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Processo n.º 772/11
2.ª Secção
Relator: Conselheiro João Cura Mariano
Acordam na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional
Relatório
A., Lda., deduziu junto do Tribunal Tributário de Lisboa impugnação judicial do indeferimento da reclamação graciosa respeitante a atos tributários de liquidação oficiosa da taxa sobre a comercialização de produtos de saúde, relativa aos anos de 2000 e 2001, e a atos tributários de liquidação oficiosa da taxa sobre a comercialização de produtos cosméticos e de higiene corporal, referentes aos anos de 2002 a 2004, e respetivos juros compensatórios, invocando, além do mais, a inconstitucionalidade da norma do artigo 103.º, da Lei n.º 3-B/2000, de 4 de abril, por violação do princípio da não retroatividade fiscal, em relação às taxas relativas aos meses compreendidos entre janeiro e março de 2000.
O Tribunal Tributário de Lisboa, por decisão de 12 de julho de 2011, decidiu julgar a impugnação parcialmente procedente, tendo recusado a aplicação da norma do artigo 103.º, da Lei n.º 3-B/2000, de 4 de abril, à liquidação da “taxa sobre a comercialização de produtos de saúde”, prevista no artigo 72.º da aludida lei, na parte respeitante aos meses de janeiro a março de 2000, por entender que a mesma viola o princípio da não retroatividade da lei fiscal, consagrado no artigo 103.º, n.º 3, da Constituição.
Tendo havido recusa de aplicação de norma com fundamento em inconstitucionalidade, o Ministério Público interpôs recurso para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei da Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional (LTC), nos seguintes termos:
«A Magistrada do Ministério Público, junto deste Tribunal, vem, aos autos supra identificados, nos termos dos artigos 280º, nº 2 da Constituição da República Portuguesa, 70º nº 1 al. a) e 72º nº 1, al a) e nº 3 da Lei 28/82 de 15/11, alterada pelas Leis 85/89 de 7/9 e 13-A/98 de 26/2, interpor recurso para o Tribunal Constitucional da douta sentença de fls. 719 e seguintes proferida nos autos à margem referenciados, confinado ao aspeto em que desaplicou o disposto no artº 103º da Lei nº 3-B/2000 de 4 de abril à liquidação da taxa do ano de 2000, na parte respeitante aos meses de janeiro a março, efetuada pelo INFARMED ao abrigo do disposto no artº 72º da Lei nº 3 – B/2000 de 4 de abril, por entender ser tal norma violadora do principio da não retroatividade da lei fiscal consignado no artº 103º, nº 3 da Constituição da Republica Portuguesa.»
O Ministério Público apresentou as respetivas alegações, tendo formulado as seguintes conclusões:
“[…]
12º Poderá, assim, concluir-se, da análise efetuada no âmbito das presentes alegações, que, tal como referido pela jurisprudência deste Tribunal Constitucional – e igualmente reconhecido pela sentença recorrida –, o princípio geral da proibição de cobrança, pelo Estado, de impostos retroativos, encontra-se contemplado, desde a revisão constitucional de 1997, no art. 103º, nº 3 da Constituição.
13º Decorre deste preceito constitucional, que qualquer norma fiscal desfavorável será constitucionalmente censurada quando assuma natureza retroativa, sendo a expressão «retroatividade» usada, aqui, em sentido próprio ou autêntico: proíbe-se a aplicação de uma lei fiscal nova, desvantajosa, a um facto tributário ocorrido no âmbito da vigência da lei fiscal revogada (a lei antiga) e mais favorável.
14º Significa isto que, numa tal imposição constitucional, “não pode deixar de estar ínsita uma garantia forte de objetividade e autovinculação do Estado pelo Direito”.
15º Sendo certo, por outro lado, que “a mera natureza retroativa de uma lei fiscal desvantajosa para os particulares é sancionada, de forma automática, pela Constituição, qualquer que tenha sido, em concreto, a conduta da administração fiscal ou do particular tributado”.
Ou seja, “o juízo de inconstitucionalidade decorre apenas da mera análise dos dados normativos, não dependendo, em nenhum momento, da averiguação de quaisquer elementos circunstanciais que resultem da condição, em concreto, de uma certa relação jurídico-tributária.”
16º No caso dos autos, as “taxas” aplicadas, pelo Infarmed, à impugante A., têm a natureza de imposto, pelo que lhes é aplicável o disposto no art. 103º, nº 3 da Constituição e, consequentemente, a proibição da retroatividade da lei fiscal.
17º Este imposto foi criado pelo Lei 3-B/2000 – Lei do Orçamento de Estado para 2000, lei, essa, publicada em 4 de abril de 2000, não existindo, anteriormente, tal imposto no nosso ordenamento jurídico.
18º Nessa medida, ao procurar retroagir os seus efeitos ao início do ano de 2000, o referido diploma violou a proibição da retroatividade da lei fiscal, prevista no art. 103º, nº 3 da Constituição.
Com efeito, “o tributo em causa foi criado, dotado de efeitos retroativos, porque se projetam em data anterior à data da publicação da lei que o criou”.
19º Terá, pois de concluir-se que assiste razão à impugnante, “violando a interpretação que o Infarmed fez da legislação em causa o princípio da não retroactividade da lei fiscal”
20º Nestes termos, deverá negar-se provimento ao presente recurso, confirmando-se, na linha do anteriormente decidido por este Tribunal Constitucional, a sentença recorrida, de 12 de julho de 2011, do Tribunal Tributário de Lisboa.”
A recorrida A., Lda., apresentou contra-alegações, tendo concluído da seguinte forma:
«1. O Tribunal Tributário de Lisboa considerou que o artigo 72.º da Lei 3-B/2000, de 4 de abril, que tinha criado a taxa de comercialização de produtos de saúde, quando aplicada aos meses de janeiro, fevereiro e março, conforme previsto pelo artigo 103.º da referida Lei 3-B/2000, de 4 de abril, revestia natureza retroativa.
