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Processo n.º 142/12
2ª Secção
Relator: Conselheiro Joaquim de Sousa Ribeiro
Acordam, em conferência, na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional
I - Relatório
1. Nos presentes autos de fiscalização concreta da constitucionalidade, vindos do Supremo Tribunal de Justiça, em que é recorrente A. e recorrido o Ministério Público, o relator proferiu a Decisão Sumária n.º 151/2012, que decidiu negar provimento ao recurso, com os seguintes fundamentos:
«(…)2. Por sentença do Tribunal Judicial da Sertã o recorrente, entre outros arguidos, foi condenado, como autor material, pela prática de um crime de abuso de confiança contra a Segurança Social, p.e p. pelo artigo 107.º, n.ºs 1 e 2, com referência ao artigo 105.º, n.ºs 1, 4, 6 e 7, ambos do RGIT e artigo 30.º, n.º 2, do Código Penal, na pena de 290 dias de multa, à taxa diária de € 8, num total de € 2320 e no pedido de indemnização civil deduzido pelo IGFSS.
Inconformado, o arguido interpôs recurso para o Tribunal da Relação de Coimbra, que o julgou improcedente, exceto no que respeita à alteração da redação do n.º 28 da matéria de facto provada, tendo ainda alterado a integração jurídico-criminal dos factos efetuada na sentença recorrida, condenando os arguidos como coautores de um crime de abuso de confiança contra a segurança social, p. e p. pelo artigo 107.º, n.ºs 1 e 2, com referência ao artigo 105.º, n.º 1, ambos do RGIT.
Ainda inconformado, o arguido recorreu para o Supremo Tribunal de Justiça, tendo o recurso sido admitido no respeitante à parte cível, mas já não no que concerne à parte criminal.
O arguido reclamou da não admissão do recurso, tendo a reclamação sido indeferida por decisão do Vice-Presidente do Supremo Tribunal de Justiça, ora recorrida, com fundamento, além do mais, no disposto no artigo 400.º, n.º 1, alíneas e) e f), do CPP.
3. Apesar de o recorrente indicar as alíneas e) e f) do n.º 1 do artigo 400.º do CPP como suporte normativo da interpretação normativa questionada, a verdade é que apenas a referida alínea e) foi convocada pela decisão recorrida como fundamento de não admissão do recurso para o STJ. Na verdade, estamos perante um caso em que se pretendia recorrer de acórdão da Relação, proferido em recurso, que aplicou pena não privativa da liberdade. Pelo que o objeto do recurso se restringe à apreciação da inconstitucionalidade da norma da alínea e) do n.º 1 do artigo 400.º do CPP, quando interpretada no sentido de não ser admissível o recurso de acórdão condenatório proferido, em recurso, pela Relação, que confirme a decisão de 1.ª instância e aplique pena não privativa da liberdade, mesmo no caso de terem sido arguidas nulidades de tal acórdão.
Questões idênticas a esta foram já apreciadas neste Tribunal Constitucional.
Entre outros, cumpre lembrar o Acórdão n.º 390/2004, que decidiu não julgar inconstitucional a norma constante da alínea e) do n.º 1 do artigo 400.º do Código de Processo Penal, na dimensão normativa traduzida na irrecorribilidade de acórdão condenatório da Relação, ainda que o fundamento desse recurso se traduza na respetiva nulidade.
Mais recentemente, o Acórdão n.º 659/2011, proferido nesta 2.ª Secção, julgou não inconstitucional a norma do artigo 400.º, n.º 1, alínea f), do Código de Processo Penal, interpretada no sentido de não ser admissível o recurso de acórdão condenatório proferido, em recurso, pela Relação, que confirme a decisão de 1.ª instância e aplique pena de prisão não superior a 8 anos, mesmo no caso de terem sido arguidas nulidades de tal acórdão.
Os fundamentos deste último aresto são, em síntese, os seguintes:
I - Sendo certo que o artigo 32.º, n.º 1, da Lei Fundamental, não consagra a garantia de um triplo grau de jurisdição em relação a quaisquer decisões penais condenatórias, resta verificar se, nos casos em que o Tribunal da Relação profere acórdão em que mantém a decisão condenatória da 1.ª instância e é arguida a nulidade de tal acórdão, se mostra cumprida a garantia constitucional do direito ao recurso, quando exige que o processo penal faculte à pessoa condenada pela prática de um crime a possibilidade de requerer uma reapreciação do objeto do processo por outro tribunal, em regra situado num plano hierarquicamente superior.
II - Com uma reapreciação jurisdicional, independentemente do seu resultado, revela-se satisfeito esse direito de defesa do arguido, pelo que a decisão do tribunal de recurso já não está abrangida pela exigência de um novo controle jurisdicional; e o facto de, na sequência dessa reapreciação, terem sido arguidas nulidades do acórdão do Tribunal da Relação não constitui motivo para se considerar que estamos perante uma primeira decisão sobre o thema decidendum, relativamente à qual é necessário garantir também o direito ao recurso.
