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Processo nº 450/95
1ª Secção Rel. Cons. Tavares da Costa
Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional
Nos autos de expropriação por utilidade pública em que é expropriante a A., e são expropriados B. e marido, C. , identificados nos autos, foi fixada por acórdão do Tribunal da Relação do Porto, após a devida tramitação processual, a indemnização a atribuir aos expropriados.
Inconformada, relativamente ao quantum indemnizatório, recorreu a expropriante para o Supremo Tribunal de Justiça
(STJ), o qual, no entanto, por acórdão de 1 de Fevereiro de 1994 - tirado em conferência, nos autos de recurso de revista nº 84887, 1ª Secção - viria a não tomar conhecimento do recurso, considerando-o inadmissível, após se interrogar sobre se, em sede de processo expropriativo, está ou não vedado, em termos absolutos, o recurso para esse Tribunal.
Reagiu a A., recorrendo para o Tribunal Pleno desse acórdão, invocando, para o efeito, oposição do decidido com anterior aresto do STJ, de 17 de Junho de 1993, proferido em conferência da 2ª Secção, no recurso nº 84051, versando a mesma questão fundamental de direito, no domínio da mesma legislação (publicado na Colectânea de Jurisprudência, Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, 1993, Tomo II, págs. 155 e ss.).
A alegada oposição fundamenta-se na divergência de soluções adoptadas pelos dois acórdãos no tocante à mesma questão de direito, relativa à interpretação dada à norma do artigo 37º do Código das Expropriações, aprovado pelo Decreto-Lei nº 438/91, de 9 de Novembro, confrontada, nomeadamente, com a norma do preceito correspondente do diploma anterior, a do nº 1 do artigo 46º do Código aprovado pelo Decreto-Lei nº 845/76, de 11 de Dezembro.
Dispunha este último normativo que 'na falta de acordo sobre o valor global da indemnização, será este fixado por arbitragem, com recurso para os tribunais, de harmonia com a regra geral das alçadas. Não haverá, porém, recurso das decisões da Relação para o Supremo Tribunal de Justiça'.
Ora, de acordo com o vigente artigo 37º, 'na falta de acordo sobre o valor global da indemnização, será este fixado por arbitragem, com recurso para os tribunais, de harmonia com a regra geral das alçadas', suprimindo-se, assim, o último período do preceito anterior.
Os tribunais têm discutido o grau de relevância desta alteração textual, dando-lhe leitura diferente como transparece, claramente, no caso concreto.
Na verdade, no aresto de 5 de Julho de 1994 do STJ, reconhece-se preliminarmente a existência de oposição, pois, no domínio do novo diploma sobre expropriações, o acórdão recorrido decidiu no sentido de não admitir o recurso de revista interposto do aresto da Relação sobre o valor global indemnizatório, e o acórdão fundamento decidiu em sentido contrário, admitindo a revista.
Verificados, assim, os pressupostos exigidos para a admissibilidade de recurso para o Tribunal Pleno, prosseguiram os autos seus termos até que, em 30 de Maio de 1995, foi tirado acórdão em Pleno que, negando provimento ao recurso, formulou a seguinte doutrina, por via de assento:
'O Código das Expropriações, aprovado pelo Decreto-Lei nº 438/91, de 9 de Novembro, consagra a não admissibilidade de recurso para o Supremo Tribunal de Justiça que tenha por objecto decisão sobre a fixação do valor da indemnização devida.'
É deste acórdão que a expropriante recorre para o Tribunal Constitucional, ao abrigo da alínea b) do nº 1 do artigo 70º da Lei nº
28/82, de 15 de Novembro.
2.- Recebido o recurso, não sem prévio apelo ao mecanismo clarificador previsto no artigo 75º-A, conjugado com o nº 1 do artigo
70º, ambos daquela lei, alegaram as partes, tendo a recorrente junto pareceres dos Professores Doutores Lebre de Freitas e Gomes Canotilho, por ordem de junção.
Formulou a A., as seguintes conclusões:
'1.- A decisão recorrida atribuiu natureza jurisdicional à fase da arbitragem que decorre perante a entidade expropriante no processo de expropriação.
2.- Nessa fase não é minimamente observado o princípio do contraditório, cuja observância constitui um requisito essencial do processo de jurisdição contenciosa, enquanto corolário do direito fundamental do acesso à justiça consagrado no artº 20º da Constituição da República, integrado pelo artº 10º da Declaração Universal dos Direitos do Homem.