2. O Ministério Público recorreu (por imperativo legal) da decisão do Tribunal Tributário de Lisboa que considerou inconstitucional a aplicação da taxa de comercialização de produtos de saúde aos meses de janeiro, fevereiro e março, na medida em que a tal estava obrigado por força dos artigos 280.º, n.º 3, da Constituição da República Portuguesa e 72.º, n.º 3, da Lei 28/82, de 15 de novembro (Lei da Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional), peticionando, contudo, a confirmação da Sentença Recorrida.
3. A Lei n.º 3-B/2000, de 4 de abril, no seu artigo 72.º, criou a denominada taxa sobre a comercialização de produtos de saúde.
4. Esta taxa incidia sobre o volume de vendas de cada produto, tendo, porém, por referência, o respetivo preço de venda ao consumidor final.
5. A Lei n.º 3-B/2000, de 4 de abril, estabelece, no seu artigo 103.º, que produz efeitos a partir de 1 de janeiro de 2000, o certo é que a referida lei só entrou em vigor no dia 4 de abril de 2000, ou seja, no dia da sua publicação, nos termos e para os efeitos do artigo 1.º, n.º 2, da Lei n.º 74/98, de 11 de novembro, o que determina que a sua aplicação aos meses de janeiro, fevereiro e março de 2000 é retroativa.
6. Com a revisão constitucional de 1997 o artigo 103.º da Constituição da República Portuguesa, anterior artigo 106º, consagrou o princípio de irretroatividade da Lei Fiscal.
7. Conforme resulta dos vários Acórdãos do Tribunal Constitucional citados, tanto na Sentença Recorrida, como nas Alegações do Ministério Público, tem sido entendimento uniforme do Tribunal Constitucional que a retroatividade proibida no n.º 3 do artigo 103.º da Constituição é a retroatividade própria ou autêntica.
8. O artigo 103.º, n.º 3, da Constituição proíbe a aplicação de uma lei nova a factos tributários plenamente formados antes da entrada em vigor dessa mesma lei.
9. Embora o diploma legal que estabeleceu a taxa sobre a comercialização de produtos de saúde, denomine o tributo em apreço como taxa, o certo é que o mesmo constitui um verdadeiro imposto, qualificação esta que se encontra unanimemente reconhecida.
10. A taxa de comercialização de produtos de saúde consubstancia não só um imposto, como um imposto de obrigação única.
11. Assim, a aplicação (retroativa) da taxa sobre a comercialização de produtos de saúde, aos meses anteriores ao da entrada em vigor da referida taxa (que entrou em vigor no dia da sua publicação, i.e. 4 de abril), nos termos previstos no artigo 103.º da referida Lei n.º 3-B/2000, de 4 de abril, constitui a aplicação retroativa, de forma plena ou autêntica, do referido tributo, em termos não permitidos pelo artigo 103.º, n.º 3, da Constituição da República Portuguesa, na medida em que os factos tributários em causa já se encontravam plenamente verificados.”
Fundamentação
1. A decisão recorrida recusou a aplicação do disposto no artigo 103.º da Lei n.º 3-B/2000, de 4 de abril, na parte respeitante à liquidação da “taxa sobre a comercialização de produtos de saúde”, criada pelo artigo 72.º da aludida Lei, relativamente aos meses de janeiro a março de 2000, com fundamento em inconstitucionalidade por violação do princípio da não retroatividade da lei fiscal, consagrado no artigo 103.º, n.º 3.º da Constituição da República Portuguesa.
Vejamos, antes de mais, o teor das referidas normas.
O artigo 72.º da Lei n.º 3-B/2000, de 4 de abril, sob a epígrafe «Taxa sobre comercialização de produtos de saúde», determinava o seguinte:
«1 – Os produtores e importadores, ou seus representantes, de produtos de saúde colocados no mercado ficam sujeitos ao pagamento de uma taxa de comercialização destinada ao sistema de garantia da qualidade e segurança de utilização daqueles produtos, à realização de estudos de impacte social e ações de formação para os agentes de saúde e consumidores, a realizar pelo INFARMED – Instituto Nacional da Farmácia e do Medicamento.
2 – A taxa a que se refere o número anterior é de:
a) Produtos farmacêuticos homeopáticos, dispositivos médicos não ativos e dispositivos médicos para diagnóstico in vitro – 0,4%;
b) Cosméticos e produtos de higiene corporal – 2%.
3 – A taxa incide sobre o volume de vendas de cada produto, tendo por referência o respetivo preço de venda ao consumidor final, constituindo receita própria daquele Instituto, e sendo o seu valor pago, mensalmente, com base nas declarações de vendas mensais, nos termos e com os elementos a definir pelo mesmo Instituto.
4 – A não apresentação da declaração exigida no número anterior constitui contraordenação, nos termos do artigo 10.º do Decreto-Lei n.º 94/95, de 9 de maio, do artigo 10.º do Decreto-Lei n.º 273/95, de 23 de outubro, do artigo 17.º do Decreto-Lei n.º 306/97, de 11 de novembro, e do artigo 44.º do Decreto-Lei n.º 296/98, de 25 de setembro.»
Por sua vez, o artigo 103.º desta Lei estabelecia que a mesma produzia efeitos “a partir de 1 de janeiro de 2000”.
Segundo a decisão recorrida, a “taxa sobre a comercialização de produtos de saúde” criada pelo artigo 72.º, da Lei n.º 3-B/2000, de 4 de abril, não obstante a nomenclatura usada, configura um imposto. Mais entendeu a referida decisão, em relação às “taxas” atinentes aos meses compreendidos entre janeiro e março de 2000, que tendo o tributo em causa sido criado pela Lei n.º 3-B/2000, de 4 de abril, a sua aplicação àqueles meses, anteriores à data da publicação da referida Lei, configura uma direta violação do princípio da proibição da retroatividade fiscal consagrado no artigo 103.º, n.º 3, da Constituição, o qual dispõe que: «Ninguém pode ser obrigado a pagar impostos que não hajam sido criados nos termos da Constituição, que tenham natureza retroativa ou cuja liquidação e cobrança se não façam nos termos da lei.».