III - Com efeito, a circunstância de os recorrentes terem arguido nulidades do acórdão do Tribunal da Relação não modifica o objeto do processo uma vez que, tal como a decisão da 1.ª instância, o acórdão do Tribunal da Relação que sobre ela recai limita-se a verificar se o arguido pode ser responsabilizado pela prática do crime que estava acusado e, na hipótese afirmativa, a definir a pena que deve ser aplicada, o que se traduz num reexame da causa, constituindo, assim, já uma segunda pronúncia sobre o objeto do processo, não havendo que assegurar a possibilidade de aceder a mais uma instância de controle, a qual resultaria num duplo recurso, com um terceiro grau de jurisdição.
IV - Por outro lado, existindo sempre a possibilidade de arguir as referidas nulidades perante o tribunal que proferiu a decisão, mesmo quando esta seja irrecorrível, a apreciação de nulidades do acórdão condenatório não implica a necessidade de existência de mais um grau de recurso, tanto mais em situações, como a dos autos, em que existem duas decisões concordantes em sentido condenatório (uma vez que o Tribunal da Relação confirmou a decisão da 1ª instância nesse sentido).
V - Acresce que, se fosse entendido que a arguição da nulidade de um acórdão proferido em recurso implicaria, sempre e em qualquer caso, com fundamento no direito ao recurso em processo penal, a abertura de nova via de recurso, ter-se-ia de admitir também o recurso do acórdão proferido na terceira instância, com fundamento na sua nulidade, e assim sucessivamente, numa absurda espiral de recursos, pelo que não é constitucionalmente censurável, neste caso, a exclusão do terceiro grau de jurisdição não violando a interpretação normativa objeto de fiscalização o disposto no artigo 32.º, n.º 1, da Constituição.
VI - A exigência de um processo equitativo, consagrada no artigo 20.º, n.º 4, da Constituição, não afasta a liberdade de conformação do legislador na concreta modelação do processo, impondo, no entanto, que no seu núcleo essencial os regimes adjetivos proporcionem aos interessados meios efetivos de defesa dos seus direitos ou interesses legalmente protegidos, bem como uma efetiva igualdade de armas entre as partes no processo, não estando o legislador autorizado a criar obstáculos que dificultem ou prejudiquem, arbitrariamente ou de forma desproporcionada, o direito de acesso aos tribunais e a uma tutela jurisdicional efetiva.
VII - Na interpretação normativa sob fiscalização não estamos perante uma situação de negação de acesso aos tribunais, mas sim de restrição do acesso, em via de recurso, a um determinado tribunal - o Supremo Tribunal de Justiça; a arguição de nulidade do acórdão proferido em recurso pelo Tribunal da Relação não tem de ser superada pela abertura de nova via de recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, sendo legítimo reservar a intervenção do Supremo Tribunal de Justiça, por via de recurso, aos casos mais graves, aferindo a gravidade relevante pela pena que, no caso, tenha sido aplicada; por isso, o estabelecimento de um critério normativo que exclui o recurso nas aludidas situações, fundado em razões justificativas racionalmente inteligíveis, não contraria de forma alguma os princípios do acesso ao direito e aos tribunais e de um processo equitativo; assim sendo, a interpretação normativa objeto de fiscalização também não viola o disposto no artigo 20.º da Constituição ou qualquer outro parâmetro constitucional.
Esta jurisprudência, que subscrevemos, é mutatis mutandis aplicável ao caso em apreço, até por argumento de maioria de razão, uma vez que está em causa a irrecorribilidade de decisão proferida em recurso que confirma condenação em pena não privativa da liberdade.
Assim, não trazendo o presente caso qualquer elemento novo que pudesse justificar uma reponderação do anteriormente decidido, deve, pelos mesmos fundamentos, ser julgada não inconstitucional a norma do artigo 400.º, alíneas e) , do CPP, quando interpretada no sentido de não ser admissível o recurso de acórdão condenatório proferido, em recurso, pela Relação, que confirme a decisão de 1.ª instância e aplique pena não privativa da liberdade, mesmo no caso de terem sido arguidas nulidades de tal acórdão. (…)»
2. Notificado da decisão, o recorrente veio reclamar para a conferência, ao abrigo do artigo 78.º-A, n.º 3, da LTC, nos seguintes termos:
«(…) A., arguido e recorrente nos autos à margem identificados, notificado da Douta Decisão Sumária n.° 151/2012 que decidiu, nos termos do disposto no n.° 1 do art.° 78.°-A da LTC, negar provimento ao recurso, vem, respeitosamente, nos termos e para os efeitos do disposto no n.° 3 do art.° 78.°-A da LCT, RECLAMAR PARA A CONFERÊNCIA da Decisão Sumária proferida, o que faz, nos termos e com os seguintes fundamentos:
A — Dos Factos a ter em consideração para a presente Reclamação
O Acórdão proferido pelo Venerando Tribunal da Relação de Coimbra que motivou a interposição do Recurso para o STJ, a reclamação para o Presidente desse Venerando Tribunal e a consequente interposição do Recurso para este Tribunal e que nesta sede se apresenta Reclamação para a Conferência, não apreciou o recurso na parte respeitante à reapreciação da prova gravada (Recurso em Matéria de Facto).
