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Proc.Nº 359/96 Sec. 1ª Rel. Cons. Vitor Nunes de Almeida (Consª Assunção Esteves)
Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional: I - RELATÓRIO:
1. – M... e J..., foram acusados e vieram a ser julgados nos presentes autos como autores de um crime de tráfico de estupefacientes agravado nas penas de 8 e 9 anos de prisão respectivamente.
Não se conformando com o assim decidido, os arguidos interpuseram recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, invocando designadamente a inconstitucionalidade das normas constantes dos artigos 410º,
433º e 127º do Código de Processo Penal e a norma do Assento nº 2/93, de 27 de Janeiro de 1993, publicado no Diário da República, 1ª série, de 10 de Março de
1993.
O Supremo Tribunal de Justiça, por acórdão de 1 de Fevereiro de 1996, julgou o recurso improcedente decidindo que as penas deveriam ser mantidas e bem assim o enquadramento jurídico perfilhado na decisão recorrida.
Desta decisão interpuseram os arguidos recurso para este Tribunal que, no requerimento de interposição foi delimitado pela forma seguinte:
...'a) Assento 2/93 de 27/1/1993 publicado no D.R. I - Série de 10.3.1993, por violação do artº 32º nº 5 da Lei Fundamental (inconstitucionalidade material). b) Artº 433º do Código de Processo Penal, por violação dos artºs 32º nº 1 da Lei Fundamental, uma vez que este preceito (o artº 433º do CPP) se encontra ferido de verdadeira inconstitucionalidade material. c) Artº 410º nº 2 do CPP, por violação do princípio do duplo grau de jurisdição decorrente dos artºs 32º nº 1 da Lei Fundamental, 11º nº 1 da Declaração Universal dos Direitos do Homem e artº 14º nº 5 do Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos. d) Artº 127º do CPP, ferido, quanto a nós, do vício da inconstitucionalidade material, por violação do disposto no artº 32º nº 1 e nº 5 da Constituição da República. e) Sem conceder, se entende, que no caso, 'sub judice' o Tribunal Colectivo fez
'in casu' uma interpretação-valoração claramente inconstitucional dos artºs 124º e 128º do CPP.'
2. - Após um convite do relator para indicar a peça processual onde tinha sido suscitada a questão de inconstitucionalidade, foram produzidas as respectivas alegações.
Os recorrentes concluiram assim as por si apresentadas:
...'1ª O ASSENTO 2/93 de 27/1/1993 publicado no Diário da República - I - Série em 10.03.1993, encontra-se ferido de inconstitucionalidade material, por violação dos artºs 32º nº 1 e 32º nº 5 da Constituição da República.
2ª Ao possibilitar, na elaboração do acórdão condenatório, o enquadramento jurídico-penal mais gravoso, com a correlativa qualificação jurídica diversa e mais grave, o ASSENTO viola a garantia de defesa do arguido, na parte em que impede que este se possa defender quanto ao crime pelo qual virá a ser condenado.
3ª o ASSENTO em causa viola, assim, as garantias de defesa do arguido e o próprio princípio do contraditório, porquanto o arguido impedido se vê de contraditar uma acusação e uma qualificação jurídicas só existentes no douto acórdão.
4ª O artº 433º do CPP é claramente inconstitucional, por violação do disposto no artº 32º nº 1 da Lei Fundamental, uma vez que retira ao arguido a possibilidade de fazer reapreciar, em sede de recurso, as provas produzidas em julgamento. A redacção actual deste preceito converte este recurso para o S.T.J., em matéria penal, numa apreciação meramente formal do modo como a sentença de 1ª instância se encontra feita.
5ª O artº 433º do CPP mostra-se, assim, claramente inconstitucional, pois, ao impedir o duplo grau de jurisdição retira ao arguido um dos seus basilares direitos de defesa, viola, assim, o artº 32º nº 1 da Constituição da República.
...6ª Nos termos do disposto no artº 206º da Lei Fundamental, o tribunal de Primeira Instância e o Supremo Tribunal de Justiça não deveriam ter lançado mão do mencionado ASSENTO, nem da mencionada norma legal (artº 433º - 410º do CPP), por ambos se mostrarem contrários aos princípios constitucionais referidos.