2. Para apreciação da questão sub judice importa, previamente, determinar qual a natureza jurídica da chamada “taxa sobre a comercialização de produtos de saúde”, o que pressupõe relembrar a distinção entre os conceitos dos diferentes tipos de tributo, tendo presente que a Constituição não indica qualquer critério distintivo.
A Lei Geral Tributária, aprovada pelo Decreto-Lei n.º 398/98, de 17 de dezembro, no seu artigo 4.º dispõe o seguinte:
“1 - Os impostos assentam essencialmente na capacidade contributiva, revelada, nos termos da lei, através do rendimento ou da sua utilização e do património.
2 - As taxas assentam na prestação concreta de um serviço público, na utilização de um bem do domínio público ou na remoção de um obstáculo jurídico ao comportamento dos particulares.
(…)”.
Estas definições legais limitaram-se a recolher os ensinamentos dominantes da doutrina fiscal (vide, entre outros, Teixeira Ribeiro, em “Lições de Finanças Públicas”, pág. 267, da ed. de 1977, da Coimbra Editora, Cardoso da Costa, em “Curso de Direito Fiscal”, pág. 4-19, da 2.ª Edição, da Almedina, Sousa Franco, em “Finanças Públicas e Direito Financeiro”, volume II, pág. 58-73, da 4.ª Edição, da Almedina, Diogo Leite de Campos e Mónica Leite De Campos, em “Direito Tributário”, pág. 27-29, da ed. de 1996, da Almedina, Casalta Nabais, em “Direito fiscal”, pág. 20-32, da 3ª ed., da Almedina, Nuno Sá Gomes, em “Manual de Direito Fiscal”, vol. 1, pág. 73-79, da 12.ª ed., do Rei dos Livros, Saldanha Sanches, em “Manual de Direito Fiscal”, pág. 22-37, da 3.ª Edição, da Coimbra Editora, Eduardo Paz Ferreira, em “Ainda a propósito da distinção entre impostos e taxas: o caso da taxa municipal devida pela realização de infraestruturas urbanísticas”, em “Ciência e Técnica Fiscal”, n.º 380, pág. 63-81, e Xavier de Basto e Lobo Xavier, em “Ainda a propósito da distinção entre taxa e imposto: a inconstitucionalidade dos emolumentos notariais e registrais devidos pela constituição de sociedades e pelas modificações dos respetivos contratos, na R.D.E.S., n.º 1 e 3, de 1994, pág. 3 e seg.), os quais foram, aliás, adotados pela jurisprudência do Tribunal Constitucional (uma resenha desta jurisprudência foi efetuada por Casalta Nabais, em “Jurisprudência do Tribunal Constitucional em matéria fiscal”, no B.F.D.U.C. n.º 69 (1993), págs. 387 e seg., e por Cardoso da Costa, em “O enquadramento constitucional dos impostos em Portugal: a jurisprudência do Tribunal Constitucional”, em “Perspetivas Constitucionais – Nos 20 anos da Constituição de 1976”, vol. II, pág. 397 e seg.).
Assim, pode dizer-se que o imposto consiste numa contribuição imposta pelo poder público a todos ou a uma certa categoria de pessoas, destinada a financiar o Estado e as funções públicas em geral. Trata-se de uma prestação pecuniária unilateral, uma vez que não tem como contrapartida uma qualquer contraprestação específica atribuída ao contribuinte por parte do Estado, mas apenas a contrapartida genérica do funcionamento dos serviços estaduais.
Ao caráter unilateral do imposto contrapõe-se a natureza bilateral ou sinalagmática da taxa. Esta traduz-se na contrapartida de um serviço específico prestado pelo Estado (ou por outra pessoa coletiva pública ou dotada de poderes públicos) ou da vantagem decorrente da utilização individual de um bem público ou do prejuízo causado a um bem coletivo (vide J.J. Gomes Canotilho e Vital Moreira, em “Constituição da República Portuguesa Anotada”, Volume I, pág. 1093, da 4.ª Edição, da Coimbra Editora). A sinalagmaticidade que caracteriza as quantias pagas a título de taxa só existirá quando se verifique uma contrapartida resultante da relação concreta com um bem semipúblico, que, por seu turno, se pode definir como um bem público que satisfaz, além de necessidades coletivas, necessidades individuais (vide Teixeira Ribeiro, em “Noção jurídica de taxa”, na “Revista de Legislação e de Jurisprudência”, ano 117.º, pág. 291). A taxa “pressupõe, ou dá origem, a uma contraprestação específica resultante de uma relação concreta (que pode ser ou não de benefício) entre o contribuinte e um bem ou serviço público”, sendo “grande a variabilidade do conteúdo jurídico do conceito, resultante da diversidade das situações que geram as obrigações de taxa e das múltiplas delimitações formais da respetiva noção financeira” (Sousa Franco, na ob. cit., págs. 63-64). Atualmente, podemos encontrar no artigo 4.º, n.º 2, da LGT, acima transcrito, a previsão dos factos que poderão dar lugar à cobrança de taxas, as quais assentam “na prestação concreta de um serviço público, na utilização de um bem do domínio público ou na remoção de um obstáculo ao comportamento dos particulares”.
No entanto, o sistema fiscal português conhece uma grande variedade de outras figuras tributárias que não se acomodam facilmente às categorias de taxa ou de imposto. Daí que, fugindo a esta divisão dicotómica, alguma doutrina começou a apontar a existência de uma categoria intermédia de tributos, na qual se enquadram outras figuras marginais designadas como tributos parafiscais (cfr. artigo 3.º, n.º 1,alínea a), da Lei Geral Tributária), entre os quais avultam as contribuições cobradas para a cobertura das despesas de pessoas coletivas públicas não territoriais, que resultam numa verdadeira consignação subjetiva de receitas (sobre os tributos parafiscais, nomeadamente as referidas contribuições, vide Alberto Xavier, em “Manual de direito fiscal”, vol. I, pág. 64 e seg., da ed. de 1974, Sousa Franco, ob. cit., pág. 74 e seg., Casalta Nabais, em “Direito fiscal”, pág. 32, da 3ª ed., da Almedina, e em “O dever fundamental de pagar impostos”, pág. 256 e seg., da ed. de 1998, da Almedina, Saldanha Sanches, na ob. cit., pág. 58-65, Sérgio Vasques, em “Remédios Secretos e Especialidades Farmacêuticas: a Legitimação Material dos Tributos Parafiscais”, em Ciência e Técnica Fiscal, n.º 413, Janeiro-Junho 2004, pág. 135 e ss., e em “Manual de Direito Fiscal”, pág. 221-245, da ed. de 2011, da Almedina).
