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Proc. nº 656/95
2ª Secção Relator: Cons. Luís Nunes de Almeida
Acordam na 2ª Secção do Tribunal Constitucional:
I - RELATÓRIO
1. A., assistente em processo pendente no
5º Juízo de Instrução Criminal de Lisboa, recorreu do despacho que, por força do disposto no artigo 192º do Código das Custas Judiciais, lhe julgou deserto anterior recurso interposto da decisão instrutória.
Por despacho de 20 de Fevereiro de 1995, a Juíza de Instrução não admitiu este recurso, uma vez que o respectivo requerimento não se encontrava subscrito por advogado.
O requerente reclamou, então, desse despacho para o Desembargador-Presidente do Tribunal da Relação de Lisboa.
Sustentou aí a inconstitucionalidade da norma constante do artigo 53º, nº 1, do Estatuto da Ordem dos Advogados
(Decreto-Lei nº 84/84, de 16 de Maio), que proíbe o exercício da advocacia em causa própria aos licenciados em Direito não advogados, por afronta ao disposto nos artigos 18º, nº 2, 20º, nº 2, 168º, b) e u), da Constituição.
A M.ma Juíza manteve a decisão reclamada.
Por decisão de 19 de Junho de 1995, o Presidente da Relação indeferiu aquela reclamação.
2. É desta decisão que vem interposto o presente recurso, para apreciação da questão da inconstitucionalidade da norma constante do artigo 53º, nº 1, do Estatuto da Ordem dos Advogados.
Admitido o recurso neste Tribunal, e depois de notificado pelo Relator para o efeito, veio o requerente constituir advogado e apresentar as suas alegações, ao que se seguiram contra-alegações de um dos recorridos.
Por sua vez, o Ministério Público, nas suas contra-alegações, suscitou questão prévia relativa à inutilidade do recurso, face ao disposto no artigo 70º, nº 1, do Código de Processo Penal, norma cuja constitucionalidade não foi questionada e serviu de fundamento à decisão recorrida.
Notificado para se pronunciar quanto a esta questão, veio o recorrente reafirmar que a norma arguida de inconstitucional é a constante do artigo 53º, nº 1, do Estatuto da Ordem dos Advogados, considerando que 'não é o inciso do artº 70º do CPP, que afasta o recorrente de poder advogar nos presentes autos, mas sim' aquela norma.
Corridos os vistos legais, cumpre decidir.
II - FUNDAMENTOS
3. Importa, antes de mais, apreciar a questão prévia indicada.
Pressuposto do recurso de constitucionalidade interposto ao abrigo da al. b) do artigo 70º da LTC, é o de que a norma cuja inconstitucionalidade se pretende ver apreciada tenha sido efectivamente aplicada na decisão recorrida, tenha constituído a sua ratio decidendi, e tenha sido aplicada com a interpretação e o sentido arguidos de inconstitucionais pelo recorrente.
Como se pode ler na decisão recorrida, a norma constante do artigo 70º, nº 1, do CPP, foi aí efectivamente aplicada:
Deste modo, não sendo o reclamante advogado e não se encontrando o requerimento de interposição de recurso e a fundamentação deste assinados por advogado constituído, mas pelo próprio assistente, devia o recurso ser rejeitado, como foi, por força do disposto no art. 70º, n. 1 do Código Proc. Penal.
E, quanto a esta norma, não veio o recorrente, efectivamente, suscitar qualquer questão de inconstitucionalidade.
Pretende o recorrente, todavia, que a norma constante do artigo 53º, nº 1, do E.O. A. estaria 'subjacente' à aplicação daquele artigo 70º, nº 1, do CPP, na medida em que seentendeu «que o reclamante apenas licenciado em Direito não podia, por isso, subscrever o referido peticionado, e não porque o art. 70º do CPP o proíba mas antes porque o nº 1 do artigo 53º do Estatuto da Ordem não consente àqueles licenciados exercer actos próprios da profissão de advogado, sem que estejam registados naquele organismo forense».
4. Com efeito, se a norma questionada - como, aliás, acontecia, no domínio da legislação anterior, ou seja, do artigo
542º, nº 3, do Estatuto Judiciário, aprovado pelo Decreto-Lei nº 44278, de 14 de Abril de 1962 - concedesse aos licenciados em Direito a faculdade de advogarem em causa própria, o artigo 70º do CPP não constituíria obstáculo à respectiva intervenção processual, pois que a equiparação aos advogados resultaria daquela norma, para o efeito de poderem advogar em causa própria.
