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Processo n.º 45/12
2ª Secção
Relator: Conselheiro Joaquim de Sousa Ribeiro
Acordam, em conferência, na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional
I - Relatório
1. Nos presentes autos de fiscalização concreta da constitucionalidade, vindos do Tribunal da Relação de Guimarães, em que é recorrente A. e recorridos o Ministério Público e o Instituto de Gestão do Fundo Social Europeu, IP, o relator proferiu a Decisão Sumária n.º 133/2012, que decidiu não conhecer do objeto do recurso, com os seguintes fundamentos:
«(…) 2. Através do presente recurso pretende o recorrente a apreciação da constitucionalidade da norma do artigo 428.º do Código de Processo Penal, por «negar ao arguido em processo penal o direito a um efetivo recurso sobre a matéria de facto».
Para tanto, invoca que suscitou a inconstitucionalidade desta “interpretação” em requerimento de arguição da nulidade do acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Guimarães.
Independentemente da tempestividade da suscitação da questão perante o tribunal recorrido, o certo é que o recorrente não suscitou a inconstitucionalidade de uma interpretação normativa daquele artigo 428.º do CPP, ou seja, de um critério interpretativo desligado das particularidades do caso concreto, que, aliás, continua a não conseguir enunciar no requerimento de interposição de recurso.
O artigo 428.º do CPP, sob a epígrafe “Poderes de cognição”, estabelece que «as relações conhecem de facto e de direito». O que verdadeiramente o recorrente questiona não é uma dada interpretação normativa deste preceito legal, mas o resultado da aplicação da norma ao seu caso concreto, que, segundo afirma, negou-lhe, a ele arguido em processo penal, o direito a um efetivo recurso sobre a matéria de facto.
Isso mesmo é confirmado pelo teor do requerimento de arguição de nulidade, onde alegadamente teria suscitado uma questão de constitucionalidade. Lê-se aí que «esta interpretação [do artigo 428.º do CPP] restritiva dos recursos penais tem vindo a vingar nos nossos tribunais superiores, a ponto de os tornar quase inúteis, e traduz uma verdadeira denegação do direito constitucional ao recurso»; e, acrescenta-se, que «o acórdão em crise enveredou por uma interpretação restritiva do artigo 428.º do CPP, negando a apreciação da matéria de facto, o que é ainda mais censurável quando o Recorrente até alega que ocorre insuficiência da sentença proferida pela 1.ª instância» (cfr. fls. 634 dos autos).
Não estão, assim, verificados os pressupostos necessários ao conhecimento do objeto do recurso. (…)»
2. Notificada da decisão, o recorrente veio reclamar para a conferência, ao abrigo do artigo 78.º-A, n.º 3, da LTC, nos seguintes termos:
«(…) O Recorrente considera que invocou de forma clara e inequívoca a inconstitucionalidade da norma aplicada pelo Tribunal da Relação.
E fundamentou este seu entendimento com base, como não poderia deixar de ser, no seu próprio caso concreto.
Não se compreende, pois, que a decisão sumária rejeite o recurso por o Recorrente questionar a interpretação de uma dada norma ao seu caso concreto.
Não vemos que possa ser doutra forma...neste ou noutro processo.
A legitimidade e a pertinência de qualquer recurso para o Tribunal Constitucional afere-se pelo interesse que cada cidadão defende num dado processo judicial.
Nestes autos, o Recorrente discorda de um acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães que não conhece da matéria de facto em recurso interposto de sentença da primeira instância por considerar que os seus poderes, nesta matéria, são limitados.
É simples a questão a apreciar por esse Tribunal: é conforme ou não à Constituição a interpretação que os Senhores Desembargadores fazem do artigo 428.° do CPP, ou seja, dos poderes conferidos às Relações em sede de apreciação dos recursos quanto a matéria de facto?
Considera-se, assim, que ao contrário do decidido, o recurso interposto cumpre os requisitos para a sua apreciação.
NESTES TERMOS, deve a presente reclamação ser atendida e conhecer-se do objeto do recurso. (…).»
3. O representante do Ministério Público junto deste Tribunal apresentou a seguinte resposta:
«1º
Pela Decisão Sumária 133/12, de 7 de março (cfr. fls. 664-666 dos autos), o Ilustre Conselheiro Relator entendeu, no presente caso: “decide-se não conhecer do objeto do recurso na sua totalidade”.
2º
Reporta-se, a mesma Decisão Sumária, ao recurso de inconstitucionalidade oportunamente interposto (cfr. fls. 654-655, 656-657 dos autos), para este Tribunal Constitucional, pelo recorrente, A., do Acórdão, de 7 de novembro de 2011, do Tribunal da Relação de Guimarãres (cfr. fls. 647-649 dos autos).