A criação de tais contribuições a favor de determinadas pessoas coletivas públicas distintas da Administração estadual, regional ou local, visam o seu sustento financeiro, escapando à disciplina jurídica clássica, como forma de evitar o crescimento do défice das contas públicas e contornar a rigidez do regime dos impostos, através da previsão de meios financeiros mais dúcteis.
Como escreveu Sousa Franco:
“Nas contribuições parafiscais há (…) uma maior agilidade atribuída à administração pública, quanto ao modo de criação e agravamento e quanto ao próprio regime geral dessas receitas, tornando mais fácil o seu processo de lançamento, liquidação e cobrança” (na ob. cit., pág. 76).
Não obstante a existência destas figuras tributárias no sistema fiscal português, o próprio texto constitucional anterior à revisão operada em 1997, ao estabelecer a reserva de lei parlamentar em matéria fiscal, consagrava no artigo 168.º (atual artigo 165.º) uma marcada distinção entre os impostos e as demais categorias tributárias, convidando a uma representação dicotómica dos tributos.
Assim, para efeitos de reserva de lei parlamentar, a doutrina e a jurisprudência distinguiam entre impostos (abrangidos pela reserva de lei parlamentar) e taxas (não sujeitas a tal reserva) e procuravam equiparar os apelidados tributos parafiscais à categoria dos impostos ou à das taxas, para concluírem se a sua criação estava ou não sujeita ao princípio da reserva de lei formal (vide Nuno de Sá Gomes, em “Manual de Direito Fiscal”, vol. I, pág. 315 e seg., da 12ª ed., do Rei dos Livros, Sousa Franco, na ob. cit., pág. 74-76, e Casalta Nabais, em “O dever fundamental de pagar impostos”, pág. 256-257, da ed. de 1998, da Almedina).
No que respeita às contribuições cobradas para a cobertura das despesas de pessoas coletivas públicas não territoriais, assumia algum relevo a posição que tende a recusar autonomia e a negar particularismo a estes tributos, reconduzindo-os, no entanto, à categoria dos impostos, exigindo que a sua previsão constasse de lei aprovada pela Assembleia da República (vide, neste sentido, Alberto Xavier, na ob. cit., pág. 73-75, referindo-se às antigas taxas de coordenação económica, Jorge Miranda, em “A competência legislativa no domínio dos impostos e as chamadas receitas parafiscais”, na R.F.D.U.L., vol. XXIX (1988), pág. 22-24, e o Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 1239/96, em “Acórdãos do Tribunal Constitucional”, 35.º vol., pág. 145, relativo à taxa devida à Comissão Reguladora de Produtos Químicos e Farmacêuticos).
Esta qualificação visava combater o objetivo da subtração destas receitas ao regime clássico da legalidade tributária e do orçamento do Estado, considerado um “perigoso aventureirismo fiscal”, tratando-se como impostos figuras que estivessem a meio caminho entre estes e as taxas.
A jurisprudência do Tribunal Constitucional sobre esta matéria, por seu turno, foi firmando o entendimento no sentido de alargar a noção constitucional de imposto e da reserva de lei parlamentar a todos os tributos que não possam rigorosamente dizer-se taxas, por forma a prevenir que o legislador subvertesse a distribuição constitucional de competências, lançando mão de tributos que, não sendo verdadeiramente unilaterais, não chegam no entanto a ser taxas. Podemos encontrar exemplos desse entendimento em diversos acórdãos sobre as antigas taxas de regulação económica, em que o Tribunal Constitucional admite a sua equiparação aos impostos, pelo menos, para efeitos da reserva de lei parlamentar. É o caso, entre outros, dos Acórdãos n.ºs 261/86 (taxas sobre produtos oleaginosos), 387/91 (taxas sobre as vendas de pastas químicas), 369/99, 370/99 e 96/00 (taxas da peste suína).
Contudo, com a revisão constitucional de 1997, a alteração introduzida na redação da alínea i), do n.º 1, do artigo 165.º, da Constituição (anterior alínea i), do n.º 1, do artigo 168.º), veio obrigar a uma reformulação dos pressupostos da discussão sobre esta matéria.
Onde anteriormente o artigo 168.º, n.º 1, alínea i), da Constituição dizia que “é da exclusiva competência da Assembleia da República legislar sobre as seguintes matérias, salvo autorização ao Governo: (…) i) Criação de impostos e sistema fiscal (…)”, passou a constar que “é da exclusiva competência da Assembleia da República legislar sobre as seguintes matérias, salvo autorização ao Governo: (…) i) Criação de impostos e sistema fiscal e regime geral das taxas e demais contribuições financeiras a favor das entidades públicas (…)”.
Conforme resulta da consulta dos trabalhos parlamentares da Revisão Constitucional de 1997, a referência às contribuições financeiras constante da alínea i), do n.º 1, do artigo 165.º, da Constituição, procurou abranger precisamente o mencionado tertium genus, incluindo as contribuições cobradas para a cobertura das despesas de pessoas coletivas públicas não territoriais. Conforme, nessa altura, esclareceu o deputado Vital Moreira: «a expressão “contribuições financeiras” foi aquela que se encontrou para ser mais neutra, para não se falar em contribuições especiais, em contribuições parafiscais, que é aquilo a que a doutrina normalmente se refere: são as chamadas taxas dos antigos institutos de coordenação económica, as atuais chamadas taxas das comissões vitivinícolas regionais ou seja, toda uma série de contribuições financeiras que não são taxas em sentido técnico mas que são contribuições criadas para e a favor de determinadas entidades reguladoras e para sustentar financeiramente as mesmas. Penso que não devemos entrar nesta discussão teórica e por isso a escolha da expressão “contribuições financeiras” foi aquela que se encontrou mais neutra para que a doutrina continue livre para fazer as suas discussões teóricas doutrinárias.» (In DAR, II Série, de 30-10-1996, pág. 1381).
