Imprimir acórdão
Procº nº 61/96 Rel. Cons. Alves Correia
Acordam na 2ª Secção do Tribunal Constitucional:
I - Relatório.
1. Em 22 de Fevereiro de 1993, M... intentou uma acção de despejo, sob a forma de processo sumário, contra C..., fundamentando o pedido de resolução do contrato de arrendamento na falta de residência permanente da locatária na fracção arrendada. Por sentença de 15 de Novembro de 1994 do 10º Juízo Cível da Comarca de Lisboa, foi tal acção julgada procedente, declarando-se o contrato resolvido e condenando-se a ré a despejar a fracção objecto do contrato de arrendamento.
2. Interposto recurso para o Tribunal da Relação de Lisboa, negou este, por Acórdão de 2 de Novembro de 1995, provimento ao recurso. Inconformada, recorreu a Ré para o Tribunal Constitucional, invocando a inconstitucionalidade da alínea i) do nº 1 do artigo 64º do Regime do Arrendamento Urbano (RAU), aprovado pelo Decreto-Lei nº 321-B/90, de 15 de Outubro,
'por estar em oposição com os artigos 44º, 59º e 65º da Lei Fundamental'.
Nas suas alegações, apresenta o seguinte quadro conclusivo:
'a)- Tendo-se ausentado o inquilino para a Alemanha, temporariamente, com o objectivo de ir para lá trabalhar, com contrato de trabalho, por o não conseguir em Portugal, a falta de uso da habitação durante a maior parte do ano não constitui falta de residência permanente, desde que, como
é o caso, continue a pagar a renda e a manter no locado todos os móveis.
b)- A recorrente só foi trabalhar para a Alemanha, porque não conseguiu trabalho em Portugal, devido ao Estado não ter ainda encetado medidas nem definido políticas de pleno emprego.
c)- A recorrente, quando emigrou, fê-lo com a intenção de regressar a casa, onde deixou os seus haveres.
d)- O despejo da recorrente impede o regresso.
e)- Uma vez que a recorrente continua a pagar pontualmente a renda, a sua falta de residência não traz qualquer prejuízo ao senhorio.
f)- A interpretação dada ao art. 64º, nº 1, al. i), do RAU, que conduziu ao despejo, viola o direito ao trabalho, à emigração e regresso e à habitação.
g)- A referida norma viola os artigos 44º, 59º e 65º da Constituição da República.
h)- A norma interpretada (art. 64º, nº 1, al. i) do RAU) é inconstitucional.
i)- Continuando a recorrente a pagar pontualmente a renda, o despejo fundado na referida norma viola o princípio da proporcionalidade'.
Por sua vez, o recorrido não apresentou alegações.
3. Corridos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir a questão de saber se a norma indicada pela recorrente padece do vício de inconstitucionalidade que lhe é assacado.
Nos termos do nº 2 do artigo 76º da Lei do Tribunal Constitucional
(Lei nº 28/82, de 15 de Novembro), o recurso não deve ser admitido, quando for manifestamente infundado, no caso dos recursos previstos nas alíneas b) e f) do nº 1 do artigo 70º da mesma lei. No caso dos autos, tendo o recurso sido admitido, se este Tribunal concluir que ele é manifestamente infundado, deverá negar-lhe provimento. É o que se vai fazer.
II - Fundamentos.
4. É o seguinte o teor da norma impugnada:
Artigo 64º Casos de resolução pelo senhorio
1- O senhorio só pode resolver o contrato se o arrendatário:
...
i) Conservar o prédio desabitado por mais de um ano ou, sendo o prédio destinado a habitação, não tiver nele residência permanente, habite ou não outra casa, própria ou alheia;
...
A recorrente imputa à norma acabada de transcrever a violação do artigo 44º ('direito de deslocação e de emigração'), do artigo 59º ('direitos dos trabalhadores') e do artigo 65º ('direito à habitação'), todos da Constituição. Ora, é claro que o primeiro direito constitucional invocado em nada interfere com o conteúdo, supra transcrito, da norma impugnada. Em todo o caso, o legislador ordinário contemplou a situação excepcional dos deslocados ao estabelecer na alínea b) do nº 2 do artigo 64º do RAU que o senhorio não pode resolver o contrato 'se o arrendatário se ausentar por tempo não superior a dois anos, em cumprimento de deveres militares, ou no exercício de outras funções públicas ou de serviço particular por conta de outrem, e bem assim, sem dependência de prazo, se a ausência resultar de comissão de serviço público, civil ou militar, por tempo determinado' - norma esta que é idêntica à que constava do artigo 1093º, nº 2, alínea b), do Código Civil.
Dessa protecção legislativa já beneficiou, aliás, a recorrente, porquanto, em anterior acção de despejo, intentada em 17 de Abril de 1990 pelo mesmo Autor, e com idêntico fundamento, pôde ela beneficiar do prazo de dois anos previsto na alínea b) do nº 2 do artigo 1093º do Código Civil para a inviabilizar (Acórdão da Relação de Lisboa de 12 de Maio de 1992, junto aos autos).
