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Proc. nº 366/96
1ª Secção Rel. Cons. Monteiro Diniz
Acordam no Tribunal Constitucional:
I - A questão
1 - No Tribunal Judicial da Comarca de Penacova, M... intentou acção de despejo, com processo sumário, contra T..., relativamente a um prédio urbano sito no Soito, limite de Vila Nova de Poiares, invocando para tanto a caducidade do arrendamento por não se ter verificado, na sequência da morte do primitivo arrendatário, a comunicação ao senhorio a que se reportam os artigos 85º, 89º e
89º-D, do Regime do Arrendamento Urbano, aprovado pelo Decreto--Lei nº 321-B/90, de 15 de Outubro, na redacção do Decreto-Lei nº 278/93, de 10 de Agosto.
Por sentença de 10 de Fevereiro de 1996, foi a acção julgada improcedente no saneador, desaplicando-se para tanto, com fundamento em inconstitucionalidade, a norma do artigo 89º-D do
Decreto-Lei nº 278º/93, de 10 de Agosto, enquanto suprimiu o nº 3 do artigo 89º do Regime do Arrendamento Urbano.
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2 - Desta decisão foi interposto pelo Ministério Público recurso obrigatório para este Tribunal, havendo o senhor Procurador-Geral Adjunto nas alegações que entretanto produziu, formulado as conclusões seguintes:
'1º É organicamente inconstitucional, por violação do preceituado no artigo 168º, nº 1, alínea h) da Constituição da República Portuguesa - face ao sentido e extensão da autorização legislativa constante da Lei nº 14/93, de 14 de Maio - a interpretação da norma contida no artigo 89º-D do RAU (na redacção emergente do Decreto--Lei nº 278/93, de 10 de Agosto) em termos de a cominação da caducidade nela estatuída abranger o não cumprimento tempestivo do dever de comunicação previsto nos nºs 1 e 2 do artigo 89 do RAU.
2º Termos em que deverá confirmar-se o juízo de inconstitucionalidade constante da decisão recorrida.'
A recorrida não contralegou.
Os autos seguiram os vistos de lei cabendo agora apreciar e decidir.
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II - A fundamentação
1 - o artigo 1111º do Código Civil (na versão da Lei nº 46/85, de 20 de Setembro), dispunha que o arrendamento não caducava por morte do primitivo arrendatário, ou daquele a quem tivesse cedido a sua posição contratual, sobrevivendo-lhe 'cônjuge não separado judicialmente de pessoas e bens ou de facto'.
E, no nº 5 deste preceito, consignava-se que 'a morte do primitivo cônjuge sobrevivo deve ser comunicada ao senhorio no prazo de 180 dias, por meio de carta registada com aviso de recepção, pela pessoa ou pessoas a quem o arrendamento se transmitir, acompanhada dos documentos que comprovem os seus direitos'.
Estabelecia-se assim, contrariamente ao que sucedia na anterior versão daquele preceito, fixada pelo Decreto-Lei nº 328/81, de 4 de Dezembro, o dever de comunicação da morte do arrendatário ao senhorio, se bem que, segundo o entendimento dominante na doutrina, não decorresse nenhuma sanção para o inquilino no caso de incumprimento dessa obrigação, não ocorrendo, nomeadamente, caducidade do contrato (cfr, neste sentido Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, vol. II, 3ª ed., 1986, p. 631 e Januário Gomes, Breve Apontamento a propósito do nº 5 do artigo 1111º do Código Civil, Tribuna da Justiça, Dez. 1986, nº 24, pp. 1 e ss; em sentido contrário, Menezes Cordeiro e Castro Fraga, Novo Regime do arrendamento urbano, p. 130 e Menezes Cordeiro, O dever de comunicar a morte do arrendatário: o artigo 1111º, nº 5, do Código Civil, Tribuna da Justiça, Dez. 1989, nº 1, pp. 29 e ss.).
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2 - Entretanto, através da Lei nº 42/90, de 10 de Agosto, a Assembleia da República veio conceder autorização legislativa ao Governo para alterar o regime jurídico do arrendamento urbano.
E, na alínea n) do artigo 2º desta lei delegante, estabeleceu-se como uma das directrizes a que tais alterações haviam de subordinar-se, a
'modificação do regime de transmissão por morte da posição do arrendatário habitacional, sem prejuízo da salvaguarda dos interesses considerados legítimos'.
Ao abrigo daquela credencial parlamentar veio depois a ser editado o Decreto-Lei nº 321-B/90, que aprova o Regime do Arrendamento Urbano, (RAU), revogando simultaneamente o direito anterior relativo às matérias nele reguladas, nomeadamente, as normas contidas nos artigos 1083º a 1120º do Código Civil.