Assim, para efeitos de submissão dos diversos tipos de tributo ao princípio da reserva de lei formal, a nova redação do artigo 165.º, n.º 1, alínea i), da Constituição, passou a fazer referência a três espécies tributárias, autonomizando a categoria das “contribuições financeiras” a par das taxas e dos impostos, continuando estes sujeitos à reserva da lei formal, enquanto, relativamente às taxas e às contribuições financeiras, apenas a definição do seu regime geral terá que respeitar a reserva de lei parlamentar.
Com esta alteração deixou de fazer qualquer sentido equiparar a figura das contribuições financeiras aos impostos para efeitos de considerá-las sujeitas à reserva da lei formal (a propósito do relevo e autonomia que começam a ser reconhecidos a estas e a outras novas figuras tributárias da fiscalidade contemporânea, vide Sérgio Vasques, Manual de Direito Fiscal, Almedina, 2011, página 238 e ss., onde se fala em “crise da representação dicotómica” dos tributos públicos).
3. Tecidas estas considerações gerais, importa agora apreciar qual a natureza da “taxa sobre a comercialização de produtos de saúde” e se é possível, conforme entende a decisão recorrida, reconduzi-la à categoria de imposto. Para tanto, apenas relevará o regime jurídico concreto da referida “taxa”, sendo indiferente o nomen juris atribuído na lei.
Para enquadrar devidamente esta “taxa” criada em benefício do INFARMED, importa recuar a 1993, altura em que a nova lei orgânica do Ministério da Saúde (Decreto-Lei n.º 10/93, de 15 de janeiro), procedeu à extinção da Direção-Geral dos Assuntos Farmacêuticos e do Centro de Estudos do Medicamento (cfr. artigo 15.º, als. c) e f), do Decreto-Lei n.º 10/93, de 15 de janeiro), tendo criado o Instituto Nacional da Farmácia e do Medicamento (INFARMED) – cfr. artigo 6.º, n.º 1, al. b), e 13.º, do Decreto-Lei n.º 10/93, de 15 de janeiro (para uma análise detalhada da evolução da tributação parafiscal no setor médico e farmacêutico, vide Sérgio Vasques, “Remédios secretos e especialidades farmacêuticas”, em Ciência e Técnica Fiscal, nº 413, Janeiro-Junho 2004, págs. 145 e ss.).
Posteriormente, o Decreto-Lei n.º 353/93, de 7 de outubro, veio a definir as atribuições do INFARMED (cfr. artigo 2.º), tendo previsto ainda, como receitas deste novo instituto, as taxas cobradas sobre o setor farmacêutico (cfr. artigo 23.º, n.º 2, então previstas nas Portarias n.ºs 259/91 e 260/91, ambas de 30 de março, alteradas pela Portaria n.º 458/91, de 28 de maio).
Através do artigo 63.º, da Lei n.º 75/93, de 20 de dezembro (Lei do Orçamento do Estado para 1994) e do artigo 1.º, do Decreto-Lei n.º 282/95, de 26 de Outubro, foram criadas, com o objeto e designação que têm atualmente, as chamadas “taxas de comercialização de medicamentos”, a cargo dos titulares da autorização para a introdução no mercado de medicamentos, destinadas “ao sistema de garantia de qualidade dos medicamentos, ao sistema nacional de farmacovigilância, à realização de estudos de avaliação de impacte social dos medicamentos e a ações de informação para os agentes de saúde e consumidores” e que constituíam receitas próprias do INFARMED.
A técnica utilizada na criação desta primeira “taxa de comercialização”, veio depois a ser novamente utilizada para, através da Lei do Orçamento do Estado para 2000 (a já referida Lei n.º 3-B/2000, de 4 de abril), ser criada uma “taxa sobre a comercialização de produtos de saúde”, com a mesma estrutura e propósitos da taxa de comercialização de medicamentos, mas dirigida aos produtos farmacêuticos homeopáticos, dispositivos médicos não ativos e de diagnóstico in vitro, bem como aos cosméticos e produtos de higiene corporal (cfr. artigo 72.º, da Lei n.º 3-B/2000, de 4 de abril) e imposta aos produtores e importadores, ou seus representantes, de tais produtos colocados no mercado.
A referida taxa foi mantida pelo artigo 58.º, n.º 2, da Lei n.º 30-C/2000, de 29 de dezembro (Lei do Orçamento do Estado para 2001) e, posteriormente, na sequência da autorização legislativa concedida pelo artigo 55.º, da Lei n.º 109-B/2001, de 27 de dezembro (Lei do Orçamento do Estado para 2001), o legislador, através do Decreto-Lei n.º 312/2002, de 20 de dezembro, introduziu algumas alterações ao regime anterior.
Conforme resulta do disposto no artigo 72.º, n.º 1, Lei n.º 3-B/2000, de 4 de abril, a referida “taxa sobre a comercialização de produtos de saúde” destinou-se “ao sistema de garantia da qualidade e segurança de utilização daqueles produtos, à realização de estudos de impacte social e ações de formação para os agentes de saúde e consumidores”, constituindo receita própria do INFARMED, tendo sido criada como uma contribuição para o financiamento da ação quotidiana deste Instituto.
Em suma, esta “taxa de comercialização” é exigida aos agentes económicos tidos como beneficiários desta atividade desenvolvida pelo INFARMED, no pressuposto de que a atividade prosseguida pelos sujeitos passivos da taxa é a causa da necessidade do INFARMED ter que empreender determinado tipo de ações integradas nas suas competências.