Menos razão, ainda, há na invocação do disposto no artigo 59º da Constituição, para aferir da constitucionalidade de uma norma como a acima transcrita. De facto, não se vê, na ausência da invocação pela recorrente de argumentos nesse sentido, como é que a norma impugnada pode constituir uma restrição constitucionalmente ilegítima aos direitos dos trabalhadores.
5. Resulta, assim, evidente que o único parâmetro constitucional relevante no caso é o do artigo 65º da Constituição, que dispõe como segue:
Artigo 65º
(Habitação)
1- Todos têm direito, para si e para a sua família, a uma habitação de dimensão adequada, em condições de higiene e conforto, e que preserve a intimidade pessoal e a privacidade familiar.
2- Para assegurar o direito à habitação, incumbe ao Estado:
a) Programar e executar uma política de habitação inserida em planos de reordenamento geral do território e apoiada em planos de urbanização que garantam a existência de uma rede adequada de transportes e de equipamento social;
b) Incentivar e apoiar as iniciativas das comunidades locais e das populações, tendentes a resolver os respectivos problemas habitacionais e a fomentar a criação de cooperativas de habitação a e autoconstrução;
c) Estimular a construção privada, com subordinação ao interesse geral, e o acesso à habitação própria.
3- O Estado adoptará uma política tendente a estabelecer um sistema de renda compatível com o rendimento familiar e de acesso à habitação própria.
4- O Estado e as autarquias locais exercerão efectivo controlo do parque imobiliário, procederão às expropriações dos solos urbanos que se revelem necessárias e definirão o respectivo direito de utilização.
Como se sublinhou nos Acórdãos nºs. 130/92 e 131/92, publicados no Diário da República, II Série, de 24 de Julho de 1992, o 'direito à habitação', ou seja, o direito a ter uma morada condigna, como direito fundamental de natureza social, situado no Capítulo II (direitos e deveres sociais) do Título III (direitos e deveres económicos, sociais e culturais) da Constituição,é um direito a prestações.Ele implica determinadas acções ou prestações do Estado, as quais, como já foi salientado, são indicadas nos nºs 2 a 4 do artigo 65º da Constituição (cfr. J.J. Gomes Canotilho, Direito Constitucional, 5ª ed., Coimbra, Almedina, 1991, p. 680 - 682). Está-se perante um direito cujo conteúdo não pode ser determinado ao nível das opções constitucionais, antes pressupõe uma tarefa de concretização e de mediação do legislador ordinário, e cuja efectividade está dependente da chamada 'reserva do possível' (Vorbehalt des Möglichen),em termos políticos, económicos e sociais [cfr. J.J. Gomes Canotilho, Constituição Dirigente e Vinculação do Legislador, Coimbra, Coimbra Editora, 1982, p. 365,e Tomemos a Sério os Direitos Económicos, Sociais e Culturais, Separata do Número Especial do Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra - 'Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor António de Arruda Ferrer Correia' - 1984, Coimbra,
1989, p. 26; e J.C. Vieira de Andrade, Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976 (Reimpressão), Coimbra, Almedina, 1987, p. 199 ss., 343 ss.].
O direito à habitação, como direito social que é,quer seja entendido como um direito a uma prestação não vinculada,recondutível a uma mera pretensão jurídica (cfr. J.C. Vieira de Andrade, ob. cit., p. 205,209) ou, antes, como um autêntico direito subjectivo inerente ao espaço existencial do cidadão (cfr. J.J. Gomes Canotilho, Direito Constitucional, cit., p.680), não confere a este um direito imediato a uma prestação efectiva, já que não é directamente aplicável, nem exequível por si mesmo.
O direito à habitação tem, assim, o Estado - e, igualmente, as regiões autónomas e os municípios - como único sujeito passivo - e nunca, ao menos em princípio, os proprie- tários de habitações ou os senhorios. Além disso, ele só surge depois de uma interpositio do legislador, destinada a concretizar o seu conteúdo, o que significa que o cidadão só poderá exigir o seu cumprimento, nas condições e nos termos definidos pela lei.
6. No caso sub judicio, o que a recorrente pretende é o reconhecimento, por efeito da sua qualidade de arrendatária, do direito de não habitar, por tempo indeterminado, o prédio arrendado. Ora, está bem de ver que tal pretensão não se integra no núcleo de protecção constitucional do direito à habitação, já que neste se visa assegurar o direito de habitar, não o de não habitar. O que vem de ser referido é suficiente para, sem outras considerações, julgar o presente recurso manifestamente improcedente.
III - Decisão.
7. Nos termos e pelos fundamentos expostos, decide-se negar provimento ao recurso.
Lisboa, 15 de Janeiro de 1997 Fernando Alves Correia Guilherme da Fonseca Bravo Serra José de Sousa e Brito Messias Bento José Manuel Cardoso da Costa