A decisão a proferir quanto à questão de constitucionalidade terá, pois, efeito útil no processo, no caso de se concluir pela inconstitucionalidade da norma em causa. E tanto basta para que se conclua pela existência de interesse processual no conhecimento do objecto do recurso.
5. Quanto à questão de fundo, entende o recorrente que aquele artigo 53º, nº 1, do E.O.A., viola o disposto nos artigos
2º, b), 9º, 266º, nºs 1 e 2, 13º, nº 2, 18º e 20º, nº 2, da Constituição, para além de ser ainda organicamente inconstitucional, por violação do artigo 168º, nº 2, da Constituição.
Entende o recorrente que a norma sindicada afronta o princípio da confiança e do respeito pelos direitos legalmente protegidos dos cidadãos, porquanto, com a sua introdução, se 'criou um novo impedimento ao exercício dos actos próprios da profissão de advogado',
«só dirimido por via do registo» na Ordem, impedimento que se não verificava na vigência do anterior regime jurídico.
Com efeito, o Estatuto Judiciário, aprovado pelo Decreto-Lei nº 44278, de 14 de Abril de 1962, em vigor à data em que o recorrente concluiu a sua licenciatura, permitia aos licenciados em Direito advogar em causa própria, do cônjuge, ascendentes ou descendentes.
Mas o novo Estatuto da Ordem dos Advogados, aprovado pelo Decreto-Lei nº 84/84, de 16 de Março, passou a dispor, no seu artigo 53º, nº 1:
Só os advogados e advogados estagiários com inscrição na Ordem dos Advogados podem, em todo o território nacional e perante qualquer jurisdição, instância, autoridade ou entidade pública ou privada, praticar actos próprios da profissão e, designadamente, exercer o mandato judicial ou funções de consulta jurídica em regime de profissão liberal remunerada.
É esta a norma impugnada pelo recorrente.
Entende o recorrente que o artigo 74º do mesmo Estatuto, visando salvaguardar os direitos adquiridos ao abrigo da legislação anterior, devia ser interpretado no sentido de permitir aos licenciados em data anterior à da entrada em vigor do E.O.A. a prática de actos próprios da profissão de advogado, quando em causa própria ou de seus familiares mais próximos.
Ao não ser adoptada tal interpretação, considera ter sido violado o princípio da confiança, ínsito no princípio do Estado de Direito Democrático, consagrado no artigo 2º e no artigo 9º, b), referindo ainda o artigo 266º, nº 1, da Constituição.
6. Desde logo, esta referência ao artigo
266º, nº 1, da Constituição carece de sentido e fundamento, não explicando o recorrente como se consubstanciaria, no seu entender, uma hipotética violação do mesmo. O que também se dirá da menção ao artigo 9º, alínea b), da CRP, que se refere às tarefas fundamentais do Estado.
Apenas quanto ao artigo 2º, ao consagrar o princípio do Estado de Direito democrático, no qual se encontra ínsito o da confiança, se poderia conceber a pretendida violação.
Paradigmático desta temática é o que se escreveu no Acórdão nº 303/90 deste Tribunal (publicado em Acórdãos do Tribunal Constitucional, 17º vol., págs. 65):
Neste princípio está, entre o mais, postulada uma ideia de protecção da confiança dos cidadãos e da comunidade na ordem jurídica e na actuação do Estado, o que implica um mínimo de certeza e de segurança no direito das pessoas e nas expectativas que a elas são juridicamente criadas.
Por isso, a normação que, por sua natureza, obvie, de forma intolerável, arbitrária ou demasiado opressiva àqueles mínimos de certeza e segurança que as pessoas, a comunidade e o direito têm de respeitar, como dimensões essenciais do Estado de direito democrático, terá de ser entendida como não consentida pela lei básica.
[...]
Daí que se possa falar em que os cidadãos tenham, fundadamente, a expectativa na manutenção de situações de facto já alcançadas como consequência do direito em vigor.
Mas, se não obstante esse alcance, normação posterior vier, acentuada ou patentemente, alterar o conteúdo dessas situações, é evidente que a confiança dos cidadãos no ordenamento jurídico ficará fortemente abalada, frustrando a expectativa que detinham da anterior tutela conferida pelo
«direito».
[...]
A questão residirá, assim, em saber se aquela afectação se reveste de jeito inadmissível, arbitrário ou excessivamente oneroso, sendo que o primeiro daqueles modos - a inadmissibilidade -, se é implicante de uma mudança na ordem jurídica, com repercussão nas situações de facto já alcançadas, com a qual, razoável e normalmente, os cidadãos destinatários das normas preexistentes e das que operaram a modificação, não podiam e deviam contar, terá também de ser completado com a circunstância de a mutação normativa afectadora das expectativas não ter sido imposta por prossecução ou salvaguarda de outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos e que, na dicotomia com os afectados, se postem em grau tal que lhes confira prevalência, pois, se não se postarem, haverá então falta de proporcionalidade e, logo, uma forma de arbítrio.