Deste modo, as ditas taxas de comercialização não constituem tributos unilaterais, uma vez que tal natureza não é evidenciada pela sua história e função e o próprio legislador, ao disciplinar tais taxas, teve a preocupação de reforçar e deixar clara a ideia de que elas constituem antes uma contrapartida de serviços que aproveitam ao conjunto dos agentes económicos a elas sujeitos (vide, o preâmbulo do Decreto-Lei n.º 312/2002, de 20-12, que procede à revisão e regulamentação daquela taxa, onde se refere que «as contrapartidas pelo pagamento da taxa, a assegurar pelo Instituto Nacional da Farmácia e do Medicamento (INFARMED), estão a ser reforçadas, em resultado de este Instituto se encontrar dotado de mais e melhores meios para assegurar o sistema global de garantia de qualidade dos produtos cosméticos e de higiene corporal, produtos farmacêuticos homeopáticos, dispositivos médicos não ativos e dispositivos para diagnóstico in vitro, no âmbito do qual os serviços prestados e a correspondente taxa se incluem.»)
Não estamos, pois, no seu aspeto dominante, perante uma participação nos gastos gerais da comunidade, em cumprimento de um dever fundamental de cidadania, nem perante a retribuição de um serviço individualizável concretamente prestado por uma entidade pública ao sujeito passivo, pelo que a referida “taxa” não se pode qualificar nem como imposto, nem como uma verdadeira taxa, sendo tais tributos antes qualificáveis como contribuições, incluídas na designação genérica dos tributos parafiscais, figuras que se situam a meio caminho entre o imposto e a taxa, e que se dirigem a um grupo restrito de pessoas, porque estas fundadamente se presumem causadoras ou beneficiárias de prestações administrativas determinadas (vide, adotando esta qualificação relativamente às “taxas” financiadoras da atividade das entidades reguladoras, Gomes Canotilho e Vital Moreira, em “Constituição da República Portuguesa anotada”, vol. I, pág. 1095, da 4ª ed., da Coimbra Editora, Cardoso da Costa, em “Sobre o princípio da legalidade das “taxas” (e das “demais contribuições financeiras”)”, em Estudos em homenagem ao Professor Doutor Marcello Caetano no centenário do seu nascimento”, pág. 805, e Sérgio Vasques, em “As taxas de regulação económica em Portugal: uma introdução”, em “As taxas de regulação económica em Portugal”, pág. 34, da ed. de 2008, da Almedina, e em “Remédios secretos e especialidades farmacêuticas”, em Ciência e Técnica Fiscal, n.º 413, Janeiro-Junho 2004, págs. 159-166).
4. Resolvida a questão da qualificação do tributo em análise, importa agora verificar se a norma sindicada nos presentes autos, que determinou a aplicação das “taxas de comercialização” aqui em análise a um período anterior ao da publicação da Lei que as criou, contende com a proibição de retroatividade contida no artigo 103.º, n.º 3, da Constituição, ou com outro parâmetro constitucional.
A referida distinção entre imposto, taxa e contribuições financeiras não se encontra constitucionalmente explicitada nesta sede, encontrando-se hoje prevista no artigo 165°, n.º alínea i), que, como vimos, desde a revisão constitucional de 1997, alargou a reserva de lei parlamentar ao «regime geral» das taxas, fazendo ainda referência a um terceiro tipo de tributo: as contribuições financeiras.
Contudo, em matéria de proibição da retroatividade da lei fiscal, a Constituição, no seu artigo 103.º, n.º 3, continua a fazer referência apenas a “impostos”, omitindo a referência às duas outras aludidas categorias de tributos.
Como é sabido, foi na revisão constitucional de 1997 que o legislador constituinte optou por consagrar no artigo 103.º, n.º 3, da Constituição, a regra da proibição da retroatividade da lei fiscal desfavorável, sendo certo que tal princípio já decorria do princípio da proteção de confiança e da ideia de Estado de Direito, nos termos do artigo 2.º da Constituição, mesmo antes da sua expressa consagração (Cfr. Gomes Canotilho e Vital Moreira, em “Constituição da República Portuguesa Anotada”, Vol. I, pág. 1092 e seg., da ed. de 2007, da Coimbra Editora).
Sobre a origem e alcance desta disposição, escreveu-se o seguinte no acórdão n.º 129/09 do Tribunal Constitucional:
«[…]
Decorre deste preceito constitucional que qualquer norma fiscal desfavorável (não se entrando aqui na questão de saber se normas fiscais favoráveis podem, e em que medida, ser retroativas) será constitucionalmente censurada quando assuma natureza retroativa, sendo a expressão «retroatividade» usada, aqui, em sentido próprio ou autêntico: proíbe-se a aplicação de uma lei fiscal nova, desvantajosa, a um facto tributário ocorrido no âmbito da vigência da lei fiscal revogada (a lei antiga) e mais favorável.
Em bom rigor, deve dizer-se que, para além de explicitar um princípio que decorria já de outro constitucionalmente consagrado, o legislador constituinte, na revisão de 1997, veio lançar luz sobre a polémica que povoava a jurisprudência do Tribunal.
As decisões do Tribunal, até 1997, assentavam no seguinte argumento: uma lei fiscal seria inconstitucional (por violação do princípio da confiança) apenas quando imposta a retroatividade em “termos que choquem a consciência jurídica e frustrem as expectativas fundadas dos contribuintes”. Desenvolvendo este critério, disse o Tribunal que a retroatividade das leis fiscais seria constitucionalmente legítima sempre que não ferisse “de forma inadmissível ou intolerável, a certeza e a confiança na ordem jurídica dos cidadãos por ela afetados; ou que não trai[sse], de forma arbitrária e injustificada, as expectativas juridicamente tuteladas e criadas na esfera jurídica dos cidadãos ao abrigo das disposições vigentes à data da ocorrência dos factos que as geraram”. (Cfr. neste sentido, e por exemplo, o Parecer da Comissão Constitucional n.º 25/81, em Pareceres da Comissão Constitucional, 16º Vol., p.257; o Parecer nº 14/82, em Pareceres…, 19º Vol, p. 183; o Acórdão do Tribunal n.º 11/83, em Acórdãos do Tribunal Constitucional, 1º Vol. p. 11; o Acórdão nº 141/85, em Acórdãos …, 6º Vol., p. 39; e ainda os Acórdãos nºs 409/89, 216/90, 410/95 e 1006/96, todos disponíveis em www.tribunalconstitucional.pt)
Estes critérios, de natureza necessariamente fluida, levaram a que, em diversos arestos, o Tribunal viesse dar como boas leis fiscais retroativas. Foi o que sucedeu, por exemplo, nos Acórdãos n.º 11/83 e 66/84 (este último em Acórdãos, 4º Vol. p. 35) e ainda nos Acórdãos nºs 67/91, 1006/96, 1204/96 e 416/02 (todos disponíveis em www.tribunalconstitucional.pt). Noutros casos, ao invés, o Tribunal entendeu que, por inexistirem razões de interesse público que prevalecessem sobre o valor da segurança jurídica, as normas retroativas seriam intoleráveis e, consequentemente, constitucionalmente ilegítimas (Cfr., por exemplo, os Acórdão ns.º 409/89, 216/90, 410/95 e 185/2000, também disponíveis no mesmo lugar).