Para tanto fundamentou-se tal decisão no facto de o recorrente, na sua motivação e conclusões, não especificar nos termos pormenorizados pelos n.°s 3 e 4 do art.° 412.° do CPP, as concretas provas que, no seu entendimento, impunham decisão diversa da recorrida.
Contudo, conforme consta do Douto Acórdão o recorrente, na sua motivação, faz alusão aos depoimentos, que entende serem determinantes para a reapreciação da prova, da seguinte forma:
• depoimento de B. — Sessão de Julgamento de 07.11.2007; início 16h47m12s; duração 01h00m11s”
• depoimento de C. — Sessão de Julgamento de 07.11.2007; início 10h58m59s; fim 11h50m54s; duração 51m52s” e
• depoimento de D. — Sessão de Julgamento de 07.11.2007; início 11h08m51s; fim 12h39m07s; duração 0lh30m15s”
E, nas suas conclusões (cfr. conclusão 3.) refere 3. “A prova produzida em Julgamento, maxime os depoimentos de B. (transcrições em fls. 6 a 27), C. (transcrições em fls. 28 a 44) e D.(transcrições em fls. 45 a 46) bem como a prova documental junta (Notas de Lançamento, Cheques e Comprovativos de Transferências Bancárias juntos a fls. dos Autos) impõe que se conclua que, de outubro de 1998 a abril de 2001, o pagamento da massa salarial de E., SA foi efetuado por entidades terceiras — designadamente F., Lda. e G.).”
Entende o recorrente que cumpriu com o exigido no supra referidos n.°s 3 e 4 do art.° 412.° do CPP pois para além de ter identificado os concretos pontos de facto que entende incorretamente julgados, identificou as concretas provas que impunham e impõem decisão diversa da recorrida, não só por referência à sessão de julgamento como ainda pela indicação (transcrição) das concretas passagens em causa, cumprindo assim com o disposto no n.° 4 do referido dispositivo legal.
Entender de outra forma, como resulta do Acórdão em crise, é claramente violar o Direito de
Recurso que a todos assiste e, consequentemente, violar o disposto no n.° 1 do art.° 32.° da Constituição da República Portuguesa.
Neste sentido destaca-se Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 12.05.2010, Rec. Penal n° 1203/07.2GAVNF.P1 – 1.ª Sec., in www.dgsi.pt que refere: a... “Porém, tal exigência legal não pode ser tão implacável ou inflexível que conduza a uma quase impossibilidade de recurso, o qual acabaria por redundar numa preterição do princípio constitucional de acesso ao direito, mais concretamente na vertente do princípio “pro actione”, no sentido de que estando estipulado o direito ao recurso, não são admissíveis interpretações formalistas ou restritivistas desse direito.
E isto porque no artº. 20.º, n.° 1 da C. Rep. estipula-se que “A todos é assegurado o acesso ao direito e aos tribunais para defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos, não podendo a justiça ser denegada por insuficiência de meios económicos”.
Diga-se, no entanto, que a Constituição da República não contém um preceito expresso, mediante o qual se consagre um intangível direito ao recurso.
O que se tem entendido, designadamente ao nível da jurisprudência do Tribunal Constitucional, é que o legislador não poderá suprimir ou inviabilizar globalmente a faculdade de recorrer.
Porém, no que concerne ao arguido em processo penal e de modo a assegurar-lhe uma plena garantia de defesa, como se encontra consagrado, a partir da Lei Constitucional de 1/97, de 20/Set, no art.º 32.°, n.° 1, parte final, deve-se-lhe garantir um efetivo direito ao recurso, mormente quando está em causa a sua condenação numa reação penal.
Aliás, a CEDH, no seu Protocolo n.° 7, mediante o seu art.º 2.°, n.° 1, veio estabelecer o comando geral que “Qualquer pessoa declarada culpada de uma infração penal por um tribunal tem o direito de fazer examinar por uma jurisdição superior a sua declaração de culpabilidade ou condenação. ... “- as exceções estão elencadas no subsequente n.° 2.
