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Proc. nº 330/94
1ª Secção Cons. Rel.: Assunção Esteves (Consª Maria Fernanda Palma)
Acordam no Tribunal Constitucional:
Neste processo, vindo do Tribunal da Relação de Lisboa, sendo recorrente C..., S.A. e sendo recorrida B..., Lda., decide-se, com os fundamentos do acórdão tirado no processo nº 506/93, da 1ª Secção, assinado neste dia, de que se junta cópia, que a norma do artigo 653º, nº 2, do Código de Processo Civil não é contrária à Constituição da República. Assim, nega-se provimento ao recurso, confirmando a decisão recorrida.
Lisboa, 23 de Janeiro de 1997 Maria da Assunção Esteves Alberto Tavares da Costa Vitor Nunes de Almeida Maria Fernanda Palma (vencida com DV junta
Declaração de voto
Discordo do entendimento perfilhado no Acórdão, pelas razões que sucintamente passo a enumerar:
1ª De um ponto de vista lógico (da lógica do juízo) não se impõe uma distinção entre o juízo de provado e o de não provado; o segundo pode ser reconduzido a um juízo positivo sobre factos, apenas variando o predicado com que é configurado o respectivo sujeito (neste caso será um predicado negativo). Assim afirmar que F (facto) é p (está provado) ou F é não p (não está provado) corresponde a um só processo de demonstração, pelo qual se conclui que um certo facto concreto é assimilável pelo critério legal ou não. Haverá em ambos os casos uma análise comparativa que terminará, na última hipótese, num juízo limitativo, em que um objecto é excluído de uma categoria (cf. sobre o tema Karl Engisch, ÜberNegationen in Recht und Rechts- wissenschaft, em Beiträge zur Rechtstheorie, 1984, pp. 243 a 250, analisando diversas espécies de juízos negativos e as suas possibilidades de conversão);
2ª A doutrina sempre reconheceu que os factos negativos deveriam ser objecto de prova no processo civil (cf., nomeadamente, Miguel Teixeira de Sousa, 'A livre apreciação da prova em Processo Civil', Scientia Iuridica, XXXIII, 1984, p. 145), podendo, em certos casos, reconduzir-se um juízo positivo sobre um facto negativo a um juízo negativo (assim, afirmar que se verificou não F é interpretável como a afirmação de que não se verificou F);
3ª Da natureza e finalidades do processo civil não resulta qualquer diferença de valor entre o provado e o não provado, diferentemente do que pode suceder no âmbito do processo penal, em que vigora o princípio in dubio pro reo, como corolário da presunção de inocência e decorrência da estrutura acusatória; na verdade, no processo penal não se deve admitir como fundamento de recurso a 'insuficiência para a decisão da matéria de facto provada', no caso de decisão absolutória [cf. artigo 410º, nº 2, alínea a), do Código de Processo Penal], porque o juízo de não provado que recaia sobre factos constantes da acusação ou da pronúncia não carece de fundamentação idêntica ao do juízo de provado;
4ª Houve uma evolução da própria jurisprudência no sentido de um acréscimo de exigência de fundamentação no que se refere ao 'provado', não se bastando a fundamentação com a mera indicação dos meios de prova [cf. acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 17 de Fevereiro de 1981 (Proc. nº 68.945), de
3 de Outubro de 1991 (Proc. nº 80.311), de 18 de Novembro de 1992 (Proc. nº
3.457), de 25 de Novembro de 1992 (Proc. nº 82.041) e de 30 de Abril de 1996
(Proc. nº 96A139)];
5ª O artigo 208º, nº 1, da Constituição não pode ser esvaziado de sentido, devendo ser salvaguardado um mínimo essencial que assegure as funções endoprocessual e extraprocessual da fundamentação de decisões - nesse mínimo incluem-se, igualmente, as respostas positivas e negativas, sendo toda a distinção arbitrária.
Em consequência do que se expôs, concluiria pela inconstitucionalidade da norma do artigo 653º, nº 2, do Código do Processo Civil. Fernanda Palma Armindo Ribeiro Mendes (vencido com DV junta DECLARAÇÃO DE VOTO
1. Contrariamente à tese que fez vencimento, entendi que o art. 653º, nº 2, do Código de Processo Civil, interpretado como excluindo a obrigação de fundamentação das respostas negativas aos quesitos em processo civil, estava afectado de inconstitucionalidade, por violação do disposto nos arts. 208º, nº1, e 20º, nº 1, da Constituição.