Uma vez expressa no texto da Constituição a proibição da retroatividade em matéria fiscal, o Tribunal passou a ler esta proibição já não numa dimensão subjetiva (dependendo, em concreto, do contexto dos sujeitos da relação tributária resultante da aplicação da lei) mas antes numa dimensão objetiva. Diz o Tribunal, a este propósito, que à proibição expressa da retroatividade da lei fiscal “não pode deixar de estar ínsita uma garantia forte de objetividade e autovinculação do Estado pelo Direito” (Cfr. Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 172/2000, in www.tribunalconstitucional.pt).
Quer isto dizer que, atualmente, e consagrado que está o princípio geral de irretroatividade da lei fiscal, a mera natureza retroativa de uma lei fiscal desvantajosa para os particulares é sancionada, de forma automática, pela Constituição, qualquer que tenha sido, em concreto, a conduta da administração fiscal ou do particular tributado. Por outras palavras, o juízo de inconstitucionalidade decorre apenas da mera análise dos dados normativos, não dependendo, em nenhum momento, da averiguação de quaisquer elementos circunstanciais que resultem da condição, em concreto, de uma certa relação jurídico-tributária.
[…]»
O Tribunal Constitucional já se pronunciou em diversas ocasiões sobre a questão da constitucionalidade da norma do artigo 72.º, da Lei n.º 3-B/2000, de 4 de abril, concretamente, sobre o seu número 3 (cfr. Acórdão n.º 127/2004, para o qual remetem, entre outros, os acórdãos 178/04, 247/04, e ainda os acórdãos 133/04 e 134/04, todos acessíveis em www.tribunalconstitucional.pt). Contudo, em nenhum destes acórdãos estava em causa a questão objeto dos presentes autos, mas sim a eventual violação do princípio da legalidade tributária.
No caso dos autos, a questão que terá de colocar-se é a de saber, antes de mais, se, para este efeito, as denominadas “taxas sobre a comercialização de produtos de saúde” deverão reconduzir-se à categoria de “impostos”, merecendo idêntico tratamento no que respeita à proibição de retroatividade. Ou seja, se a proibição da retroatividade consagrada no artigo 103.º, n.º 3, da Constituição, vale apenas quanto às leis definidoras de impostos ou também quanto às leis que disciplinem contribuições financeiras.
Nada indica, nomeadamente os trabalhos preparatórios da Revisão Constitucional, que, ao estabelecer esta proibição de retroatividade, o legislador constitucional não tenha tido em mente apenas o conceito de imposto, tendo em conta a distinção estabelecida, no artigo 165.º, n.º 1, alínea i), entre as diferentes categorias de imposto, taxa e contribuições financeiras a favor das entidades públicas. Mas isso não significa que os princípios estruturantes que fundamentam a proibição constante do artigo 103.º, n.º 3, da Constituição, não tenham uma palavra a dizer quanto à aplicação retroativa das taxas e das contribuições financeiras.
Sobre esta questão, escreveu Sérgio Vasques:
«Mas se a origem e a letra do artigo 103.º, n.º 3, não parecem autorizar a aplicação desta proibição às leis que criem taxas ou contribuições retroativas, isso não quer dizer que o problema da retroatividade se coloque quanto a estes tributos em termos muito diversos daqueles em que se coloca quanto aos impostos. À semelhança do que sucede com os impostos, também as taxas e as modernas contribuições podem revestir natureza periódica ou de obrigação única também quanto a umas e outras sucede o legislador ou a administração lançarem sobre os contribuintes encargos com eficácia retroativa. O facto de estes tributos comutativos servirem de compensação a prestações efetiva ou presumivelmente provocadas ou aproveitadas pelo contribuinte, mitiga alguma da sua violência mas não elimina com certeza a insegurança que resulta da sua aplicação retroativa, bastando para o efeito pensar no agravamento retroativo de uma taxa anual de ocupação do domínio público, de contribuições para a segurança social ou dos modernos tributos ambientais. Assim, se estes são tributos que escapam ao artigo 103.º, n.º 3, julgamos ainda assim que dos princípios da segurança jurídica e do Estado de Direito fundados no artigo 2.º da Constituição resulta a exclusão da sua aplicação retroativa na generalidade dos casos, ponto da maior importância numa época em que se intensifica o recurso às taxas como mecanismo de financiamento da administração pública e se multiplicam novas e modernas contribuições» (In “Manual de Direito Fiscal”, cit., pág. 297).