3º
Considerou, o Ilustre Conselheiro deste Tribunal Constitucional, na Decisão Sumária 133/12, ora reclamada (cfr. fls. 665 dos autos) (destaques do signatário):
“Independentemente da tempestividade da suscitação da questão perante o tribunal recorrido, o certo é que o recorrente não suscitou a inconstitucionalidade de uma interpretação normativa daquele artigo 428.º do CPP, ou seja, de um critério interpretativo desligado das particularidades do caso concreto, que, aliás, continua a não conseguir enunciar no requerimento de interposição de recurso.
O artigo 428.º do CPP, sob a epígrafe “Poderes de cognição”, estabelece que «as relações conhecem de facto e de direito». O que verdadeiramente o recorrente questiona não é uma dada interpretação normativa deste preceito legal, mas o resultado da aplicação da norma ao seu caso concreto, que, segundo afirma, negou-lhe, a ele arguido em processo penal, o direito a um efetivo recurso sobre a matéria de facto.
Isso mesmo é confirmado pelo teor do requerimento de arguição de nulidade, onde alegadamente teria suscitado uma questão de constitucionalidade. Lê-se aí que «esta interpretação [do artigo 428.º do CPP] restritiva dos recursos penais tem vindo a vingar nos nossos tribunais superiores, a ponto de os tornar quase inúteis, e traduz uma verdadeira denegação do direito constitucional ao recurso»; e, acrescenta-se, que «o acórdão em crise enveredou por uma interpretação restritiva do artigo 428.º do CPP, negando a apreciação da matéria de facto, o que é ainda mais censurável quando o Recorrente até alega que ocorre insuficiência da sentença proferida pela 1.ª instância» (cfr. fls. 634 dos autos).
Não estão, assim, verificados os pressupostos necessários ao conhecimento do objeto do recurso”.
4º
Na sua reclamação para a conferência, o Réu não deixa de reconhecer, designadamente, o seguinte (cfr. fls. 670, 672 dos autos) (destaques do signatário):
“O Recorrente considera que invocou de forma clara e inequívoca a inconstitucionalidade da norma aplicada pelo Tribunal da Relação.
E fundamentou este seu entendimento com base, como não poderia deixar de ser, no seu próprio caso concreto.
Não se compreende, pois, que a decisão sumária rejeite o recurso por o Recorrente questionar a interpretação de uma dada norma do seu caso concreto.
Não vemos que possa ser doutra forma – neste ou noutro processo.
A legitimidade e a pertinência de qualquer recurso para o Tribunal Constitucional afere-se pelo interesse que cada cidadão defende num dado processo judicial.
Nestes autos, o Recorrente discorda de um acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães que não conhece da matéria de facto em recurso interposto de sentença da primeira instância por defender por considerar que os seus poderes, nesta matéria, são limitados.
É simples a questão a apreciar por esse Tribunal: é conforme ou não à Constituição a interpretação que os Senhores Desembargadores fazem do artigo 428º do CPP, ou seja, dos poderes conferidos às Relações em sede de apreciação dos recursos quanto a matéria de facto?”
5º
O ora reclamante não tem, porém, razão, como se procurará comprovar em seguida.
Por um lado, o ora reclamante não deixa de reconhecer, que a sua argumentação se baseia no “seu próprio caso concreto”.
O que, no fundo, acaba por corroborar a argumentação, sustentada na Decisão Sumária reclamada, de “o que verdadeiramente o recorrente questiona não é uma dada interpretação normativa deste preceito legal, mas o resultado da aplicação da norma ao seu caso concreto”.
Por outro lado, o problema não é, tanto, o de o ora reclamante recorrer a elementos específicos do caso concreto, mas o de não conseguir enunciar uma verdadeira dimensão normativa para a questão de constitucionalidade suscitada.
6º
É, no entanto, jurisprudência assente deste Tribunal Constitucional, que o recurso de constitucionalidade deve integrar uma dimensão normativa, não servindo, apenas, para colocar em causa a bondade da decisão impugnada.