3.- O procedimento da arbitragem perante a entidade expropriante não caracteriza, pois, um procedimento jurisdicional.
4.- Os meios de arbitragem necessária constituem, aliás, por definição, meios de composição não jurisdicional de conflitos, admitidos pelo artº 205º.4 da Constituição, e só por não serem jurisdicionais não colidem com o princípio da reserva da função jurisdicional aos tribunais.
5.- Negada a natureza jurisdicional da fase da arbitragem e consequentemente constituindo o 'recurso' da decisão dos árbitros para o tribunal da comarca uma 1ª instância jurisdicional, o raciocínio essencial da decisão recorrida (a inadmissibilidade duma 4ª instância jurisdicional), que o levou a interpretar os artºs. 37º, 51º.1 e 64º.2 do DL. 438/ 91, de 9 de Novembro, no sentido de impedirem o recurso de revista que tenha por objecto decisão sobre a fixação do valor da indemnização devida, cai por base.
6.- Ao invés, se estivesse certa a interpretação que o acórdão fez dos referidos preceitos, estes seriam inconstitucionais, por se fundarem numa visão inconstitucional da natureza da fase de arbitragem, por entenderem esta 'arbitragem' como cabendo na previsão do artº 211º.2 da Constituição, por entenderem inadmissível no mesmo sistema jurídico-constitucional o 4º grau de jurisdição (em oposição ao decidido pelo T.C. em, 3.3.93) e por coarctarem o direito ao recurso para a instância jurisdicional máxima em processos de valor normalmente avultado e em que está em causa o direito fundamental de propriedade, tudo com ofensa dos artºs. 20º, 62º,
205º.4 e 211º.2 da Constituição.
7.- A questão da inconstitucionalidade do entendimento como jurisdicional do procedimento dito de arbitragem perante a entidade expropriante, bem como do entendimento de que não pode haver no nosso sistema jurídico-constitucional um 4º grau de jurisdição, com a consequência de o DL.
438/91 dever ser interpretado no sentido de negar o direito ao recurso de revista, foi levantada pela recorrente logo que pôde fazê-lo, isto é, nas alegações do recurso para o Tribunal Pleno, após a decisão do STJ que decidiu não admitir o recurso, que o TRP admitira, sem prejuízo de já anteriormente, após o despacho do relator no sentido de serem ouvidas as partes sobre a admissibilidade do recurso, ter junto um parecer em que as questões de constitucionalidade que ora fundam o recurso para o TC eram postas.
8.- As referências à Constituição e, expressamente, ao seu artº 211º.2 são feitas no acordão recorrido e desenvolvidas, na perspectiva inversa da inconstitucionalidade, em declaração de voto dos conselheiros que votaram vencidos.
9.- E como se conclui no douto parecer atrás referido do Sr. Prof. Gomes Canotilho, que corrobora a pretensão da recorrente, os dados literais do novo Código das Expropriações, ao afastarem a norma que proibia expressamente o recurso para o STJ, apontam claramente para a reintrodução da possibilidade de recurso para o STJ.
10.- O princípio da interpretação das leis conforme à Constituição significa que, em caso de dúvidas interpretativas, se opte pela alternativa que maximize a realização das finalidades constitucionais.
11.- Em face das ideias anteriores, parece concluir-se que a interpretação do teor literal dos preceitos do Código das Expropriações em termos que admitam recurso para o STJ é perfeitamente consistente com o princípio da protecção jurisdicional efectiva, densificador do princípio do Estado de Direito.
12.- Há, pois, que concluir pela inconstitucionalidade da interpretação das normas dos artºs. 37º, 51º.1 e 64º.2, do DL. 438/91 feita pela decisão recorrida.'
Os expropriados, por seu turno, alegaram no sentido de a natureza da fase de arbitragem dever ser qualificada de jurisdicional, funcionando como um grau de jurisdição, não impondo a Constituição, mesmo em matéria de direitos fundamentais, recurso para o Supremo.
Corridos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.
II
1.- A delimitação do objecto do recurso.
1.1.- A questão de constitucionalidade, na fiscalização concreta que tem por base a alínea b) do nº 1 do artigo 70º da Lei nº 28/82, deve ser equacionada de forma clara e perceptível na indicação da norma cuja inconstitucionalidade se suscita, mormente quando se trate de uma dada interpretação normativa. Só assim se pode enunciar o sentido correcto que o tribunal recorrido adoptará para, se for caso disso, reformar a sua anterior decisão e só assim os destinatários directos da norma e os operadores jurídicos em geral saberão que norma, ou seu segmento, ou que leitura dessa norma ou segmento, deverão acolher.
