenas um mês contado da decisão arbitral originária – encontra-se intrinsecamente associada a um modelo restritivo de impugnação de decisões arbitrais, que visa, precisamente, incentivar a utilização daquele meio alternativo de resolução de litígios, que é pautado por uma especial celeridade e informalidade processuais. Ora, tendo os recorrentes renunciado ao direito de interpor recurso – por força da adesão ao Regulamento do Tribunal Arbitral do Centro de Arbitragem Comercial do Porto –, não pode deixar de ter essa circunstância em consideração. Efetivamente, ainda que corresponda a uma restrição do direito de acesso aos tribunais administrativos, tal interpretação normativa não se afigura desproporcionada.
Em suma, não se julga inconstitucional uma interpretação normativa extraída do n.º 2 do artigo 28º da Lei de Arbitragem Voluntária, segundo a qual “o prazo de propositura da ação de anulação, mesmo havendo duas decisões arbitrais, a inicial e outra complementar, se conta logo da primeira, independentemente e sem o conhecimento do resultado da arguição de nulidades e pedido de reforma suscitados e em apreciação”.
III – Decisão
Pelos fundamentos expostos, decide-se não conceder provimento ao recurso interposto.
Custas devidas pelos recorrentes, fixando-se a taxa de justiça em 25 UC´s, nos termos do n.º 1 do artigo 6º do Decreto-Lei n.º 303/98, de 07 de outubro.
Lisboa, 23 de maio de 2012. – Ana Guerra Martins – Vítor Gomes – Maria Lúcia Amaral – Carlos Fernandes Cadilha – Gil Galvão.