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Proc.Nº 642/95 Sec. 1ª Rel. Cons. Vítor Nunes de Almeida
Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional:
I - RELATÓRIO:
1. - Em processo de expropriação movido pela A. contra B. E MULHER, que corre termos pela Comarca de Cascais, foi lavrado um laudo arbitral que fixou o montante da respectiva indemnização em Esc.s:
306.054.080$00. A requerimento dos expropriados e por despacho do juiz da causa, foi autorizado aos expropriados o levantamento da indemnização depositada
(306.054.080$00) depois de deduzido o montante provável das custas devidas a final, nos termos do nº3 do artigo 51º do Código das Expropriações, aprovado pelo Decreto-Lei nº 438/91, de 9 de Novembro (adiante, CE).
Não se conformando com esta decisão, a expropriante interpôs recurso de agravo para o Tribunal da Relação de Lisboa, alegando essencialmente que tendo os expropriados interposto recurso do laudo arbitral, pretendendo que o montante da indemnização se fixe em Esc.s:1.257.020.668$00
(mil milhões duzentos e cinquenta e sete milhões vinte mil e seiscentos e cinquenta e oito escudos), a expropriante interpôs um recurso subordinado a este, pretendendo que a indemnização se fixe em Esc.s:195.000.000$00 (cento e noventa e cinco milhões de escudos), recurso este que foi admitido, por despacho de 22 de Julho de 1992, pelo que o despacho ora impugnado viola o nº3 do artigo
51º do CE, porquanto só pode afirmar-se existir acordo nos autos quanto ao montante da indemnização que a expropriante aceita ver fixada.
O despacho recorrido, decidindo em sentido diverso, viola o referido nº 3 do artigo 51º do CE, uma vez que não existe acordo quanto
à totalidade da verba arbitrada para a parcela expropriada.
2. - O Tribunal da Relação de Lisboa, por acórdão de 24 de Novembro de 1994, concedeu provimento ao agravo, determinando a revogação do despacho em causa, ordenando a sua substituição por outro que autorize aos expropriados o levantamento da indemnização no montante de Esc.s:
195.000.000$00, deduzidas as custas prováveis.
Na sua fundamentação, o acórdão invocou o nº 3 do artigo
51º do CE, segundo o qual 'se houver recurso, o juiz atribuirá imediatamente aos interessados, nos termos do número anterior, o montante sobre o qual se verifique o acordo, retendo, porém, se necessário, a quantia provável das custas do processo no caso de o expropriado ou de os demais interessados decaírem no recurso', considerando que tendo havido recurso, quanto ao laudo arbitral, quer por parte dos expropriados quer da expropriante (este a título subordinado), o montante sobre o qual existia acordo era apenas o aceite pela expropriante, de Esc.s: 195.000.000$00.
3. - Os expropriados ainda não convencidos, decidiram interpor recurso deste acórdão para o Supremo Tribunal de Justiça (adiante, STJ), aí formulando as seguintes conclusões:
'1ª - O artº 53/1 do CE reporta-se apenas à execução definitiva da parte da indemnização fixada pelos árbitros que transitou em julgado;
2ª - O mesmo preceito não interfere com a execução provisória da parte não transitada da indemnização fixada pelos árbitro;
3ª - Os expropriados podem requerer a execução provisória desta última, atento o disposto no artº 47/1 do CPC, uma vez que o recurso da decisão dos
árbitros para o Juiz de Direito da Comarca tem efeito meramente devolutivo;
4ª - Essa execução depende de requerimento e faz-se nos termos previstos no CE;
5ª - Quando doutro modo se entendesse, como implicitamente o faz o douto acórdão recorrido, que o artº 51º/3 impede a execução provisória da parte não transitada, seria violado o princípio constitucional da paridade temporal;
6ª - Segundo este princípio, a indemnização deve ser paga no período mais curto possível;
7ª - Tendo os ora agravantes requerido o pagamento da totalidade da indemnização fixada pelos árbitros, esse pedido podia e devia ter sido deferido, tal como sucedeu, nos termos do artº 51º/3 do CE e dos artºs 47º/1 e 48º/2 do CPC;
8ª - a decisão do Mº Juiz de Cascais não merece censura, pelo que deve ser mantida, com os fundamentos desta alegação, revogando-se a decisão agravada;
9ª - Disposições violadas: princípio constitucional da paridade temporal, artº 51º/3 do CE e artºs 47º/1 e 48º/2 do CPC'.