No caso vertente, sentiu o relator necessidade em recorrer ao já aludido expediente previsto no citado artigo 75º-A e, se bem se compreende, considera-se que, na perspectiva da recorrente, o STJ interpretou inconstitucionalmente as normas contidas nos artigos 37º, 51º, nº 1, e 64º, nº
2, do Código das Expropriações aprovado pelo artigo 1º do Decreto-Lei nº 438/91
(entendimento reforçado com o teor das alegações apresentadas e respectivas conclusões).
Assim, interpretou-se o artigo 37º subentendendo a natureza jurisdicional da decisão arbitral no tocante ao montante indemnizatório, leitura que - na óptica da recorrente - enferma de inconstitucionalidade, seja por violação do disposto no nº 4 do artigo 205º e no nº 2 do artigo 211º da CR, seja por desrespeito ao artigo 20º do mesmo texto
- não se mostra assegurado o princípio do contraditório, enquanto corolário do direito fundamental do acesso à justiça - seja, ainda, por postergação do artigo 62º, coarctado que fica o direito de recurso para a 'instância jurisdicional máxima' em processos de valor normalmente avultado e em que está em causa o direito fundamental da propriedade.
A norma do artigo 51º, nº 1, na interpretação que lhe foi dada, sofre a mesma sorte da primeira, por lógica decorrência do enfoque inicial.
Finalmente, a terceira das normas enunciadas, a do nº 2 do artigo 64º, na interpretação restritiva que lhe foi dada, convoca a problemática do número de graus de conhecimento dos conflitos de interesses subjacentes, impedindo um quarto grau de jurisdição que o texto constitucional não proíbe, o que, para além da indistinção quanto à natureza, jurisdicional ou não, desses graus, não se coaduna com aquele artigo 62º da CR, ao impor o Tribunal da Relação como último grau de jurisdição quando estão em causa questões de direito relativas ao apuramento das indemnizações.
1.2.- Convirá, de imediato, transcrever as normas cuja interpretação se questiona, todas elas inseridas, sistematicamente, no Título IV do Código aprovado pelo artigo 1º do Decreto-Lei nº 438/91, de 9 de Novembro, sob a epígrafe 'Processo de expropriação'.
O artigo 37º - 'Arbitragem' - abre a Secção I
- 'Disposições introdutórias' - do Capítulo II - 'Expropriação litigiosa'
- e diz assim:
'Na falta de acordo sobre o valor global da indemnização, será este fixado por arbitragem, com recurso para os tribunais, de harmonia com a regra geral das alçadas.'
O artigo 51º é parte integrante da Subsecção I -
'Arbitragem' - da Secção II - 'Da tramitação do processo' - do mesmo capítulo e tem por epígrafe 'Recurso', dispondo o seu nº 1:
'1.- Da decisão arbitral cabe recurso para o tribunal da comarca da situação dos bens a expropriar ou da sua maior extensão, a interpor no prazo de 14 dias, nos termos dos artigos 56º e seguintes:'
O artigo 64º faz parte da Subsecção IV - 'Recurso da arbitragem' - da mesma Secção - e Capítulo - e está epigrafado 'Decisão', constando do seu nº 2:
'A sentença será notificada às partes, podendo dela ser interposto recurso com efeito meramente devolutivo para o tribunal da relação.'
2.- Assim delimitado o objecto do recurso e expostas as teses das partes na medida das condensações contidas nas respectivas conclusões das alegações, importa mencionar mais espaçadamente a posição assumida pelo STJ e a estrutura lógica-dedutiva em que assenta, na óptica restritiva do recurso de constitucionalidade sem que, obviamente, se pretenda 'intervir ou resolver contendas jurisprudenciais em matérias que escapam à sua função específica de constitucionalidade' - na expressão do acórdão nº 279/92, publicado no Diário da República, II Série, de 23 de Novembro de 1992 - para o que faleceria competência.
Ora, o decidido radica na tradicional consagração, entre nós, de um máximo de três graus de jurisdição.