Daí que não sejam admissíveis, numa perspetiva dos direitos de defesa, as rejeições formais que limitem intoleravelmente, dificultem excessivamente, imponham entraves burocráticos ou restringem desproporcionalmente tal direito.
Por isso e em sede interpretativa do citado artº. 412.°, n.° 2 e n.º 3, afigura-se-nos que está vedado um entendimento mediante o qual se fixem requisitos tão pesados e extensos que, na prática, suprimem esse direito de recurso, quando essa faculdade está legalmente prevista, mormente quando se pretende assegura de modo pleno as garantias de defesa do arguido.
Assim, quando se percebe efetivamente a norma tida por violada ou a matéria de facto impugnada, mediante uma remissão, expressa ou implícita, para o corpo das alegações ou quando a mesma esteja, de tal modo claro e sem margem para dúvidas, subjacente nas conclusões de recurso, devemos dar por cumprido o correspondente ónus de alegação e de formulação de conclusões.”
Mesmo que assim se não entenda, conforme se defende no Douto Aresto proferido por este Supremo Tribunal em 01.07.2010, Proc° N° 241/08.2GAMTR.P1.S1 sempre os vícios em que o recorrente alegadamente incorreu — o que se não concede — poderiam ser supridos com o convite ao aperfeiçoamento nos termos do disposto no n.° 3 do art.° 417.º do CPP “O Supremo Tribunal de Justiça tem vindo a considerar inconstitucional, por violação dos direitos a um processo equitativo e do próprio direito ao recurso, as normas dos n.°s 3 e 4 do art. 412.° do CPP na interpretação segundo a qual o incumprimento dos ónus aí fixados, conduz à rejeição do recurso, sem a possibilidade de aperfeiçoamento (cfr. Acs de 26-9-01, proc. n.° 2263/01, de 18-10-01, proc. n.° 2374/01, de 10-4-02, proc. n.° 153/00, de 5-6-02, proc. n.° 1255/02, de 7-10-04, proc. n°3286/04-5, de 17-2-05, proc. n.° 4716/04-5, e de 15-12-05, proc. n.° 2951/05-5).
Assim decidiu que “(5) se o recorrente não deu cabal cumprimento às exigências do n.° 3 e especialmente do n.° 4 do artº. 412.° do CPP, a Relação não pode sem mais rejeitar o recurso em matéria de facto, nem deixar de o conhecer, por ter por imodificável a matéria de facto, nos termos do artº. 431.° do CPP. (6) Este último artigo, como resulta do seu teor, não toma partido sobre o endereçar ou não do convite ao recorrente, em caso de incumprimento pelo recorrente dos ónus estabelecidos nos n.°s 3 e 4 do art.º 412.°, antes vem prescrever, além do mais, que a Relação pode modificar a decisão da 1.ª instância em matéria de facto, se, havendo documentação da prova, esta tiver sido impugnada, nos termos do artigo 412.°, n.° 3, não fazendo apelo, repare-se, ao n.° 4 daquele artigo, o que no caso teria sido infringido. (7) - Saber se a matéria de facto foi devidamente impugnada à luz do n.° 3 do art.º 412.º é questão que deve ser resolvida à luz deste artigo e dos princípios constitucionais e de processo aplicáveis, e não à luz do art.º 431.º, al. b), cuja disciplina antes pressupõe que essa questão foi resolvida a montante. (8) Entendendo a Relação que o recorrente não forneceu os elementos legais necessários para reapreciar a decisão de facto nos pontos que questiona, a solução não é “a improcedência”, por imodificabilidade da decisão de facto, mas o convite para a correção das conclusões. (Acs de 7-11-02, proc. n.° 3158/02-5 e de 15-5-03, proc. n.° 985/03-5)”.
E que, face à declaração com força obrigatória geral da inconstitucionalidade da norma do art.º 412.°, n.° 2, do CPP, interpretada no sentido de que a falta de indicação, nas conclusões da motivação, de qualquer das menções contidas nas suas als. a), b) e c) tem como efeito a rejeição liminar do recurso do arguido, sem que ao mesmo seja facultada a oportunidade de suprir tal deficiência (Ac. n.° 320/2002 do T. Constitucional, DR-IA, 07.10.2002), não pode manter-se a decisão da Relação que decidiu não tomar conhecimento dos recursos no que se refere à decisão de facto, por não terem os recorrentes dado cumprimento ao imposto nos n.° 3 e 4 daquele art. 412°.
Em tal caso a Relação deve tomar posição sobre a suficiência ou insuficiência das conclusões das motivações e ordenar, se for caso disso, a notificação do recorrente para corrigir/completar as conclusões das motivações de recurso, conhecendo, depois, desses recursos (Acs. de 12-12-2002, proc. n.° 4987/02-5, de 7-10-04, proc. n.° 3286/04-5, de 1 7-2- 05, proc. n.° 4716/04-5, e de 15-12-05, proc. n.° 2951/05-5).