A entidade expropriante, aqui agravada, apresentou contra-alegações, tendo concluído pela forma seguinte:
'1º - O douto acórdão recorrido ao revogar o despacho de fls.107 proferido pelo tribunal «a quo», não autorizando o levantamento do montante sobre o qual não existia acordo, não violou qualquer preceito.
2º - Na verdade, determina o artigo 51º nº3 do Código das Expropriações que se houver recurso o Juiz atribuirá imediatamente aos interessados, o montante sobre o qual se verifique acordo.
3º - Só depois de fixado por decisão com trânsito em julgado o valor da indemnização a pagar pela expropriante, será esta notificada para depositar o montante devido na Caixa Geral de Depósitos no prazo de 10 dias'.
O STJ, por acórdão de 4 de Outubro de 1995, sintetizando a questão suscitada nos autos como a de saber se o nº 3 do artigo 51º do CE, 'se acomoda ou não ao princípio constitucional da simultaneidade temporal entre a privação do bem e o pagamento da respectiva indemnização', veio a negar provimento ao agravo, confirmando a decisão recorrida.
É deste Acórdão que os expropriados recorrem para o Tribunal Constitucional, pretendendo que se aprecie a conformidade constitucional da interpretação feita no acórdão do nº3 do artigo 51º do CE - que os recorrentes não identificam no requerimento de interposição do recurso -, mas que, segundo resulta das alegações, tal sentido é aquele que não permite atribuir imediatamente aos interessados, em caso de recurso, todo o montante da indemnização constante do laudo arbitral, mas apenas o montante sobre que haja acordo, considerando que tal interpretação viola o princípio constitucional da justa indemnização, consagrado no artigo 62º, nº 2, da Constituição, na vertente do subprincípio da paridade temporal.
Corridos que foram os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.
III - FUNDAMENTOS:
4. - Nos termos do que se dispõe no nº 2 do artigo 62º da Constituição da República Portuguesa (CRP), 'a requisição e a expropriação por utilidade pública só podem ser efectuadas com base na lei e mediante o pagamento de justa indemnização'.
E é efectivamente a concretização deste conceito de
«justa indemnização» que vem questionada nos autos, uma vez que os recorrentes entendem que a atribuição de apenas parte (a parte sobre a qual exista acordo) do montante da indemnização fixada pelo laudo arbitral, não realiza - antes contraria - o princípio constitucional da paridade temporal do pagamento da indemnização, princípio este que se tem de considerar como integrador do conceito de «justa indemnização».
Vejamos.
A expropriação por utilidade pública (no sentido de intervenção administrativa autorizada pela lei, que, com vista ao prosseguimento de um interesse público, impõe ao respectivo titular o sacrifício de um bem jurídico mediante o pagamento de uma justa indemnização), constitucionalmente consagrada, depende, assim, do pagamento de uma indemnização, que a nossa lei fundamental qualifica de «justa». Com efeito, se faltar, de todo em todo, a indemnização, não pode falar-se de expropriação; se o valor fixado for irrisório ou meramente simbólico, também não pode falar-se de indemnização em termos constitucionalmente adequados.
Mas independentemente da real extensão do conceito, importa agora analisar, se e em que termos, na «justa indemnização» se inclui ainda o princípio da 'paridade temporal' da indemnização, na forma usada pelos recorrentes.
Segundo Gomes Canotilho e Vital Moreira (in
'Constituição da República Portuguesa Anotada',3ª Edição, Coimbra Editora, pág.
