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Processo n.º 34/12
2.ª Secção
Relator: Conselheira Catarina Sarmento e Castro
Acordam, em Conferência, na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional
I -Relatório
1. Nos presentes autos, vindos do Supremo Tribunal de Justiça, A. veio interpor recurso, ao abrigo do artigo 70.º, n.º 1, alínea b), da Lei n.º 28/82, de 15 de novembro, com as alterações posteriores (Lei do Tribunal Constitucional, doravante, LTC).
2. O objeto do recurso é especificado, nos seguintes termos:
“(…) a constitucionalidade da interpretação dada pelo Supremo Tribunal de Justiça das normas conjugadas dos Art.os 400.º n.º 1 alínea e), do C.P.P. e Art.º 32.º n.º 1, n.º 5 e 10 da C.R.P., no sentido de que não é admissível recurso ordinário de uma decisão que aplique pena privativa da liberdade suspensa na sua execução, mesmo num caso, como o dos autos, em que o próprio Tribunal, STJ, reconhece que, embora não de imediato, a condição de suspensão é de impossível verificação uma vez que, conforme o Tribunal o admite, o arguido não tem, nem meios, nem rendimentos que lhe permitam fazer face à condição de suspensão aplicada.”
“(…) Violação do Princípio das Garantias de Defesa e do Contraditório plasmado nos n.os 1 e 5 do Art.º 32.º da C.R.P., uma vez que, desde a contestação que o arguido pretende ver fundamentada a decisão de o condenar individualmente por uma deliberação tomada por órgão colegial. Com efeito, vem o arguido individualmente condenado pela concretização de um negócio em que a Associação – B. – que preside é parte, sendo certo que, este, sozinho não pode vincular aquela instituição, sendo que nos autos, por diversas vezes foi levantada a questão, não resultando dúvidas que aquela decisão competiria a um órgão colegial, o que aconteceu na situação objeto dos presentes autos;”
“(…) Violação do disposto no Art.º 382.° do C.P., porque se afastou a regra de subsidiariedade plasmada no mesmo, que determina que o arguido só possa ser punido pelo crime de Abuso de Poder quando a sua conduta não possa ser subsumida noutra norma, sendo certo que, no caso dos autos o arguido foi condenado “… pela prática, em autoria material e em concurso dos crimes de participação económica em negócio, p. e p., pelos art. 377.º, n.º 2 do C.P. e abuso de poder, p. e p., pelo art. 382.º do C.P. (este consumindo aquele) – sublinhado nosso. Ora, tamanha interpretação resulta na ofensa dos Princípios Constitucionais da Tipicidade, Princípio da Proibição do ne bis in idem, Princípio da Legalidade, e ainda Princípio do Tratamento mais Favorável para o Arguido e, igualmente, Princípio do in dubio pro reo, sendo por via disso, a decisão, pela interpretação que fez das citadas normas, Inconstitucional por violação do disposto nos n.º 1, 3, 4, 5 do Art.º 29.º e n.º 2 do Art.º 32.º da C.R.P.;”
“(…) Violação do Princípio da Proporcionalidade – Art.º 30.º da C.R.P., e Art.os 40.º n.º 2, 50.º n.ºs 1 e 2, 70.º e 71.º, todos do C.P., bem como, do Princípio da Fundamentação das decisões judiciais, uma vez que a Decisão do Tribunal da Relação de Coimbra não fundamenta o quantum da condição de suspensão da pena aplicada ao arguido e, conforme resulta dos rendimentos dados como provados que este aufere são manifestamente desproporcionais;”
Mais refere o recorrente que:
“(…) Tamanhas inconstitucionalidades são de conhecimento oficioso, (…) sendo certo que, ao ser invocada tamanha violação no recurso que antecede, mesmo a entender-se que a decisão seria irrecorrível, no que se não concede, sempre aquelas questões teriam de merecer apreciação, ex vi Art.º 204.° da C.R.P., pelo que, a omissão ora invocada, viola o disposto naquela norma, sendo por via disso inconstitucional.”
“(…) os vícios supra invocados se reconduzem na violação do Principio da Tutela Jurisdicional Efetiva, isto é, ao arguido não foram garantidos todos os direitos de defesa, uma vez que, não obstante este ter apresentado contestação, desde logo, levantando a questão da legitimidade para, por si, ser condenado por um ato praticado por um órgão colegial nunca tal questão foi apreciada, pelo que, as diversas instâncias violaram o disposto no n.º 1 do Art.º 205.° da C.R.P. uma vez que condenaram o arguido sem fundamentar a sua decisão.”
3. No Tribunal Constitucional, foi proferida Decisão sumária de não conhecimento do recurso.
Na fundamentação de tal decisão, refere-se, nomeadamente, o seguinte:
“(…) Enquadrando-se a situação sub judicio no artigo 78.º-A, n.º 1, da LTC, é caso de proferir decisão sumária, termos em que se passa a decidir.