Só não será assim se o recorrente não tiver respeitado, de todo, as especificações a que se reporta a norma legal em causa, pois o conteúdo do texto da motivação constitui um limite absoluto que não pode ser extravasado através do convite à correção das conclusões da motivação (cfr. os Acs. do STJ de 11-1-01, proc. n.° 3408/00-5, de 8-11-01, proc. n.° 2453/01-5, de 4-12-03, proc. n.° 3253/03-5 e de 1 5-1 2-05, proc. n.° 2951/05-5).
Mas, se o recorrente, como é o caso dos autos, tendo embora indicado os pontos concretos da matéria de facto que considera incorretamente julgados e as provas que impõem decisão diversa, com a indicação, nomeadamente, das testemunhas cujos depoimentos incidiram sobre tais pontos, que expressamente indicou (v.g., falta de vestígios de sangue na roupa, hora em que ocorreu o homicídio e permanência do arguido no local de trabalho entre determinadas horas), só lhe faltando indicar ‘as concretas passagens das gravações em que funda a impugnação que imporia decisão diversa’, não se pode dizer que há uma total falta de especificações, mas, quanto muito, uma incorreta forma de especificar. Tanto mais que, se o recorrente tem o ónus de indicar as concretas passagens das gravações, o tribunal tem o dever de atender a outras que considere relevantes para a descoberta da verdade (art.° 412. °, n.° 6, do CPP), sob pena do recorrente ‘escolher’ a passagem que mais lhe convém e omitir tudo o mais que não lhe interessa, assim se defraudando a verdade materiaL
A Relação, ao proceder da forma como transcrevemos, não conheceu da impugnação da matéria de facto, já que a rejeitou por razões meramente formais e não deu oportunidade ao recorrente de corrigir os pequenos desvios em que, alegadamente, incorreu.
Portanto, omitiu pronúncia sobre questão de que deveria conhecer e incorreu na nulidade a que se reportam os art.°s 379. °, n.° 1, al. c) e 425.°, n.°4, do CPP.
Esse vício é sanável no tribunal recorrido, devendo o mesmo, antes de mais, conceder um prazo ao recorrente para o aperfeiçoamento.”
Por tal facto, quer numa quer noutra situação, a interpretação conferida aos supra referidos dispositivos legais (n.°s 3 e 4 do art.° 412.° e n.° 3 do art.° 417.° do CPP), no sentido de que a indicação dos concretos meios de prova que impõem decisão diversa da recorrida, tal como foi efetuada no recurso interposto pelo aqui reclamante, não respeita a indicação concreta das passagens (não considerando as transcrições constantes da motivação como concreta indicação dessas mesmas passagens e a referência na conclusão 3. às páginas donde constam essas mesmas passagens) é manifestamente INCONSTITUCIONAL, porque violadora do n.º 1 do art.° 32.° da CRP e, porque em manifesta contradição com o julgamento de inconstitucionalidade, cujo sentido e fundamentos, apesar de relativos a anterior redação do dispositivo legal, se mantém completamente intactos, decidido nos Acórdãos do Tribunal Constitucional n.°s 259/2002, 529/2003 e 320/2002, este último, com força obrigatória geral, todos disponíveis in www.tribunalconstitucional.pt.
Sem prejuízo de não estar em discussão nos presentes autos de Reclamação para a Conferência a constitucionalidade das supra referidas disposições legais, importa ter presente que o que motiva a apreciação do juízo de (in)constitucionalidade da al. e) do art.° 400.° do CPP é, precisamente, esta questão, ou seja, o facto do Tribunal da Relação de Coimbra não ter apreciado o Recurso sobre Matéria de Facto por entender que se não encontravam especificadas as concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida.
Por essa razão,
Entende ainda o recorrente e aqui reclamante, e na sequência do que tem vindo a ser exposto, que o Venerando Tribunal da Relação de Coimbra incorreu em omissão de pronúncia, nulidade a que se referem os art.°s 379.° n.° 1 al. c) e 425.° n.° 4, ambos do CPP.
Ora, tal como dispõe o n.° 3 do art.° 410.° do CPP “O recurso pode ainda ter como fundamento, mesmo que a lei restrinja a cognição do tribunal de recurso a matéria de direito, a inobservância de requisito cominado sob pena de nulidade que não deva considerar-se sanada.