336) 'a ideia de justa indemnização comporta, desta forma, duas dimensões importantes: (a) uma ideia tendencial de contemporaneidade, pois, embora não sendo exigível o pagamento prévio, também não existe discricionaridade quanto ao adiamento do pagamento da indemnização; (b) justiça da indemnização quanto ao ressarcimento dos prejuízos suportados pelo expropriado (...)'. Efectivamente, para que uma indemnização possa ser considerada justa, não é suficiente que o seu valor corresponda à satisfação integral dos prejuízos causados ao expropriado: é também indispensável que a forma de pagamento prevista seja, em concreto, orientada no sentido da completa realização daquela finalidade.
Com efeito, a fixação pelo laudo arbitral de um quantitativo de indemnização considerado adequado para satisfazer plenamente os prejuízos causados pelo acto expropriativo, pode ver a sua justeza gravemente afectada ou mesmo praticamente anulada se o pagamento efectivo se vier a verificar muito tempo depois de realizada a expropriação.
Na verdade, já no domínio do Código das Expropriações aprovado pelo Decreto-Lei nº 845/76, de 11 de Dezembro, a doutrina questionava a conformidade constitucional das normas que permitiam, por exemplo, a possibilidade do pagamento da indemnização em prestações (cf., em especial, Alves Correia, 'Formas de Pagamento da Indemnização na Expropriação por Utilidade Pública', in 'Separata do número especial do Boletim da Faculdade de Direito de Coimbra' - «Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor António de Arruda Ferrer Correia» - 1984).
Não estabelecendo a Constituição a forma de pagamento da indemnização por expropriação, cabe ao legislador ordinário a determinação de tais formas, sempre com respeito pelo parâmetro constitucional.
O CE em vigor estabelece no seu artigo 1º que 'os bens imóveis e direitos a eles inerentes podem ser expropriados por causa de utilidade pública, compreendida nas atribuições da entidade expropriante, mediante o pagamento contemporâneo de uma justa indemnização'. A ideia de
'contemporaneidade' do pagamento da indemnização expropriativa volta a surgir no artigo 22º do mesmo código, onde, de novo se refere que ' a expropriação por utilidade pública de quaisquer bens ou direitos confere ao expropriado o direito de receber o pagamento contemporâneo de uma justa indemnização'.
No que diz respeito à forma de pagamento da indemnização, o artigo 65º do CE determina no seu nº 1, que 'as indemnizações por expropriação por utilidade pública são pagas em dinheiro, por uma só vez, salvo as excepções previstas nos números seguintes'. Estas excepções reportam-se
à possibilidade de pagamento em prestações ou através de cedência de bens ou direitos - o que só pode ocorrer em expropriações amigáveis, por acordo, ou no caso das que iniciadas como litigiosas vêm a terminar por transacção judicial ou extrajudicial.
A realização do pagamento da indemnização através de depósito ocorrerá dentro do prazo de 10 dias, após o trânsito em julgado da decisão que fixar o respectivo montante.
Este, o sistema de pagamento em processo normal, ocorrendo o pagamento contemporaneamente ou logo após a entidade expropriante tomar posse dos bens.
No caso, porém, de haver sido interposto recurso relativo ao montante da indemnização fixada pelo laudo arbitral, a lei adoptou uma outra solução: o juiz atribuirá imediatamente aos interessados o montante sobre o qual se verifique acordo, retendo, porém, se necessário, a quantia provável das custas do processo no caso de o expropriado ou de os demais interessados decaírem no recurso.
E é esta norma, na sua dimensão inicial, que os recorrentes consideram violar o princípio da paridade temporal do pagamento da indemnização, ínsito no princípio da justa indemnização.
Será assim?
5. - Da decisão arbitral cabe recurso para o tribunal da comarca da situação dos bens a expropriar ou da sua maior extensão, cujo regime processual consta do artigo 56º e seguintes do CE (artigo 51º, nº 1, do mesmo diploma).
De acordo com o preceituado no artigo 64º do CE, o juiz deve proferir sentença fixando o montante das indemnizações a pagar, podendo, desta decisão, ser interposto recurso para o Tribunal da Relação, com efeito meramente devolutivo.