No domínio das expropriações por utilidade pública, o recuo à Lei nº 2030, de 22 de Junho de 1948, mostra-nos caber recurso do resultado da arbitragem para o tribunal da comarca da situação dos bens, de harmonia com as disposições legais em vigor (artigo 14º, nº 3), enquanto o diploma que a veio regulamentar - o Decreto nº 37758, de 27 de Fevereiro de
1950 - estabelecia que da decisão dos árbitros que fixasse a indemnização a pagar pelo expropriante se recorria para o juiz de direito da comarca, mas deste não havia recurso (artigos 23º e 31º, §2º).
No entanto, a partir da Lei nº 2063, de 3 de Junho de 1953 (cfr., nomeadamente, os seus artigos 1º, 2º e 8º) consagrou-se um regime mais amplo em matéria de recursos, sendo admissível o recurso para o STJ sobre o quantum indemnizatório, se bem que coordenado com as regras gerais das alçadas
- o que, na perspectiva discutível e discutida no caso vertente, da jurisdicionalidade da decisão arbitral, gerava um sistema de quatro graus de jurisdição.
Por sua vez, o Regulamento das Expropriações aprovado pelo Decreto nº 43587, de 8 de Abril de 1961, ao remeter expressamente para o artigo 8º da Lei nº 2063 no seu artigo 41º, nº 3, manteve esse regime.
O Decreto-Lei nº 71/76, de 27 de Janeiro, veio, porém, pôr fim ao que se poderia chamar desvio ao regime tradicional dos três graus de jurisdição, vedando o recurso das decisões das Relações para o STJ nesta matéria (artigo 43º, nº 1), numa opção que mereceu destaque preambular, como consta do nº 7 da respectiva nota introdutória:
'Ao estabelecer a arbitragem com recurso para os tribunais
[escreveu-se então] exclui-se o recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, pois não se justifica a existência de quatro graus de jurisdição.'
Como se salienta no acórdão recorrido, da conjugação dos artigos 56º, nº 1, e 80º, nº 4, do diploma, resultava que da decisão arbitral cabia recurso para o juiz da comarca e da sentença deste podia ser interposto recurso, sem efeito suspensivo, para a Relação.
E se é certo que o Decreto-Lei nº 71/76 logo foi substituído pelo Decreto nº 845/76, de 11 de Dezembro, que aprovou o Código das Expropriações, aquele regime foi mantido (cfr., artigos 46º, nº 1, 59º, nº 1, e
83º, nº 4).
O Decreto nº 845/76 foi, por sua vez, revogado pelo Decreto nº 438/91, que aprovou o novo Código, dispondo o seu artigo 37º que, na falta de acordo sobre o valor global da indemnização, será este fixado por arbitragem, com recurso para os tribunais, de harmonia com a regra geral das alçadas, com o que se reiterou o anteriormente disposto no nº 1 do artigo 43º do Decreto nº 71/76 e no nº 1 do artigo 46º do 'Código' de 1976, suprimindo-se, embora, o período final em que expressamente se afirmava não haver recurso das decisões da Relação para o STJ.
Nem por isso se entende - na tese professada maioritariamente pelo acórdão recorrido - que a eliminação desse texto significasse a admissibilidade do recurso: o sistema dos três graus de jurisdição não o permitiria, configurando um eventual quarto grau uma
'excrescência' a significar 'privilégio único e injustificado', nomeadamente tendo em atenção a própria unidade do sistema jurídico que, assim, seria quebrada, sem razoável justificação.
Merece transcrever-se a parte do acórdão recorrido onde se pondera a matéria:
'É regra geral e tradicional do nosso direito a existência de três graus de jurisdição, em correspondência com a hierarquização dos tribunais - de
1ª Instância, Relações e Supremo Tribunal de Justiça.
A possibilidade de existência de quatro graus de jurisdição seria, assim, privilégio único e injustificado dos processos de expropriação por utilidade pública, pois que se trata de determinar montante de indemnização por vezes até sem as dificuldades inerentes à determinação de qualquer outra derivada da responsabilidade contratual e extracontratual.'
E, mais adiante:
'Pretende, porém, sustentar-se que, não se tendo reproduzido no artigo 37º do vigente Código das Expropriações a proibição do recurso das decisões da Relação para este Supremo Tribunal, tal recurso é agora admissível, dependendo, nos termos gerais, do valor da causa e da sucumbência.