(…) O Tribunal Constitucional tem entendido, de modo reiterado e uniforme, serem requisitos cumulativos da admissibilidade do recurso, previsto na alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC, a existência dum objeto normativo – norma ou interpretação normativa – como alvo de apreciação; o esgotamento dos recursos ordinários (artigo 70.º, n.º 2, da LTC); a aplicação da norma ou interpretação normativa, cuja sindicância se pretende, como ratio decidendi da decisão recorrida; a suscitação prévia da questão de constitucionalidade normativa, de modo processualmente adequado e tempestivo, perante o tribunal a quo (artigo 280.º, n.º 1, alínea b), da Constituição da República Portuguesa; artigo 72.º, n.º 2, da LTC).
Vejamos se tais pressupostos – de verificação cumulativa – estão presentes no caso concreto.
(…) Comecemos tal análise na perspetiva da natureza do objeto do recurso de constitucionalidade.
O Tribunal Constitucional apenas pode sindicar a constitucionalidade de normas ou interpretações normativas e não de decisões, nomeadamente jurisdicionais, não compreendendo o nosso ordenamento jurídico a figura do recurso constitucional de amparo ou queixa constitucional.
A este propósito, cumpre relembrar as considerações aduzidas no Acórdão deste Tribunal Constitucional n.º 633/08 (disponível em www.tribunalconstitucional.pt), que se transcrevem:
“ (…) sendo o objeto do recurso de fiscalização concreta de constitucionalidade constituído por normas jurídicas, que violem preceitos ou princípios constitucionais, não pode sindicar-se, no recurso de constitucionalidade, a decisão judicial em si própria, mesmo quando esta faça aplicação direta de preceitos ou princípios constitucionais, quer no que importa à correção, no plano do direito infraconstitucional, da interpretação normativa a que a mesma chegou, quer no que tange à forma como o critério normativo previamente determinado foi aplicado às circunstâncias específicas do caso concreto (correção do juízo subsuntivo).
Deste modo, é sempre forçoso que, no âmbito dos recursos interpostos para o Tribunal Constitucional, se questione a (in)constitucionalidade de normas, não sendo, assim, admissíveis os recursos que, ao jeito da Verfassungsbeschwerde alemã ou do recurso de amparo espanhol, sindiquem, sub species constitutionis, a concreta aplicação do direito efetuada pelos demais tribunais, em termos de se assacar ao ato judicial de “aplicação” a violação (direta) dos parâmetros jurídico-constitucionais. Ou seja, não cabe a este Tribunal apurar e sindicar a bondade e o mérito do julgamento efetuado in concreto pelo tribunal a quo. A intervenção do Tribunal Constitucional não incide sobre a correção jurídica do concreto julgamento, mas apenas sobre a conformidade constitucional das normas aplicadas pela decisão recorrida (…)”
Ora, no presente caso, as questões enunciadas pelo recorrente não contêm uma verdadeira dimensão normativa, sendo por isso inidóneas como objeto do recurso de constitucionalidade, como melhor explicitaremos infra.
A primeira questão de constitucionalidade é reportada à interpretação do artigo 400.º, n.º 1, alínea e), do Código de Processo Penal, “no sentido de que não é admissível recurso ordinário de uma decisão que aplique pena privativa da liberdade suspensa na sua execução, mesmo num caso, como o dos autos, em que o próprio Tribunal, STJ, reconhece que, embora não de imediato, a condição de suspensão é de impossível verificação uma vez que, conforme o Tribunal o admite, o arguido não tem, nem meios, nem rendimentos que lhe permitam fazer face à condição de suspensão aplicada.”
Relativamente a esta questão, resulta manifesto que, não obstante a alusão ao artigo 400.º, n.º 1, alínea e), do Código de Processo Penal, o recorrente não autonomiza um verdadeiro critério normativo – enquanto regra abstrata, potencialmente aplicável a uma generalidade de situações – extraível de tal preceito e que no mesmo encontre um mínimo de correspondência literal, sendo manifesto que a pretensão de sindicância deduzida incide sobre a própria decisão jurisdicional, na sua dimensão de ato de julgamento.
Na verdade, a aparente norma enunciada como objeto do recurso inclui uma seleção de elementos casuísticos, específicos do caso concreto – interpretados de acordo com a tese subjetiva do recorrente - deixando claro que a questão enunciada não consubstancia mais do que uma forma velada de pretensão de sindicância da concreta decisão jurisdicional, enquanto operação subsuntiva realizada pelo julgador.
Nestes termos, por inidoneidade do respetivo objeto, resulta insofismável a inadmissibilidade do recurso, quanto a esta primeira questão.
No tocante à segunda questão, a pretensão de sindicância da própria decisão jurisdicional, e não de qualquer critério normativo que tenha sido utilizado a título de ratio decidendi, é ainda mais manifesta, já que o recorrente assaca a violação de valores constitucionais – concretamente, das garantias de defesa e do princípio do contraditório – à própria decisão, não procurando sequer reportar a questão enunciada a qualquer específica disposição legal infraconstitucional, como se imporia caso a mesma contivesse dimensão normativa.