Como defende Paulo Pinto de Albuquerque in Comentário do Código de Processo Penal, anot. 289 pág. 1124 “Quer o recurso seja fundado exclusivamente em matéria de direito quer abranja também matéria de facto, o tribunal de recurso tem o poder de conhecer das nulidades insanáveis, bem como das nulidades sanáveis e irregularidades que hajam sido tempestivamente arguidas e que não devam ser consideradas sanadas (...). Para este efeito, o tribunal de recurso pode conhecer do processo, não se encontrando vinculado ao “texto da decisão recorrida”.
E o n.° 2 do art.° 379.° do CPP dispõe que “2. As nulidades da sentença devem ser arguidas ou conhecidas em recurso, (...).”
Por fim o art.° 434.° do CPP, relativo aos poderes de cognição do Supremo Tribunal de Justiça, refere “Sem prejuízo do disposto nos n.°s 2 e 3 do artigo 410.º o recurso interposto para o Supremo Tribunal de Justiça visa exclusivamente o reexame de matéria de direito.”
Atento o exposto entende o recorrente e aqui reclamante encontrar-se perfeitamente enquadrada a nulidade que determinou o recurso para este Venerando Tribunal com vista à sindicância do juízo de (in)constitucionalidade da al. e) do art.° 400.° do CPP.
B — Dos Fundamentos da presente Reclamação para a Conferência
Aos arguidos (importa notar que, no caso concreto, o Ministério Público não recorreu da sentença proferida em 1.ª instância) é permitido recorrer da decisão proferida em 1.ª instância, podendo esse recurso ter como fundamento quaisquer questões de que pudesse conhecer a decisão recorrida, logo, poderá incidir sobre matéria de Direito e Matéria de Facto, ou ambas simultaneamente.
No caso concreto, o Tribunal de Recurso (Tribunal da Relação de Coimbra) não apreciou o Recurso interposto, relativamente à matéria de facto, na parte respeitante à reapreciação da prova gravada.
O argumento que resulta da Decisão Sumária ora em crise, e que se encontra de alguma forma consolidado no entendimento que se vem extraindo das decisões, que sobre o tema o Venerando Tribunal Constitucional tem vindo a proferir, conforme resulta do Ac. 659/2011 invocado, “... pode resumir-se no entendimento de que a Constituição não impõe um triplo grau de jurisdição ou um duplo grau de recurso em Processo Penal, devendo apenas apurar-se se será desrazoável, arbitrário ou desproporcionado não admitir recurso para o Supremo Tribunal de Justiça ...”.
Contudo, salvo melhor e Douta opinião, o que concretamente está em causa é esse mesmo duplo grau de jurisdição pois que o Venerando Tribunal da Relação não apreciou o Recurso na sua plenitude.
Não podemos descurar que o arguido se presume inocente até ao trânsito em julgado da decisão (cfr. n.° 2 do art.° 32.° da CRP) , é com base nesse princípio que terá de ser enquadrado o Direito do arguido ao Recurso quando se não conforma com a decisão que sobre ele incidiu.
Nesse pressuposto, a não apreciação do recurso interposto ou a apreciação parcelar do mesmo, no caso concreto não apreciando a parte referente à reapreciação da prova gravada, quando enquadrável nas alíneas do n.° 1 do art.° 400.° do CPP, designadamente al. e), é, na verdade, uma violação desse Direito de Recurso a que alude o n.° 1 do art.° 32.° da CRP.
Será arrojado defender-se que existe uma dupla jurisdição quando o recurso interposto não é apreciado na sua plenitude.
Tanto mais que se encontra vedada (no entendimento da Douta Decisão Sumária, que se não concede) qualquer sindicância relativamente a tal situação.
Com este entendimento, que, reitera-se, não pode colher, desvirtua-se por completo qualquer recurso sobre matéria de facto ou de direito relativamente a processos judiciais dos quais resulte, em 1.ª instância, condenação em pena não privativa de liberdade e relativamente ao qual seja aplicável o princípio da proibição da reformatio in pejus. (vamos mais longe ao entender que tal sucede em qualquer um dos casos previstos nas als. d) e) e f) do n.° 1 do art° 400.° do CPP)
São irrelevantes os fundamentos invocados, ou até a existência de quaisquer fundamentos, contando que a decisão proferida pelo Tribunal Superior, confirme a decisão da 1.ª instância (quer se trate de acórdão absolutório ou condenatório em pena privativa de liberdade inferior a 8 anos), ou que aplique pena não privativa de liberdade.
Não permitir a sindicância, por Tribunal Superior, do Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação, relativamente a matérias suscetíveis de configurar nulidade da decisão, note-se que, no concreto caso dos autos, não se trata de submeter à apreciação do Supremo Tribunal de Justiça a bondade da decisão (Acórdão) que veio a ser proferida, trata-se de apreciar uma nulidade invocada que, a ser reconhecida, determinará a reapreciação do Recurso por parte do Tribunal da Relação, relativamente a matéria sobre a qual sequer se pronunciou.