7. Nestes termos, a questão em causa consiste, então, em apurar se a norma questionada veio traduzir uma afectação inadmissível ou excessivamente onerosa da convicção e expectativa dos cidadãos por ela abrangidos, quer pela inexistência de qualquer situação de interesse geral, público ou social, que se pudesse sobrepor àquela confiança, quer por traduzir uma mutação na ordem jurídica com a qual se não poderia normal e razoavelmente contar.
Mas, antes disso, sempre se tornaria necessário apurar se as eventuais expectativas dos licenciados em Direito, criadas à sombra do Estatuto Judiciário, - no sentido de se poderem representar em juízo, bem como ao cônjuge, ascendentes e descendentes -, dispunham do mínimo de relevância ou de consistência indispensáveis para poderem usufruir de uma tal protecção à sombra do princípio da segurança jurídica - e do sub-princípio da confiança que nele se integra.
Pois bem, nem tais expectativas -
'direitos adquiridos' lhes chama o recorrente - assumem essa relevância, nem a exigência de inscrição (ou 'registo') na Ordem dos Advogados como condicionante para a prática da advocacia, ainda que para a prática de actos característicos desta profissão em causa própria ou de familiares directos, assume foros de inadmissibilidade.
É que tal medida visa garantir a prática desta actividade apenas por profissionais devidamente qualificados, após conclusão de um estágio, sob a direcção e orientação de um patrono e da própria Ordem, assegurando a devida preparação técnica e o respeito pelos princípios deontológicos da profissão, cujo cumprimento cabe à Ordem dos Advogados assegurar.
Não se trata, pois, de medida restritiva excessiva, nem de uma limitação desproporcionada, muito menos atingindo
'direitos adquiridos' que mereçam especial tutela.
A este propósito pode ler-se no Acórdão nº 497/89 (Acórdãos do Tribunal Constitucional, 14º vol., págs. 241):
Em primeiro lugar, não pode recusar-se que, pela sua mesma natureza, e pela sua directa inserção no «processo» social e institucional da realização e da administração da justiça, a advocacia é uma profissão cujo exercício não dispensa uma apurada regulamentação, no tocante, quer às condições e requisitos exigidos para esse mesmo exercício, quer ao controlo da sua verificação, quer à necessidade da obediência, por parte dos respectivos profissionais, a um estrito código deontológico, quer ainda, finalmente, à tutela disciplinar da observância de tal código.
[...]
É a própria Constituição, portanto, que directamente faculta ao legislador a possibilidade de impor condições ou limites ao exercício de certas profissões - e entre tais condições, requisitos ou limites não se vê que não possa estar justamente o da inscrição obrigatória dos profissionais em causa numa associação pública «representativa» de todos eles.
8. Não se configura, aqui, pois, qualquer restrição injustificada de direitos, muito menos de legítimas expectativas. E, de qualquer maneira, as eventuais expectativas criadas pelos licenciados em Direito quanto à possibilidade de se auto-patrocinarem em causa própria, não estando inscritos na Ordem dos Advogados, não se situam, nem poderiam situar, em plano superior ao dos interesses que se visa assegurar com a inscrição obrigatória na Ordem dos Advogados.
Como bem se salientou no despacho recorrido, «há respeitáveis interesses do próprio interessado, a apontar para a intervenção do advogado, mormente no processo penal», sendo certo que, «mesmo no caso de licenciados em Direito, com reconhecida categoria técnico-jurídica, a sua representação em tribunal através de advogado, em vez da auto-representação, tem a inegável vantagem de permitir que a defesa dos seus interesses seja feita de modo desapaixonada».
Não comporta, assim, aquela norma do artigo 53º do Estatuto da Ordem dos Advogados qualquer afronta ao princípio da confiança, ínsito no do Estado de Direito democrático, consagrado no artigo 2º da CRP.
9. Alega ainda o recorrente que aquela norma enferma de inconstitucionalidade orgânica, por violação do artigo 168º, nº
2 da CRP, porquanto
de harmonia com o quadro traçado pela autorização legislativa não se vê que o governo houvesse respeitado os limites normativos fixados na respectiva concessão, sendo que em parte alguma se alcança minimamente o sentido revogatório da norma que concedia aos licenciados em Direito a faculdade de poder patrocinar-se nos autos que directamente são parte interessada.