Haverá, no entanto, que dizer que, não ignorando o legislador a evolução sofrida, em matéria de recursos, pelos processos de expropriação por utilidade pública, tendo expressamente eliminado aquele quarto grau de jurisdição, que afirmou não se justificar no preâmbulo do Decreto nº 71/76, e constituindo esse quarto grau de jurisdição uma excrescência no nosso sistema jurídico, será anormal que viesse repô-lo no vigente Código das Expropriações, em significativa inovação, sem que, no preâmbulo do Decreto nº 438/91 [terá querido dizer Decreto-Lei], lhe fizesse qualquer referência, embora só salientasse 'os aspectos mais inovadores do presente diploma e que, como inicialmente se disse, significam uma alteração substancial do Código anterior'. Parece que um legislador prudente, assim como o anterior eliminou o quarto grau de jurisdição que teve por injustificado, cuidaria de destacar que voltava a ser admissível recurso para este Supremo Tribunal e até justificaria a mudança operada nesse sentido. Tanto mais que essa admissibilidade se apresentaria em termos pouco claros, como abaixo se dirá.
O certo, no entanto, é que, com o devido respeito, no aspecto em questão, o actual Código das Expropriações nada inovou em relação ao anterior.
O teor do artigo 37º, estabelecendo que na falta de acordo sobre o valor global da indemnização, será este fixado por arbitragem, com recurso para os tribunais, de harmonia com a regra geral das alçadas, não é, por si, decisivo no sentido da admissibilidade do recurso para o Supremo Tribunal de Justiça. Trata-se de uma 'disposição introdutória', que se pode entender como querendo aludir à possibilidade de recurso e à restrição resultante das alçadas. E quanto a recursos apenas se diz mais no artigo 51º, nº 1, na parte relativa à tramitação do processo e quanto à arbitragem, que da decisão arbitral cabe recurso para o tribunal de comarca, e no artigo 64º, nº 2, referente ao recurso da arbitragem, que da sentença pode ser interposto recurso com efeito meramente devolutivo para o Tribunal da Relação.
Dispõe o artigo 9º, nº 3, do Código Civil que na fixação do sentido e alcance de lei, o intérprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados.
Ora se com o disposto no artigo 37º se pretendeu estabelecer recurso para os tribunais da decisão arbitral de harmonia com a regra geral das alçadas, a referência feita ao artigo 64º, nº 2, de que da sentença, se recorre para a Relação é descabida. Se nesse nº 2 se pretendia indicar o efeito a atribuir ao recurso interposto da sentença, bastaria dizer que tinha efeito meramente devolutivo, sendo inútil acrescentar 'para o Tribunal da Relação'. Acrescendo que, se ao fixar-se o efeito meramente devolutivo, se pretendeu fugir ao efeito suspensivo que, em regra, é próprio da apelação - artigo 692º, nº 2, do Código de Processo Civil - é de ter em conta que ao recurso de revista, como última instância de recurso, é, também, em regra atribuído esse efeito meramente devolutivo - artigo 723º do mesmo Código. Para além disso, sendo o processo de expropriação por utilidade pública um processo especial, regulando-se pelas disposições que lhe são próprias e pelas gerais e comuns e, no que respeita a recursos, aplicando-se, em princípio, o regime do processo sumário - artigos 460º, nº 2 e 463º, nºs. 1 e 3 do Código de Processo Civil -
o recurso a interpor da sentença do tribunal da comarca para a Relação sempre teria efeito meramente devolutivo, atento o disposto no artigo 792º deste mesmo Código. Pelo que a alusão ao efeito meramente devolutivo efectuada no dito artigo 64º, nº 2, aparenta-se redundante.
Daí que o teor do nº 2 desse artigo 64º só se compreenda por, na manutenção do regime anterior, se ter querido limitar o recurso até ao Tribunal da Relação. O que aliás se compreende uma vez que este Supremo Tribunal, como tribunal de revista, aos factos materiais fixados pela 2ª Instância aplica definitivamente o regime jurídico que julga adequado - artigo 729º, nº 1, do Código de Processo Civil; os factores com influência no montante da justa indemnização, ou seja, na determinação do valor real dos bens expropriados, constituem quase sempre só matéria de facto a dispensar a análise de preceitos legais ou regulamentares e, portanto, fora do alcance deste Tribunal; sendo de atender à unidade do sistema jurídico, que resulta quebrada com a excepção de um quarto grau de jurisdição para esta espécie de processos, sem que se encontre para isso justificação.