No caso concreto, é manifesto que se está perante uma hipótese de aplicação retroativa do disposto no artigo 72.º, da Lei n.º 3-B/2000, de 4 de abril, – retroactividade própria ou autêntica, ou seja, aplicação de lei nova a factos anteriores à data da sua entrada em vigor. Com efeito, o facto gerador da obrigação fiscal – a colocação de produtos de saúde no período de janeiro a março de 2000 – ocorre indubitavelmente antes da publicação da lei nova, não sendo possível entender que se está perante um facto jurídico-fiscal complexo de formação sucessiva. No caso, não se trata de tributar um rendimento no fim do período tributário, mas determinado tipo de transações em si mesmas (concretamente, a colocação no mercado, por parte de importadores e produtores ou seus representantes, de produtos de saúde). Por outro lado, não estamos perante uma tributação que incida, como o IVA, sobre todas as fases do circuito económico, desde a produção até ao comércio retalhista. Esta “taxa” aplica-se apenas em determinada parcela ou fase do circuito económico, à fase da produção ou importação de determinados bens. A lei especifica que «a taxa incide sobre o volume de vendas de cada produto, tendo por referência o respetivo preço de venda ao consumidor final…» (cfr. art. 72.º, n.º 3) pelo que cada venda é, para este efeito, um facto tributário autónomo, a que o contribuinte fica sujeito.
Deste modo, a criação deste tributo vai agravar a situação do sujeito passivo num momento em que o facto gerador é coisa do passado, no que respeita aos meses de janeiro a março de 2000, uma vez que as vendas dos produtos sujeitos a tais “taxas” já haviam sido efetuadas aquando da publicação da Lei n.º 3-B/2000, de 4 de abril. É certo que o tributo em causa só vem a ser liquidado em momento posterior, com base nas declarações de vendas mensais. Contudo, a determinação do volume de vendas mensal é o mero somatório das diversas operações sujeitas às referidas taxas, constituindo tal operação tão-só o apuramento do montante tributável a este título.
Estamos, pois, perante um tributo de obrigação única, incidindo sobre operações avulsas que se produzem e esgotam de modo instantâneo, em que o facto gerador do tributo surge isolado no tempo, originando, para o contribuinte, uma obrigação de pagamento com caráter avulso. Ou seja, a “taxa sobre a comercialização de produtos de saúde” aqui em análise não se refere a um período de tempo, mas a um momento: o da operação isolada sujeita à taxa, sem prejuízo de o modo de apuramento do montante devido pelos agentes económicos sujeitos à referida “taxa” ser periódico, continuado e duradouro, existindo, nos termos dos n.ºs 3 e 4, do artigo 72.º, da Lei n.º 3-B/2000, de 4 de abril, a obrigação por parte dos sujeitos passivos de apresentação das declarações de vendas mensais.
Tendo-se por assente que a norma questionada nos autos determinou a aplicação retroativa de uma contribuição financeira a factos ocorridos anteriormente à sua criação, importa decidir se esta retroatividade é ou não constitucionalmente admissível.
O princípio da proteção da confiança, ínsito na ideia de Estado de Direito democrático (artigo 2.º, da Constituição), só exclui a possibilidade de leis retroactivas, quando se esteja perante uma retroatividade intolerável, que afete de forma inadmissível e arbitrária os direitos e expectativas legitimamente fundados dos cidadãos contribuintes.
O Tribunal Constitucional tem firmado jurisprudência no sentido de que a inadmissibilidade da retroactivade poderá ser aferida pela aplicação cumulativa, dos seguintes critérios:
a) A afetação de expectativas, em sentido desfavorável, será inadmissível, quando constitua uma mutação da ordem jurídica com que, razoavelmente, os destinatários das normas dela constantes não possam contar;
b) e quando não for ditada pela necessidade de salvaguardar direitos ou interesses constitucionalmente protegidos que devam considerar-se prevalecentes sobre os interesses particulares afetados.
Assim sendo, poderá considerar-se que a norma do artigo 103.º, da Lei n.º 3-B/2000, de 4 de abril, ao fazer retroagir os efeitos do artigo 72.º, n.º 3, da mesma lei, à data de 1 de janeiro de 2000, viola a confiança dos agentes económicos abrangidos pela nova “taxa” assim criada, de forma inesperada e arbitrária e, consequentemente, constitucionalmente inadmissível?
A resposta não pode deixar de ser afirmativa.
Com efeito, sendo a “taxa sobre a comercialização de produtos de saúde” criada pela referida norma um tributo com uma nova conformação no ordenamento jurídico, aos agentes económicos por ela abrangidos não ocorreria que a mesma fosse aplicada retroactivamente a transações já efetuadas à data da entrada em vigor da lei, tornando impossível efetuar um planeamento económico que tivesse em conta, no custo dos produtos colocados no mercado, o valor cobrado a este título. Designadamente, perante a aplicação retroativa do referido tributo, as entidades sujeitas ao mesmo viram inviabilizada a possibilidade de, tal como em geral acontece nos impostos indiretos, repercuti-lo no consumidor final, que seria quem suportaria economicamente o tributo devido, ao adquirir o bem que inclui no preço o valor da “taxa de comercialização”.
Desta forma, e uma vez que se não descortinam razões de interesse público que, no caso, sejam capazes de prevalecer sobre o valor da segurança jurídica, a conclusão a extrair é a de que a confiança de agentes económicos na ordem jurídica foi violada, sem qualquer justificação, de forma arbitrária, pelo que a retroatividade é, no caso, intolerável e, consequentemente, constitucionalmente ilegítima.
Deste modo, apesar de se ter verificado que o preceito constitucional violado não foi o apontada pela decisão recorrida, confirma-se que a norma fiscalizada ofende um outro parâmetro constitucional – o da proteção da confiança -, pelo que a recusa da sua aplicação foi legítima, devendo o recurso interposto ser julgado improcedente.
Decisão
Nestes termos, decide-se:
a) Julgar inconstitucional, por violação do princípio da proteção da confiança, ínsito no princípio do Estado de direito democrático enunciado no artigo 2.º, da Constituição, a norma do artigo 103.º, da Lei n.º 3-B/2000, de 4 de abril, quando aplicada à liquidação da “taxa sobre a comercialização de produtos de saúde”, prevista no artigo 72.º do mesmo diploma, no período respeitante aos meses de janeiro a março de 2000;
b) Consequentemente, negar provimento ao recurso.
Sem custas.
Lisboa, 7 de março de 2012.- João Cura Mariano – Catarina Sarmento e Castro – Joaquim de Sousa Ribeiro – J. Cunha Barbosa – Rui Manuel Moura Ramos.