10. Acontece, porém, que a norma do artigo 53º, nº 1, do E.O.A., na estrita medida em que revoga implicitamente a norma anteriormente contida no artigo 542º, nº 3, do Estatuto Judiciário de
1962, não constitui matéria da competência legislativa reservada da Assembleia da República.
À Assembleia da República está, obviamente, reservada a matéria relativa às associações públicas, incluindo a referente à obrigatoriedade da inscrição (artigo 168º, nº 1, alínea u), da Constituição), bem como a relativa à liberdade de escolha ou exercício da profissão (artigo 168º, nº 1, alínea b), da Constituição). Mas esta reserva não abrange a eliminação da faculdade concedida, em certas circunstâncias, de se exercer, de forma não profissional, uma actividade em princípio reservada por lei a quem se encontrar inscrito numa associação pública.
Assim sendo, por se encontrar, na dimensão questionada, fora do âmbito da reserva de competência legislativa parlamentar, a norma em causa nunca pode violar o artigo 168º, nº 2, da Lei Fundamental.
11. Por fim, alega ainda o recorrente que aquele normativo contende com os artigos 20º, nº 2, 266º, nº 2, 13º, nº2, e 18º, nº 2, da Constituição.
Pois bem, quanto à alegada violação do artigo 20º da Constituição, o qual consagra o direito de acesso ao direito e aos tribunais, nenhuma razão assiste ao recorrente.
A necessidade de recurso aos advogados, devidamente inscritos na respectiva Ordem, para efeitos de patrocínio judiciário, pelo menos para certo tipo de processos, assenta, como se viu, em ponderosas razões de ordem substancial, visando não só a salvaguarda de interesses de ordem pública, nomeadamente os da realização da justiça e do direito, mas também os próprios interesses dos patrocinados.
As reflexões do recorrente, relativas ao facto de se ver obrigado a recorrer a advogado, ficando o exercício desse direito 'substancialmente reduzido pelos encargos dos custo dos honorários na contratação de um advogado que nem sempre são susceptíveis de equacionar-se com a carência do apoio judiciário' são de todo improcedentes. E isto, desde logo, porque se encontra constitucionalmente assegurado, no mesmo artigo 20º da CRP, que a ninguém poderá ser denegada justiça 'por insuficiência de meios económicos', sendo assegurado o direito ao patrocínio judiciário, o que supõe a possibilidadede se recorrer ao denominado apoio judiciário (hoje, consagrado no Decreto-Lei nº 387-B/87, de 29 de Dezembro).
12. Pretende ainda o recorrente que tal obrigação de constituição de advogado o impede 'de ser ele próprio a exprimir a pureza do seu pensamento e a verdade material das razões que lhe assistem, em virtude de se ver coagido a revelar a outrém as suas angústias e motivações'.
Ora, não se descortinam elementos válidos para retirar os licenciados em Direito ao universo dos cidadãos comuns, que igualmente devem procurar um intérprete habilitado a representá-los em juízo para transmitir aquelas angústias e reconhecer e utilizar os melhores métodos e técnicas processuais e judiciais para a defesa dos interesses e direitos do seu representado - o advogado.
Em última análise, o raciocínio do recorrente levaria a que se prescrevesse a possibilidade de auto-representação para todos os cidadãos, e em todos os casos.
13. Segundo o recorrente, aquela norma constante do artigo 53º, nº 1 do EOA viola os princípios da igualdade e da proporcionalidade, ao conceder uma 'situação de vantagem' aos advogados e visando 'tão-só privilegiar' essa classe 'assegurando-lhes os lucros nos processos que, por essa forma, vierem a ser subtraídos ao patrocínio dos licenciados em Direito'.
Obviamente que com tal obrigação de constituição de advogado se não visou qualquer protecção abusiva da classe dos advogados, a fim de lhes garantir mais uma fonte de receitas.
O que se visa proteger - repete-se - são, fundamentalmente, os interesses de realização da justiça e do direito, que só por profissionais devidamente habilitados e qualificados se poderão alcançar. Não se verifica aqui qualquer situação de vantagem, muito menos de privilégio, que aquela norma questionada vise proteger.
Consequentemente, não há violação dos artigos 18º, nº 2, (restrição de direitos, liberdades e garantias) e 266º, nº 2, da Constituição (actuação dos órgãos e agentes administrativos em conformidade com a Constituição e aqueles princípios) - este último, de resto, sem qualquer aplicação ao caso dos autos.
III - DECISÃO
14. Nestes termos, decide-se negar provimento ao recurso.
Lisboa, 18 de Março de 1997 Luís Nunes de Almeida Messias Bento Guilherme da Fonseca Bravo Serra José Manuel Cardoso da Costa