Restará dizer que, como mencionou o Exmo. Magistrado do Ministério Público, a solução proposta corresponde à jurisprudência dominante neste Supremo Tribunal.'
III
1.- O acórdão recorrido pressupõe a natureza jurisdicional da arbitragem na fixação do montante indemnizatório, no processo expropriativo por utilidade pública.
Com efeito, nele se pondera representar o acórdão dos árbitros, nestes processos, 'o resultado de um julgamento, constituindo verdadeira decisão e não um simples arbitramento, susceptível de recurso em sentido próprio', como resulta do nº 1 do artigo 51º do Código actual das Expropriações.
E, após se abonar na jurisprudência (cfr., os acórdãos citados, de 9 de Outubro de 1970, e de 9 de Maio de 1990, publicados no Boletim do Ministério da Justiça, nºs. 200, págs. 168 e ss. e 397, págs. 423 e ss., respectivamente), adianta estar prevista na própria Constituição (nº 2 do artigo 211º) a existência de tribunais arbitrais, acrescentando estabelecer o nº
2 do artigo 26º da Lei nº 31/86, de 29 de Agosto, tal como anteriormente o artigo 1522º do Código de Processo Civil, que a decisão arbitral tem a mesma força executiva que a sentença do tribunal judicial de 1ª instância.
O Tribunal Constitucional tem, a este respeito, elaborado uma jurisprudência impressiva.
Como se salientou no acórdão nº 757/95 - publicado no Diário da República, II Série, de 27 de Março de 1996 - já por diversas vezes se afirmou (cfr., acórdãos nos. 419/87 e 98/88, publicados naquele jornal oficial, II Série, de 5 de Janeiro de 1988 e 22 de Agosto seguinte, respectivamente) que 'embora a administração da justiça caiba em exclusivo aos tribunais, tal não significa que esse exclusivo respeita apenas aos tribunais estaduais; abrange também os tribunais arbitrais que, não podendo considerar-se órgãos de soberania, são verdadeiros tribunais' (cfr., entre outros, os acórdãos nºs. 230/86 e 33/88, respectivamente publicados no Diário da República, I Série, de 12 de Setembro de 1986 e 22 de Fevereiro de 1988).
Não dando o texto constitucional uma definição de
'tribunal', há-de esta radicar-se na natureza das funções que exerce, no seu carácter jurisdicional (cfr., acórdão nº 289/86, publicado no Diário citado, II Série, de 7 de Janeiro de 1987), e no estatuto de independência e imparcialidade de quem desempenha tais funções.
Concretamente - e para seguir o aludido acórdão nº 757/95, pois não se vê razão para dele nos afastarmos - 'o que importa é analisar se a actividade da arbitragem a que se refere o dito Código das Expropriações [...] se insere nas funções que, nos termos do artigo 205º da Constituição, definem e determinam a integração da sua competência na função jurisdicional, e no estatuto de independência e imparcialidade de quem desempenha tais funções (se, por outras palavras, os árbitros gozam, no desempenho das suas funções, da independência e da imparcialidade que se requerem a quem exerce a função de julgar)'.
Os árbitros - mais se observa - dispõem de independência funcional, pois que designados de entre uma lista oficial de cidadãos sujeitos a inibição e impedimentos vários (cfr., artigos 43º, nº 2, do Código das Expropriações, 2º e 3º do Decreto-Lei nº 44/94, de 29 de Fevereiro, e
1º do Decreto Regulamentar nº 21/93, de 15 de Julho), e intervêm para dirimir um conflito de interesses entre partes no processo de expropriação litigiosa.
'Eles compõem um conflito entre entidades privadas e públicas ao decidirem sobre o valor do montante indemnizatório da expropriação, sendo que tal decisão visa tornar certos um direito ou uma obrigação, não constituindo um simples arbitramento'.
Traduzida na fixação do valor global da indemnização, a intervenção cabe no âmbito da acção de um tribunal arbitral admitido pelo nº 2 do artigo 211º da CR e, 'não atenta contra a atribuição da reserva da função jurisdicional aos tribunais nem com a garantia de acesso aos mesmos, princípios integradores do princípio do Estado de direito democrático, defluindo dos artigos 2º, 20º, nº 1, e 205º da Lei Fundamental'.