Como referido a este propósito, por exemplo, no Acórdão 633/08 (destaques do signatário):
“Neste domínio, há que acentuar que, nos processos de fiscalização concreta, a intervenção do Tribunal Constitucional se limita ao reexame ou reapreciação da questão de (in)constitucionalidade que o tribunal a quo apreciou ou devesse ter apreciado (nesta linha de pensamento, podem ver-se, entre outros, o Acórdão n.º 155/95, publicado no Diário da República II Série, de 20 de junho de 1995, e, aceitando os termos dos arestos acabados de citar, o Acórdão n.º 192/2000, publicado no mesmo jornal oficial, de 30 de outubro de 2000 - e sobre o sentido de tal requisito, José Manuel M. Cardoso da Costa, A jurisdição constitucional em Portugal, 3.ª edição, revista e atualizada, pp. 40 e 72), razão pela qual as partes, ao encararem ou equacionarem na defesa das suas posições a aplicação das normas, não estão dispensadas de entrar em linha de conta com o facto de estas poderem ser entendidas segundo sentidos divergentes e de os considerar na defesa das suas posições, aí prevenindo a possibilidade da (in)validade da norma em face da lei fundamental, impendendo sobre elas um dever de prudência técnica na antevisão do direito plausível de ser aplicado e, nessa perspetiva, quanto à sua conformidade constitucional.
Concretizando, ainda, aspetos do seu regime, cumpre acentuar que, sendo o objeto do recurso de fiscalização concreta de constitucionalidade constituído por normas jurídicas, que violem preceitos ou princípios constitucionais, não pode sindicar-se, no recurso de constitucionalidade, a decisão judicial em si própria, mesmo quando esta faça aplicação direta de preceitos ou princípios constitucionais, quer no que importa à correção, no plano do direito infraconstitucional, da interpretação normativa a que a mesma chegou, quer no que tange à forma como o critério normativo previamente determinado foi aplicado às circunstâncias específicas do caso concreto (correção do juízo subsuntivo).
Deste modo, é sempre forçoso que, no âmbito dos recursos interpostos para o Tribunal Constitucional, se questione a (in)constitucionalidade de normas, não sendo, assim, admissíveis os recursos que, ao jeito da Verfassungsbeschwerde alemã ou do recurso de amparo espanhol, sindiquem, sub species constitutionis, a concreta aplicação do direito efetuada pelos demais tribunais, em termos de se assacar ao ato judicial de “aplicação” a violação (direta) dos parâmetros jurídico-constitucionais. Ou seja, não cabe a este Tribunal apurar e sindicar a bondade e o mérito do julgamento efetuado in concreto pelo tribunal a quo. A intervenção do Tribunal Constitucional não incide sobre a correção jurídica do concreto julgamento, mas apenas sobre a conformidade constitucional das normas aplicadas pela decisão recorrida, cabendo ao recorrente, como se disse, nos recursos interpostos ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º, o ónus de suscitar o problema de constitucionalidade normativa num momento anterior ao da interposição de recurso para o Tribunal Constitucional [cf. Acórdão n.º 199/88, publicado no Diário da República II Série, de 28 de março de 1989; Acórdão n.º 618/98, disponível em www.tribunalconstitucional.pt, remetendo para jurisprudência anterior (por exemplo, os Acórdãos nºs 178/95 - publicado no Diário da República II Série, de 21 de junho de 1995 -, 521/95 e 1026/9, inéditos, e o Acórdão n.º 269/94, publicado no Diário da República II Série, de 18 de junho de 1994)].
A este propósito escreve Carlos Lopes do Rego («O objeto idóneo dos recursos de fiscalização concreta de constitucionalidade: as interpretações normativas sindicáveis pelo Tribunal Constitucional», in Jurisprudência Constitucional, 3, p. 8) que “É, aliás, percetível que, em numerosos casos – embora sob a capa formal da invocação da inconstitucionalidade de certo preceito legal tal como foi aplicado pela decisão recorrida – o que realmente se pretende controverter é a concreta e casuística valoração pelo julgador das múltiplas e específicas circunstâncias do caso sub judicio […]; a adequação e correção do juízo de valoração das provas e de fixação da matéria de facto provada na sentença (…) ou a estrita qualificação jurídica dos factos relevantes para a aplicação do direito […]».
7º
Por outro lado, este Tribunal Constitucional também tem reiteradamente afirmado, que o recorrente tem o ónus de enunciar, de forma clara e percetível, o exato sentido normativo do preceito que considera inconstitucional.
Como se disse, por exemplo, no Acórdão n.º 178/95 (Acórdãos do Tribunal Constitucional, 30.º vol., p.1118.) “tendo a questão de constitucionalidade que ser suscitada de forma clara e percetível (cfr., entre outros, o Acórdão nº 269/94, Diário da República, II Série, de 18 de junho de 1994), impõe-se que, quando se questiona apenas uma certa interpretação de determinada norma legal, se indique esse sentido (essa interpretação) em termos que, se este Tribunal o vier a julgar desconforme com a Constituição, o possa enunciar na decisão que proferir, por forma a que o tribunal recorrido que houver de reformar a sua decisão, os outros destinatários daquela e os operadores jurídicos em geral, saibam qual o sentido da norma em causa que não pode ser adotado, por ser incompatível com a Lei Fundamental”.