Ao Supremo Tribunal de Justiça apenas se pede que se pronuncie sobre o fundamento invocado para a não reapreciação da prova gravada (e a sua legalidade) e não para, proceder a essa concreta reapreciação.
Não se trata de possibilitar um terceiro grau de jurisdição, mas antes de permitir que o segundo grau de jurisdição possa ser ampla e convenientemente explorado, exercido e cumprido.
Sob pena de, reitera-se, se possibilitar (e entendemos que basta poder suceder) no campo meramente hipotético, que o Tribunal da Relação profira decisões violadoras do art.° 379.° do CPP, as quais, porque enquadradas nas referidas alíneas d), e) e f) do n.° 1 do art.° 400.° do CPP, não são sindicáveis.
Admitir tal possibilidade ou não admitir recurso ordinário é exatamente igual. Logo, violadoras dos mais elementares princípios constitucionais.
Acresce ainda que e salvo o devido respeito, não pode proceder o argumento de que ao Supremo Tribunal de Justiça apenas deverão ser submetidos os casos de maior merecimento penal, pois que todos os cidadãos são iguais perante a lei e têm a mesma dignidade social (cfr. n.° 1 do art.° 13.° da CRP), a todos é assegurado o acesso ao Direito e aos Tribunais, todos têm direito a um processo equitativo e todos os arguidos se presumem inocentes até ao trânsito em julgado da decisão.
Mesmo que se entenda que a previsão de um terceiro grau de jurisdição (2.° grau de recurso) adquire maior acuidade nas situações em que as decisões proferidas afetam direitos constitucionalmente consagrados dos cidadãos de forma mais gravosa que outras, no caso concreto, reitera-se, não se pretende que esse terceiro grau de jurisdição seja exercido, o que se pretende é que o segundo grau de jurisdição (primeiro grau de recurso) seja exercido na sua plenitude, mediante uma apreciação correta de todo o âmbito do recurso interposto.
Não entende o ora reclamante como se poderá defender a inexistência de inconstitucionalidade do normativo em questão, no entendimento de que, mesmo padecendo de nulidade, a decisão, porque condena em pena não privativa de liberdade é irrecorrível.
Se essa decisão padece de nulidade, vício que afeta a própria decisão, como é que se pode dar acolhimento à mesma no nosso ordenamento jurídico, com as consequências irremediáveis que daí resultam para o recorrente, no caso em concreto para o arguido.
Terminamos como a Conselheira Maria Fernanda Palma na sua declaração de voto proferida no Ac. n.° 390/2004 onde refere “Não posso deixar de manifestar dúvidas relativamente à solução do presente Acórdão quanto ao problema de constitucionalidade suscitado. É, na realidade, questionável que a solução que a lógica do sistema de recursos do Código de Processo Penal propõe para uma situação de arguição de nulidade de decisão irrecorrível, sendo esta já uma decisão de recurso, seja plenamente satisfatória da garantia do direito ao recurso.
Com efeito, sendo a nulidade invocada uma nulidade da sentença proferida na instância de recurso, que, a ter-se verificado, poria em causa a subsistência da decisão de consequências fundamentais para os direitos do arguido, não se admitir qualquer possibilidade de análise por um tribunal superior ou, pelo menos de composição mais alargada, possibilitando-se apenas a reclamação para o mesmo tribunal, enfraquece, significativamente, o direito ao recurso. As razões que em última análise justificam o direito ao recurso, tais como a própria exigência fundamentadora das decisões e a garantia de uma análise imparcial não são satisfeitas com o sistema que resulta do Código de Processo Penal.
A analogia desta questão com a subjacente ao artigo 310.° do Código de Processo Penal parece-me evidente. Aí, porém, o legislador admitiu o recurso do despacho que indeferiu a arguição de nulidade do despacho de pronúncia com fundamento em pronúncia do arguido por factos que constituem alteração substancial dos descritos na acusação do Ministério Público ou do assistente na abertura da instrução (artigo 309.°, n.° 1). Ora, tal como nessa situação se entendeu que teria de existir um controlo específico, em recurso, sobre o desvirtuamento da natureza do despacho de pronúncia, pelos efeitos irremediáveis para o processo produzidos, também a existência de nulidade que consista na ausência de fundamentação da sentença ou na sua contradição notória, na decisão de recurso, produz efeitos irremediáveis, mas, neste caso, na própria decisão do processo. O argumento de que, globalmente, foi assegurado o duplo grau de jurisdição quanto ao julgamento da causa não é totalmente convincente, já que sendo a decisão do recurso efetivamente nula tal garantia está profundamente afetada.
Face ao exposto entende o reclamante que a Decisão Sumária de que nesta sede se reclama não poderá ser mantida, devendo, nesse seguimento, a Conferência, proferir decisão que admita o recurso interposto, concedendo ao aqui recorrente, prazo para apresentar as suas alegações.