Relativamente às questões referidas em terceiro e quarto lugares, são aplicáveis as mesmas considerações quanto à ausência de objeto normativo, já que resulta evidente que a alegada desconformidade com a Lei Fundamental é imputada à própria decisão jurisdicional, salientando-se que, sintomaticamente, a recorrente refere a violação concomitante de disposições constitucionais e infraconstitucionais.
A esse propósito, pode ler-se no Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 489/04 (disponível no sítio da internet já aludido):
“se se utiliza uma argumentação consubstanciada em vincar que foi violado um dado preceito legal ordinário e, simultaneamente, violadas normas ou princípios constitucionais, tem-se por certo que a questão de desarmonia constitucional é imputada à decisão judicial, enquanto subsunção dos factos ao direito, e não ao ordenamento jurídico infraconstitucional que se tem por violado com essa decisão (…)”
No que concerne às questões referidas em quinto e sexto lugares, novamente incorre o recorrente no equívoco de considerar que ao Tribunal Constitucional incumbe sindicar a conformidade de concretas decisões jurisdicionais – na sua componente de atos de julgamento e juízos subsuntivos – com a Lei Fundamental, esquecendo que tal tarefa se encontra arredada da competência deste Tribunal, no nosso ordenamento jurídico.
Assim, não pode o recurso de constitucionalidade incidir sobre a alegada circunstância de as concretas decisões jurisdicionais terem omitido a apreciação de alegadas desconformidades com a Lei Fundamental ou de violarem o princípio da tutela jurisdicional efetiva.
Pelo exposto, concluindo-se pela inexistência de uma verdadeira dimensão normativa, relativamente a todas as questões enunciadas pelo recorrente, no presente caso, encontra-se prejudicada a admissibilidade do recurso.”
É esta a Decisão sumária que é alvo da presente reclamação.
4. O reclamante refere que todos os recursos para o Tribunal Constitucional partem da análise casuística, recorrendo, por isso, a elementos específicos do caso concreto. Assim, a questão de fundo levantada no requerimento de interposição do recurso – que se prende com a “irrecorribilidade para o STJ de decisões das Relações que aplicam ao arguido uma condição de suspensão de verificação impossível” – é passível de sindicância por este Tribunal.
Nestes termos, esclarece que pretende a apreciação “da alínea e) do n.º 1 do Art.º 400.º do CPP quando interpretado no sentido de vedar o direito de recurso a um arguido a quem tenha sido aplicada uma pena suspensa na sua execução quando essa condição de suspensão é de verificação impossível, porquanto frontalmente contra o direito ao recurso constitucionalmente consagrado”, mais referindo que invocou outras violações à Lei Fundamental, que são de conhecimento oficioso.
Conclui, em conformidade, peticionando a procedência da reclamação e a consequente admissão do recurso que interpôs.
5. O Ministério Público, em resposta, manifesta a sua concordância com a decisão sumária proferida, acentuando que o recurso de constitucionalidade deve integrar uma dimensão normativa, sendo que, no caso dos autos, o recorrente não conseguiu enunciar um objeto do recurso com tal dimensão.
Aliás, por mera análise da forma como se encontra redigido o requerimento de interposição do recurso de constitucionalidade, conclui o Ministério Público que o recorrente pretende, fundamentalmente, colocar em causa a concreta decisão jurisdicional, nomeadamente a forma como o tribunal a quo “determinou a sua livre convicção quanto aos factos submetidos à sua apreciação e definiu a respetiva sanção”.
Mais refere que, em bom rigor, a questão de constitucionalidade suscitada no recurso em análise não integra a ratio decidendi da decisão recorrida.
Pelo exposto, termina pugnando pela improcedência da reclamação deduzida.
Cumpre apreciar e decidir.
II – Fundamentos
6. Analisada a reclamação apresentada, conclui-se que os argumentos aduzidos pelo reclamante não infirmam a correção do juízo efetuado, na decisão sumária proferida, consubstanciando-se sobretudo numa manifestação de discordância face ao sentido de tal decisão.
Pelo exposto, não tendo sido apresentado qualquer novo argumento, a que o conteúdo da decisão sumária reclamada não dê resposta e sendo certo que a mesma merece a nossa concordância, damos por reproduzida a sua fundamentação e, em consequência, concluímos pelo indeferimento da reclamação apresentada.
III – Decisão
7. Nestes termos, e pelos fundamentos expostos, decide-se confirmar a decisão sumária reclamada, proferida no dia 29 de fevereiro de 2012, e, em consequência, indeferir a reclamação apresentada.
Custas pelo reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 20 unidades de conta, ponderados os critérios referidos no artigo 9.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 303/98, de 7 de outubro (artigo 7.º do mesmo diploma).
Lisboa, 24 de abril de 2012.- Catarina Sarmento e Castro – João Cura Mariano – Rui Manuel Moura Ramos.