7ª O artº 410º do CPP encontra-se ferido do vício da inconstitucionalidade material por violação do artº 32ºnº 1 da Constituição da República. Na verdade ao restringir-se o Recurso aos casos de a insuficiência, para a decisão, a contradição insanável da fundamentação e o erro notório, resultarem do texto da decisão recorrida, suprime-se o elementar direito de defesa do arguido qual seja o de poder questionar o conteúdo material da sentença e não apenas o seu aspecto meramente formal.
8ª O artº 127º do CPP viola as garantias de defesa do arguido consagradas no artº 32º nº 1 e 5 da Lei Fundamental;
9ª O comando do artº 127º do CPP encontra-se, assim, ferido no vício de inconstitucionalidade material.
10ª O douto Tribunal Colectivo - e bem assim o S.T.J. fizeram, interpretação/valoração claramente inconstitucional do referido comando ( o do artº 127º do CPP) porquanto não dispunham - em nossa opinião - dos elementos de facto provados na audiência e aptos a tirar a conclusão de que o produto estupefaciente apreendido o foi na casa dos recorrentes e de que a recorrente M... fôsse traficante de droga.
11ª O douto Tribunal valorou ainda, de um modo ilegal e inconstitucional
(desrespeito do artº 32º nº 1 da Lei Fundamental) a prova em causa - no tocante
à caracterização dos recorrentes como traficantes, fazendo uma interpretação inconstitucional e 'contra legem' do citado normativo legal - o artº 127º do CPP.
12ª O artº 127º do CPP viola, claramente, o estatuído no artº 6º nº 1 da CONVENÇÃO EUROPEIA DOS DIREITOS DO HOMEM, na parte em que esta impõe que qualquer pessoa tem direito a que a sua causa seja examinada de um modo equitativo.
13ª Sendo que as normas desta CONVENÇÃO EUROPEIA devem ser aplicadas no direito interno português (artº 16º nº 1 da Constituição da República).
14ª O artº 127º do CPP ao não estabelecer um limite para a 'livre convicção' e ao socorrer-se de um conceito tão vago e impreciso como seja o das 'regras de experiência' viola as garantias de defesa do arguido sobretudo num caso, como o dos autos em que não houve lugar ao chamado 'registo de prova', e por permitir, na ausência de outro preceito normativo análogo, a aplicação subsidiária do artº
396º do Código Civil.'
Pelo seu lado, o Ministério Público formulou as seguintes conclusões:
'1º - O sistema de recursos e os poderes de cognição do Supremo Tribunal de Justiça no âmbito do processo penal em vigor, emergentes do estatuído nas disposições conjugadas dos artigos 410º e 433º do Código de Processo Penal, não violam quaisquer princípios ou preceitos constitucionais.
2º - A norma constante do artigo 127º do Código de Processo Penal, ao mandar valorar a generalidade dos meios de prova produzidos em processo penal segundo as regras de experiência e a livre apreciação do julgador, não viola qualquer preceito ou princípio constitucional.
3º - Padece de inconstitucionalidade a norma constante do Assento nº 2/93, de 27 de Janeiro, quando interpretada em termos de facultar ao Tribunal, sem prévia audiência e contraditório do arguido, a convolação para crime mais gravemente punido do que o que constava da acusação.'
Corridos que foram os vistos legais, procedeu-se à discussão da causa, tendo-se verificado mudança de relator.
Cumpre, pois, apreciar e decidir. II - FUNDAMENTOS:
3. - Importa, antes de mais, delimitar o objecto do recurso.
Com efeito, os recorrentes, na alínea e) do requerimento de interposição do recurso referem que 'sem conceder, se entende, que no caso,
'sub judice' o Tribunal Colectivo fez 'in casu' uma interpretação-valoração claramente inconstitucional dos artigos 124º e 128º do CPP'.
Ora, se os recorrentes pretendiam que este Tribunal apreciasse uma tal questão, não podiam deixar de claramente indicar por forma inequívoca qual a interpretação das normas referidas que consideram inconstitucional.
Não o tendo feito, não pode o Tribunal conhecer de tal questão.