Nestes termos e nos melhores de Direito que V. Exa. doutamente suprirá, atento o supra exposto, deve ser concedido provimento à presente Reclamação e, consequentemente, ser admitido o Recurso interposto pelo reclamante para este Tribunal Constitucional. (…).»
3. O representante do Ministério Público junto deste Tribunal apresentou a seguinte resposta:
«1º
De acordo com a enunciação formulada pelo recorrente e tendo em atenção a decisão recorrida, constitui objeto de recurso a questão de inconstitucionalidade da norma da alínea e) do n.º 1 do artigo 400.º do CPP, quando interpretada no sentido de não admitir recurso para o Supremo Tribunal de Justiça do acórdão proferido pelo Tribunal da Relação, mesmo quando seja suscitada a nulidade de tal acórdão, por omissão de pronúncia.
2º
Recorrendo à jurisprudência do Tribunal Constitucional sobre tal matéria – que sempre proferiu juízos de não inconstitucionalidade -, a questão foi considerada simples, tendo sido proferida a douta Decisão Sumária n.º 151/2012, que negou provimento ao recurso.
3º
Na reclamação agora apresentada, o recorrente não invoca qualquer novo argumento que justifique uma reapreciação da questão.
4º
Segundo o recorrente, a nulidade invocada consistiria no facto de a Relação não ter apreciado o recurso na parte respeitante à reapreciação da prova gravada por entender que não tinham sido corretamente cumpridas as exigências constantes do artigo 412.º, n.º 3 e 4, do CPP.
5º
Ora, tendo em atenção a questão de inconstitucionalidade que constitui objeto do recurso, é irrelevante qual a natureza da nulidade invocada.
6º
Não sendo a decisão recorrível, a simples imputação de uma qualquer nulidade ao acórdão da Relação, não é suscetível de abrir uma nova via de recurso.
7º
Considerar que a irrecorribilidade não é inconstitucional, não significa, no entanto, que o recorrente não pudesse ver apreciada, pelo Tribunal Constitucional, a questão essencial.
8º
Na realidade, cumpridos que fossem os requisitos de admissibilidade do recurso de constitucionalidade, sempre o recorrente poderia ter colocado à apreciação do Tribunal Constitucional, a constitucionalidade da norma do artigo 412.º, n.º 3 e 4 do CPP, na interpretação que levou ao não conhecimento do recurso quanto à matéria de facto, com a amplitude desejada.
9º
Pelo exposto, deve indeferir-se a reclamação.»
Cumpre apreciar e decidir.
II – Fundamentação
4. A decisão sumária ora reclamada, tendo considerado que o recurso tinha por objeto uma “questão simples”, que já foi objeto de jurisprudência reiterada deste Tribunal Constitucional, julgou não inconstitucional a norma do artigo 400.º, alínea e), do CPP, quando interpretada no sentido de não ser admissível o recurso de acórdão condenatório proferido, em recurso, pelo Tribunal da Relação, que confirme a decisão de 1.ª instância e aplique pena não privativa da liberdade, mesmo no caso de terem sido arguidas nulidades de tal acórdão, assim negando provimento ao recurso.
No ponto A. da presente reclamação, o reclamante tece considerandos sobre as decisões tomadas pelas instâncias, que, como é evidente, não podem ser objeto de um recurso de constitucionalidade. Ainda neste ponto, o reclamante invoca a inconstitucionalidade de normas que, como o próprio expressamente admite, não se incluem no objeto do presente recurso e, como tal, também não podem ser apreciadas nesta sede. A este respeito, refira-se ainda, como bem salienta o Ministério Público na sua resposta, que não só a questão da alegada nulidade do acórdão da Relação é irrelevante para efeitos de aferição dos pressupostos do recurso de constitucionalidade com o objeto que o recorrente delineou para o mesmo, como o próprio reclamante podia ter suscitado a inconstitucionalidade da interpretação subjacente à invocada nulidade o que, como referido, não fez.
Finalmente, no ponto B. da reclamação o reclamante não invoca qualquer novo argumento que pudesse justificar uma reapreciação da questão de constitucionalidade objeto do presente recurso, sobre a qual existe firme e reiterada jurisprudência deste Tribunal Constitucional, que se subscreve e é inteiramente aplicável ao caso em apreço.
Deve, por isso, manter-se na íntegra a decisão sumária reclamada.
III. Decisão
Pelo exposto, acordam em indeferir a presente reclamação.
Custas pelo reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 20 (vinte) unidades de conta.
Lisboa, 24 de abril de 2012.- Joaquim de Sousa Ribeiro – J. Cunha Barbosa – Rui Manuel Moura Ramos.