Assim, a decisão que o juiz vier a proferir no recurso do laudo arbitral, quanto ao montante da indemnização, face ao efeito meramente devolutivo do recurso, pode ser imediatamente executada, e, a ser aqui aplicável o regime geral do processo civil - o que o recorrente também refere -, enquanto estiver pendente o recurso o exequente ou qualquer credor ser pago sem que previamente preste caução.
Efectivamente, na sequência da solução legislativa constante do nº 3 do artigo 51º do CE, o nº 4 deste preceito estabelece que 'a entidade expropriante poderá requerer a substituição por caução do depósito da parte da indemnização sobre a qual não se verifica acordo', o que significa que a entidade expropriante devedora do valor da indemnização, em caso de existir divergência entre os montantes oferecidos, fixados pelo juiz e reclamados pelos expropriados, pode requerer que o depósito da parte da indemnização fixada e que exceda a oferecida (sobre a qual há acordo), seja substituído por uma caução.
Mas sendo assim, é claro que a norma na dimensão questionada não só não viola o principio da contemporaneidade do pagamento da indemnização, como tem essencialmente na sua base a realização possível, naquele momento processual de tal princípio.
Com efeito, o legislador, face à impossibilidade de concretização do pagamento da indemnização contemporaneamente com a entrega ou posse do bem expropriado, uma vez que existe divergência quanto ao respectivo montante - divergência esta consubstanciada na interposição do recurso do laudo arbitral - impôs o pagamento imediato da parte da indemnização sobre a qual havia já acordo dos interessados.
Quanto à parte constante da decisão recorrida que exceder tal acordo, a lei permite que o seu depósito seja substituído pela prestação de adequada caução por parte da entidade expropriante. Se, eventualmente, tal parte tiver sido depositada, o juiz não poderá permitir o seu pagamento, mesmo na hipótese de se instaurar execução da decisão em recurso, enquanto este estiver pendente, a menos que o credor preste a adequada caução
(artigo 47º, nº2 do Código de Processo Civil).
De qualquer modo, não podendo deixar o princípio da contemporaneidade do pagamento da indemnização de ser tendencialmente entendido, só o podendo ser de forma absoluta a partir do momento do trânsito em julgado da decisão que fixa a indemnização, a norma do nº 3 do artigo 51º do CE, enquanto manda pagar imediatamente, em caso de recurso da decisão arbitral, o montante da indemnização sobre que há acordo, não viola tal princípio, antes o procura realizar dentro do condicionalismo que o legislador rodeou a forma de pagamento não imediato da totalidade da indemnização: o acordo das partes.
Com efeito, sendo a forma de pagamento da indemnização que melhor realiza a 'justa indemnização' o pagamento desta, na sua totalidade, através de uma quantia em dinheiro, pois é esta modalidade a que melhor realiza os interesses dos expropriados na medida em que logo a seguir à posse do bem expropriado, a entidade expropriante põe ao dispor daquele o valor em dinheiro que corresponde à indemnização integral, o certo é que a lei aceita também que o pagamento se faça através de prestações ou em espécie (através da cedência, total ou parcial, de bens ou direitos), fazendo depender esta modalidade de pagamento do acordo entre o expropriante e o expropriado (ao contrário do que sucedia no anterior código, em que este meio de pagamento não carecia da concordância do expropriado nem da alegação e prova da insuficiência de meios financeiros, o que fundamentava as críticas de inconstitucionalidade por violação do princípio da justa indemnização - cf. Alves Correia, 'Formas de pagamento...', cit., pág.40 a 47).
Assim, a norma na dimensão que vem questionada não é nem arbitrária nem desrazoável, antes realiza o princípio da proporcionalidade ao impor o pagamento imediato da parte da indemnização que se pode considerar acordada entre a entidade expropriante e os expropriados, pelo que não ocorre o vício de inconstitucionalidade invocado pelos requerentes.
III - DECISÃO:
Nos termos do que fica exposto, o Tribunal Constitucional decide negar provimento ao recurso, confirmando a decisão recorrida na parte impugnada.
Lisboa, 1997.03.18 Vítor Nunes de Almeida Armindo Ribeiro Mendes Alberto Tavares da Costa Maria da Assunção Esteves Antero Alves Monteiro Diniz José Manuel Cardoso da Costa