Assim, o objecto do recurso abrange apenas a norma constante do Assento nº 2/93 e as normas dos artigos 127º, 410º, nº 2, e 433º do Código de Processo Penal.
4. - A questão de constitucionalidade dos artigos 410º, nº 2, e 433º tem sido objecto de uma jurisprudência uniforme deste Tribunal, ainda que com votos de vencido, no sentido da não inconstitucionalidade de tais normas.
Assim e por não terem sido trazidos aos autos quaisquer argumentos que levem à modificação de tal jurisprudência constante dos acórdãos
322/93 (in Diário da República, 2ª série de 29 de Outubro de 1993) e nº 172/94
(in Diário da República, 2ª série, de 19 de Julho de 1994) e ainda para citar só os mais recentes os acórdãos nº 828/95, 1049/96, 1078/96, estes ainda inéditos, remetendo para os fundamentos constantes de tais acórdãos, entende-se que as normas dos artigos 410º, nº 2 e 433º do Código de Processo Penal, não violam o artigo 32º da Constituição nem qualquer das normas de direito internacional referidas pelos recorrentes.
5. - Quanto ao artigo 127º do Código de Processo Penal, que consagra o princípio da livre apreciação da prova pelo julgador, também o Tribunal Constitucional já se pronunciou em acórdão da 1ª Secção - Acórdão nº
1164/96 - , tirado em 19 de Novembro de 1996, ainda inédito, e de que se junta fotocópia.
Pelos fundamentos constantes desse acórdão que aqui se reiteram, a norma do artigo 127º não viola nem o nº 1 nem o nº 5 do artigo 32º da Constituição, pelo que se conclui pela sua não inconstitucionalidade.
6. - Quanto à questão da norma constante do Assento nº
2/93, também o Tribunal se pronunciou recentemente pela 1ª Secção, através do Acórdão no 16/97, de 14 de Janeiro de 1997, ainda inédito e de que se junta cópia.
Em tal acórdão decidiu-se 'julgar inconstitucional o Assento nº 2/93, publicado no Diário da República, 1ª série-A, de 27 de Janeiro de 1993, enquanto interpreta como não constituindo alteração substancial dos factos descritos na acusação ou na pronúncia a simples alteração da respectiva qualificação jurídica (ou convolação), mas tão só na medida em que, conduzindo a diferente qualificação jurídico-penal dos factos à condenação do arguido em pena mais grave, não prevê que este seja prevenido da nova qualificação e se lhe dê quanto a ela, oportunidade de defesa'.
As razões que estiveram na base de tal decisão são perfeitamente transponíveis para o caso em apreço pelo que, remetendo-se para tais fundamentos, se tem de concluir, como se concluiu naquele acórdão, pela inconstitucionalidade do Assento nº 2/93.
III - DECISÃO:
Nos termos do que fica exposto, o Tribunal Constitucional decide:
a) Julgar inconstitucional o Assento nº 2/93, enquanto interpreta como não constituindo alteração substancial dos factos descritos na acusação ou na pronúncia a simples alteração da respectiva qualificação jurídica
(ou convolação), mas tão só na medida em que, conduzindo a diferente qualificação jurídico-penal dos factos à condenação do arguido em pena mais grave, não prevê que este seja prevenido da nova qualificação e se lhe dê quanto a ela, oportunidade de defesa, assim concedendo provimento, nesta parte, ao recurso;
b) Quanto aos artigos 127º, 410º, nº 2 e 433º, todos do Código de Processo Penal, decide-se negar provimento ao recurso e confirmar na parte impugnada o acórdão recorrido.
Lisboa, 29 de Janeiro de 1997 Vitor Nunes de Almeida Alberto Tavares da Costa Antero Alves Monteiro Diniz Maria da Assunção Esteves (vencida quanto à norma dos artigos 410º, nº 2 e 433º do Código de Processo Penal). Maria Fernanda Palma (vencida quanto às normas dos artigos 410º, nº 2 e 433º do Código de Processo Penal). Armindo Ribeiro Mendes (vencido quanto à decisão referente aos artºs. 410º/2 e
433º do Código de Processo Penal, nos termos das declarações de voto junto aos acórdãos nºs. 170/94 e 504/94). José Manuel Cardoso da Costa