De resto, Gomes Canotilho, no parecer junto aos autos, não deixa de reconhecer que o Código das Expropriações aponta para
árbitros de 'designação neutra'. Com efeito - escreve - a lei atribui à entidade expropriante a competência, em primeira linha, para promover a constituição e o funcionamento de uma arbitragem assente em três árbitros escolhidos pelo Presidente do Tribunal da Relação a partir de uma lista oficial de peritos'. E não deixa de observar: 'Verifica-se que houve a preocupação de respeitar o princípio da separação de poderes. A intenção do legislador parece apontar no sentido de que aquele órgão de composição de conflitos funcione com um grau de imparcialidade em tudo semelhante ao que caracteriza os órgãos judiciais. Tudo indica, pois, que o conteúdo das decisões arbitrais se aproxima das sentenças judiciais, na medida em que pretende dar expressão à aplicação objectiva e isenta de normas jurídicas' (cfr. ponto 3.2.).
É certo que, sem prejuízo de se reconhecer que se teve o cuidado de rodear a arbitragem necessária em processo expropriativo de mecanismos estruturais quase jurisdicionais, em termos que possibilitassem a sua recondução à categoria dos tribunais arbitrais previstos no nº 2 do artigo 211º da CR, tende o autor a afirmar a natureza quase jurisdicional deste tipo de arbitragem, situada algures numa zona indefinida entre a fase administrativa e a fase jurisdicional do processo expropriativo, 'embora, provavelmente, muito mais próxima da segunda do que da primeira'. E salienta a vinculação da arbitragem aos princípios da imparcialidade, do contraditório e da fundamentação, não sem acrescentar ser questionável que se possa deduzir o funcionamento da arbitragem em alternativa às vias jurisdicionais ordinárias, tanto mais que se trata de matéria de direitos fundamentais análogos aos direitos, liberdades e garantias, acrescendo que a decisão sobre o valor da indemnização em processo expropriativo tem sido considerada com uma matéria integrante da reserva do juiz (cfr. ponto 3.3.).
Não tem ido tão longe, como vimos, a exigência do Tribunal Constitucional que tem visto as decisões dos árbitros, nesta área, como verdadeiras e próprias decisões jurisdicionais, dotadas de autoridade e da força vinculativa de que gozam as sentenças judiciais, o que compensa a ausência de potestas por parte do árbitro (o 'juiz-árbitro' desenvolve uma função jurídica pela qual declara o Direito jurisdictio, se bem que não possa executá-lo, ao invés do que se passa com o 'juiz-funcionário', ponderou-se no acórdão nº 52/92, tirado em Plenário, publicado no Diário da República, I Série-A, de 14 de Março de 1992).
Além do mais não parece - ao contrário do que a recorrente defende e vem desenvolvido no parecer junto, de Lebre de Freitas - estar, no entendimento que se professa, postergado o princípio do contraditório, concebido como princípio da participação efectiva no desenvolvimento do litígio, constituindo desse modo uma derivação do direito de acesso à justiça, a implicar que todo o procedimento de carácter decisório pode ser adoptado sem a prévia participação das pessoas que serão afectadas pelos respectivos efeitos
(cfr., o nº 5 do parecer): expressão desse princípio encontra-se no Código das Expropriações actual na vistoria ad perpetuam rei memoriam, permitindo a comparência dos interessados e a faculdade de formularem por escrito os quesitos que tiverem por pertinentes, a que os peritos devem responder no seu relatório
(nº 7 do artigo 19º) e, em plena fase de arbitragem, na faculdade das partes formularem quesitos que entendam pertinentes para a fixação do valor dos bens objecto da expropriação (cfr. o artigo 46º).
Não se crê, deste modo, poder afirmar-se não ter o princípio do contraditório qualquer expressão, sendo de notar que, a este respeito, Gomes Canotilho surpreende 'um mínimo contraditório entre a entidade expropriante e o sujeito expropriado' (citado 2.3.), sem prejuízo de ter por duvidoso que se possa falar de observância desse princípio (ponto 3.3., infra, nota 18).
2.- Alega a recorrente, ao invocar ofensa ao nº 2 do artigo 62º da CR, que, estando em causa o direito fundamental de propriedade, mal se coadunaria com esta norma a imposição do Tribunal da Relação, como último grau de jurisdição, na apreciação de questões de direito relativas ao apuramento da indemnização.
Coloca, por conseguinte, a questão do quarto grau de jurisdição que, assim o vimos, o Supremo afastou na decisão recorrida, ao interpretar o nº 2 do artigo 64º do Código de 1991.