Explanarei com brevidade as razões de tal juízo de inconstitucionalidade.
2. Preliminarmente, chamarei a atenção para a circunstância de que tal entendimento da norma do nº 2 do art. 653º do Código de Processo Civil foi desautorizado pela Reforma de 1995-1996, consubstanciada nos Decretos-Leis nºs. 39/95, de 15 de Fevereiro, e 329-A/95, de 12 de Dezembro, alterado este último pelo Decreto-Lei nº 180/96, de 25 de Setembro.
De facto, na versão do Código de Processo Civil resultante desta Reforma, estatui-se que 'a matéria de facto é decidida por meio de acórdão ou despacho, se o julgamento incumbir o juiz singular; a decisão proferida declarará quais os factos que o Tribunal julga provados e quais os que julga não provados, analisando criticamente as provas e especificando os fundamentos que foram decisivos para a convicção do julgador, (na redacção anterior à vigente a partir de 1 de Janeiro de 1997, introduzida pelo Decreto-Lei nº 39/95, já se equiparavam as respostas positivas e negativas para efeitos de fundamentação).
Passou, assim, a ser claro que, quer se trate de respostas afirmativas (provado), quer se trate de respostas negativas (não provado) quanto
à matéria de facto, existe sempre obrigação legal de fundamentação do juízo do julgador.
3. Mesmo no domínio da anterior redacção da lei, a Constituição impunha que não se consagrasse ou excluísse o dever de fundamentar, consoante se tratasse de respostas positivas ou negativas à matéria de facto, devendo em todos os casos haver fundamentação das respostas.
De um ponto de vista lógico, não se poderá sustentar que a resposta negativa seja ex natura insusceptível de fundamentação.
Na verdade, se todos os quesitos recebessem, em certo processo, resposta negativa do tribunal, não obstante ter sido produzida prova testemunhal e documental, a transparência da actividade judicial só seria assegurada se as partes pudessem saber por que motivo a prova produzida não serviu para dar como provadas certas afirmações de facto feitas por alguma ou ambas as partes.
Como escreveu Miguel Teixeira de Sousa:
' Doutrinariamente, o único sistema compatível com a liberdade de convicção do julgador é a persuasão racional, sistema em que a existência de fundamentação assegura o controlo da racionalidade da decisão. Como racionalidade, pressupõe dedução lógica de uma conclusão das premissas fornecidas, a não indicação destas invalida por si a própria racionalidade do juízo. Aliás, sistematicamente, não se compreende que o direito positivo, concretizando uma exigência - actualmente
- constitucional (art. 210º, nº 1 CRP), exija o dever de fundamentação para as simples decisões do tribunal (cfr. art. 158º) [...] e descure - inconstitucionalmente? - um efectivo dever de motivação para as respostas aos quesitos. Acresce que o dever de fundamentação em nada contende com a admissão da oralidade como forma de produção de prova, pois a realização oral da prova não é impedimento do registo da prova produzida [...]. E assim, precisamente porque a actividade probatória se desenvolve directamente perante o tribunal e dela, em princípio, nada fica registado [o texto é anterior ao Decreto-Lei nº
39/95, de 15 de Fevereiro], a motivação exige algo mais do que a simples indicação do meio concreto de prova relevante para a decisão do tribunal. Apenas na situação inversa, isto é, quando a prova é documental ou está registada, o dever de motivação pode ter a sua expressão mais fraca pela mera remissão para o meio concreto da prova'. (A Livre Apreciação da Prova em Processo Civil, in Scientia Ivridica, XXXIII, 1984, pág. 145; faz-se referência ao texto constitucional decorrente da primeira revisão constitucional).
4. Sendo seguro que, de um ponto de vista lógico, não se podiam distinguir os factos positivos ou negativos, para efeitos de prova, nem, por outro lado, o juízo de provado e de não provado para efeitos de fundamentação, haverá de reconduzir-se a razões de ordem histórica a diferença de tratamento que parecia resultar da leitura do nº 2 do art. 653º do Código de Processo Civil de 1961.