Ora, o reclamante refere-se, apenas, “à interpretação que os Senhores Desembargadores fazem do artigo 428º do CPP, ou seja, dos poderes conferidos às Relações em sede de apreciação dos recursos quanto a matéria de facto”, interpretação essa, aliás, que nem sequer enuncia.
8º
Assim, compulsando a forma como se encontra redigido o requerimento do recurso de constitucionalidade, facilmente se intui que o arguido, no fundo, questiona fundamentalmente a forma como o tribunal de segunda instância (e o mesmo se dirá, também, do tribunal de primeira instância) apreciou – ou não apreciou, segundo alega – a matéria de facto.
9º
Está, pois, fundamentalmente, em causa a concreta decisão tomada pelo Tribunal da Relação de Guimarães, ou seja, a forma como determinou a sua livre convicção quanto aos factos submetidos à sua apreciação (cfr. designadamente fls. 618-622, 624-627 dos autos) e confirmou, nessa medida, a decisão de primeira instância, proferida na Vara de Competência Mista do Tribunal Judicial de Braga, que condenou o arguido, pela prática de um crime de desvio de subvenção, subsídio ou crédito bonificado previsto e punido pelo art. 37º nº 1 do Decreto-Lei 28/84, de 20 de janeiro, na pena de 1 ano de prisão, suspensa na sua execução por igual período de tempo, e ainda no pagamento da quantia de 17.752,43 €, acrescida de juros de mora, ao Instituto de Gestão do Fundo Social Europeu.
Sendo certo, por outro lado, que o tribunal recorrido explicitou, devida e fundadamente, a forma como apreciou a prova submetida à sua consideração.
Ora, não cabe ao Tribunal Constitucional sindicar a forma como as instâncias fixaram a sanção aplicável, uma vez que só lhe cabe apreciar a constitucionalidade de normas jurídicas.
10º
No fundo, o Réu manifesta a sua discordância pela pena que lhe foi aplicada pelo tribunal de julgamento.
Está no seu direito, mas tal discordância não significa, como pretende fazer crer, que haja violação de preceitos constitucionais na aplicação de uma tal sanção.
Por todo o exposto, crê-se que a reclamação para a conferência, em apreciação, não merece provimento, não havendo razões para alterar o sentido da Decisão Sumária 133/12, de 7 de março, que determinou a sua apresentação.»
Cumpre apreciar e decidir.
II – Fundamentação
4. A decisão sumária ora reclamada pronunciou-se pelo não conhecimento do objeto do recurso, interposto ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC, com fundamento na não suscitação, no decurso do processo, de uma questão de constitucionalidade normativa.
A presente reclamação em nada abala esta conclusão. Pelo contrário, o teor da mesma, demonstra, por um lado, que o reclamante parece desconhecer o objeto do recurso de constitucionalidade e os poderes de cognição do Tribunal Constitucional em sede de fiscalização concreta da constitucionalidade; e, por outro, que se confirma, no caso em apreço, o sentido da decisão sumária reclamada, pois resulta dos próprios termos da reclamação que o reclamante não suscitou qualquer questão de inconstitucionalidade normativa junto do tribunal recorrido. Na verdade, o reclamante limita-se a discordar de «um acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães que não conhece da matéria de facto em recurso interposto de sentença da primeira instância» e da interpretação que o tribunal recorrido fez do “artigo 428.º do CPP”, sem no entanto, indicar a que interpretação se refere, concluindo que «ao contrário do decidido, o recurso interposto cumpre os requisitos para a sua apreciação».
É manifesto que não cabe ao Tribunal Constitucional apreciar a constitucionalidade da aplicação, ao caso concreto, do disposto no artigo 428.º do CPP, pois tal equivaleria a sindicar a bondade da própria decisão do Tribunal da Relação de Coimbra. Como é sabido, o recurso de constitucionalidade tem natureza estritamente normativa, apenas podendo ter por objeto normas ou interpretações normativas e não a decisão judicial em si mesma considerada.
Deve, por isso, manter-se na íntegra a decisão sumária reclamada.
III. Decisão
Pelo exposto, acordam em indeferir a presente reclamação.
Custas pelo reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 20 (vinte) unidades de conta.
Lisboa, 9 de maio de 2012.- Joaquim de Sousa Ribeiro – J. Cunha Barbosa – Rui Manuel Moura Ramos.