O Tribunal Constitucional vem entendendo que afirmações de inadequação constitucional normativa, se genericamente enunciadas, poderão inviabilizar o conhecimento do recurso por não se considerar preenchido, dada a insuficiência de concretização, o pressuposto de arguição da questão de constitucionalidade suscitada durante o processo.
Por outro lado, não compete a este Tribunal, recorda-se, intervir nas 'contendas jurisprudenciais' - e os votos de vencido lavrados no acórdão atestam a existência de opiniões divergentes - a não ser que resulte, da solução encontrada, uma dimensão normativa constitucionalmente parametrizável e, como tal, sujeita à sua apreciação.
Independentemente de se ajuizar quanto ao grau de concretização da questão de constitucionalidade, sempre se dirá, equacionada que está uma dimensão garantística maximalista, entender-se não haver norma ou princípio constitucional impeditivos de um quarto grau de jurisdição no domínio da discussão litigiosa do montante da indemnização por expropriação, como já se sublinhou jurisprudencialmente em acórdãos deste Tribunal como os nºs. 187/93 e
370/93, publicados no Diário da República, II Série, de 17 de Maio de 1994 e 2 de Outubro de 1993, respectivamente.
No caso sub judice, no entanto, o enfoque é oposto:
a ofensa ao texto constitucional resultaria de uma leitura lesante do direito à propriedade privada que torna dependente a expropriação por utilidade pública não só de lei mas também do 'pagamento da justa indemnização' (nº 2 do artigo
64º).
Não obstante, nesta perspectiva vem-se considerando que a garantia da via judiciária, mormente quando traduzida no 'direito de recurso a um tribunal e de obter dele uma decisão jurídica sobre toda e qualquer questão juridicamente relevante' (cfr. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 3ª ed., Coimbra, 1993, pág. 164), integra no seu âmbito o próprio direito de defesa contra actos jurisdicionais, exercível mediante o recurso para (outros) tribunais - cfr., inter alia, o acórdão nº 287/90, publicado no Diário citado, II Série, de 20 de Fevereiro de
1991 - sem, no entanto, se estar perante um ilimitado direito ao recurso em todas as matérias, como se irrestringível fosse.
Na verdade, se o texto constitucional é omisso quanto ao limite máximo dos graus de jurisdição, também o é quanto ao mínimo - ressalvando-se a área das garantias de defesa em processo criminal, nos termos do nº 1 do artigo 32º - entendendo-se que a protecção do direito ao recurso passa pela sua não afectação substancial 'enquanto via de defesa contra actos jurisdicionais e de controlo da objectividade da realização do direito' (cfr. o acórdão nº 715/96, ainda inédito, entre outros), sem prejuízo de, respeitado esse limite, o legislador ordinário poder ampliar ou restringir os recursos (por exemplo, aponta Armindo Ribeiro Mendes, 'quer através da alteração dos pressupostos de admissibilidade, quer através da mera actualização dos valores das alçadas' - cfr. Recursos em Processo Civil, Lisboa, 2ª ed., 1993, pág.
101).
De resto, no caso vertente, a fixação do valor global da indemnização iniciou-se no juízo arbitral - o que, assim o vimos, não se afigura inconstitucional - o que criaria - em contraste com processos de diferente natureza e, porventura, de maior complexidade - mais um grau de apreciação jurisdicional, a constituir uma justificação objectiva para impedir essa exigência suplementar (cfr. o acórdão nº 330/91, na II Série do jornal oficial, de 15 de Novembro de 1991), sem esquecer não ser imposta constitucionalmente, nem desejável, a banalização do acesso à jurisdição do Supremo Tribunal de Justiça (v., a este propósito, o acórdão nº 377/96, publicado no Diário da República, II Série de 12 de Julho de 1996).
3.- Pode, deste modo, concluir-se não se surpreenderem os vícios de inconstitucionalidade imputados à interpretação das normas impugnadas feita pelo Supremo Tribunal de Justiça, em Tribunal Pleno, na decisão recorrida.
III
Em face do exposto, decide-se negar provimento ao recurso, confirmando-se a decisão recorrida, no que à matéria de constitucionalidade respeita.
Lisboa, 18 de Março de 1997 Alberto Tavares da Costa Maria da Assunção Esteves Vítor Nunes de Almeida Armindo Ribeiro Mendes Antero Alves Monteiro Diniz José Manuel Cardoso da Costa