De facto e como resulta dos trabalhos preparatórios deste Código, nem o relator da Comissão, nem a própria Comissão aceitaram o dever de fundamentação da decisão de facto, omitindo qualquer regra na matéria (cfr. Observações Ministeriais ao Anteprojecto do Código de Processo Civil, in Boletim do Ministério da Justiça, nº 123, págs. 113-115), na medida em que era conhecida a 'dificuldade prática que em muitos casos os magistrados experimentariam para fundamentar especificamente a sua decisão' e tinha curso corrente o regulamento deduzido da 'inutilidade da motivação, uma vez que à Relação está praticamente interdita a censura da decisão do Colectivo'. Mas o Ministro Antunes Varela impôs a inclusão do dever de fundamentação por considerar ser certo 'que o sistema de deixar o julgador livremente entregue ao desenrolar desse jogo irracional que a produção das provas vai criando no seu espírito e de lhe permitir a expressão do seu resultado através duma formulação ditatorial, autoritária, categórica, desprovida de qualquer justificação racional' teria graves inconvenientes e de vária ordem. Daí que fosse consagrada a exigência de motivação, embora restringida aos factos quesitados que obtivessem respostas de provado que parte do tribunal, a qual se considerou ter, 'pelo contrário, a vantagem de obrigar directamente o julgador a seguir com toda a atenção a marcha de instrução do processo, a tomar as suas notas sobre cada um dos procedimentos instrutórios instaurados, a recapitular e a conferir mentalmente os resultados, porventura desencontrados muitas vezes, das provas que em juízo se produziram'.
5. Quando a Constituição consagrou, a partir da primeira revisão constitucional, o dever de fundamentação das decisões dos tribunais 'nos casos e nos termos previstos na lei' (veja-se hoje o art. 208º, nº 1), seguramente que não quis impor a fundamentação quanto a todas as decisões judiciais, mas, por outro lado, seguramente que não pretendeu que sobrevivessem soluções ditadas por uma preocupação de não afrontar o sentimento tradicional dos magistrados que se havia manifestado durante a preparação do Código de 1961. Como advertem Gomes Canotilho e Vital Moreira, a discricionariedade do legislador não é hoje total 'visto que há-de entender-se que o dever de fundamentação é uma garantia integrante do próprio conceito de Estado de direito democrático (cfr. art. 2º), ao menos quanto às decisões judiciais que tenham por objecto a solução da causa em juízo, como instrumento de ponderação e legitimação da própria decisão judicial e de garantia do direito ao recurso'
(Constituição da República Portuguesa Anotada, 3ª ed., Coimbra, 1993, págs.
798-799).
Ora, parece seguro que das finalidades atribuídas ao processo civil nenhuma se encontra que possa basear uma diferença de valor entre a resposta a um quesito como 'provado' ou 'não provado', não podendo vislumbrar-se graus diversos de intensidade das próprias exigências dos juízos probatórios (não existe uma presunção de inocência no processo civil, diferentemente do que sucede no processo penal, que possa justificar a racionalidade de uma diferença de exigência da fundamentação).
Por outro lado, o disposto no art. 712º do Código de Processo Civil, na versão vigente à data da realização do julgamento de facto no processo, admitia já um controlo da matéria de facto na 2ª instância, ainda que limitado.
Por isso, considerei arbitrária e violadora do princípio da proporcionalidade a dispensa da exigência de fundamentação quanto às respostas de não provado.
6. Sem valer a pena, sequer, discutir a bondade da doutrina do Tribunal Constitucional sobre a fundamentação das decisões de factos plasmada no acórdão nº 310/94 (in Diário da República, II Série, nº 199, de 29 de Agosto de 1994) - visto que, entretanto, passou a ser admitida a gravação de prova em processo civil, em ordem à ampliação do recurso em matéria de facto - afigura-se que a tese central desse acórdão não autorizaria a doutrina que a 2ª Secção veio a adptar para negar a inconstitucionalidade da dispensa de fundamentação das respostas de não provado quanto aos pontos requesitados (acórdão nº 153/95, inédito).
Seja como for, concluí no sentido de que a norma aplicada pela decisão recorrida, na interpretação acolhida, violava os arts. 208º, nº 1, e
20º, nº 1, da Constituição. José Manuel Cardoso da Costa