A disciplina da transmissão mortis causa da posição jurídica de arrendatário, que se continha no artigo 1111º do Código Civil, passou então a constar dos artigos 85º a 89º do RAU, importando recordar, pela incidência que revestem na dilucidação da situação em apreço, os artigos 85º nº 1, alínea a) e 89º daquele regime, que continham a seguinte formulação: Artigo 85º
(Transmissão por morte)
1 - O arrendamento para habitação não caduca por morte do primitivo arrendatário ou daquele a quem tiver sido cedida a posição contratual, se lhe sobreviver: a) Cônjuge não separado judicialmente de pessoas e bens ou de facto;
.................................................
Artigo 89º
(Comunicação ao senhorio)
1 - O transmissário não renunciante deve comunicar ao senhorio, por escrito, a morte do primitivo arrendatário ou do cônjuge sobrevivo, a enviar nos 180 dias posteriores à ocorrência.
2 - A comunicação referida no número anterior deve ser acompanhada dos documentos autênticos ou autenticados que comprovem os direitos do transmissário.
3 - A inobservância do disposto nos números anteriores não prejudica a transmissão do contrato mas obriga o transmissário faltoso a indemnizar por todos os danos derivados da omissão.
Em conformidade com estes dispositivos, muito embora o transmissário não renunciante deva comunicar ao senhorio, por escrito, a morte do primitivo arrendatário ou do cônjuge sobrevivo, a não observância desta comunicação não prejudica a transmissão do contrato, obrigando porém o transmissário faltoso a indemnizar pelos danos derivados da omissão.
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3 - Entretanto, através da Lei nº 14/93, de 14 de Maio, a Assembleia da República concedeu ao Governo autorização para legislar no âmbito do regime do arrendamento urbano, definindo no artigo 2º o sentido e extensão da respectiva delegação nos termos seguintes: Artigo 2º A Presente autorização legislativa tem os seguintes sentido e extensão: a) Permitir a actualização das rendas dos contratos de arrendamento para habitação até ao seu valor em regime de renda condicionada, sempre que o arrendatário, quando residente na área metropolitana de Lisboa ou do Porto, tiver outra residência ou for proprietário de imóvel nas respectivas áreas metropolitanas ou, se residir no resto do País, na respectiva comarca, que possa satisfazer as suas necessidades habitacionais imediatas; b) Possibilitar a denúncia dos contratos de arrendamento para habitação a cuja transmissão seja aplicável a alteração do regime de renda previsto no artigo 87º do Regime do Arrendamento Urbano, aprovado pelo Decreto-Lei nº 321-B/90, de 15 de Outubro, mediante o pagamento de uma indemnização igual a 10 anos de renda, praticada à data da transmissão, sem prejuízo de o arrendatário poder propor um novo valor de renda que, caso não seja aceite para efeitos
de continuação do contrato, relevará para cálculo da indemnização referida; c) Permitir a estipulação de cláusulas de actualização anual de renda nos contratos de arrendamento para habitação que não fiquem sujeitos a um prazo de duração efectiva superior a oito anos; d) Proceder às adaptações técnico--legislativas necessárias à coerência e à harmonização sistemática da legislação do arrendamento em vigor.'
E, a partir desta autorização foi editado o Decreto-Lei nº 278/93, de 10 de Agosto, que introduziu diversas alterações na disciplina da transmissão por morte do arrendamento para habitação, concedendo, nomeadamente, nova redacção ao artigo 89º e aditando os artigos 89º-A a 89º-D ao Regime Jurídico do Arrendamento Urbano.
Com efeito, por força deste diploma o artigo 89º passou a dispor da seguinte redacção: Artigo 89º
(Comunicação ao senhorio)
1 - O transmissário não renunciante deve comunicar ao senhorio, por carta registada com aviso de recepção, a morte do primitivo arrendatário ou do cônjuge sobrevivo, enviada nos 180 dias posteriores à ocorrência.
2 - A comunicação referida no número anterior deve ser acompanhada dos documentos autênticos ou autenticados que comprovem os direitos do transmissário.
Por outro lado, foi então aditado ao RAU o artigo 89º-D cuja formulação é a seguinte: Artigo 89º-D
O não cumprimento dos prazos fixados nesta secção importa a caducidade do direito.
Como já se observou, a decisão recorrida considerou que a eliminação do nº 3 do artigo 89º é organicamente inconstitucional, devendo entender-se que o artigo 89º-D apenas é aplicável aos restantes casos de não cumprimento de prazos identificáveis na secção, designadamente dos artigos 89º-A a 89º--C.
Será efectivamente assim?
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4 - Em conformidade com o disposto no artigo 168º, nº 1, alínea h), cabe na exclusiva competência da Assembleia da República legislar, salvo autorização ao Governo, sobre o 'regime geral de arrendamento rural e urbano'.
Tem-se entendido que o regime geral a que se reporta aquele preceito
[talqualmente sucede com os regimes gerais previstos nas alíneas d), e) e p) também do nº 1, do artigo 168º], visa a definição do 'regime comum ou normal da matéria sem prejuízo, todavia, de regimes especiais que podem ser definidos pelo Governo
(ou, se for caso disso, pelas assembleias regionais)' naturalmente 'com respeito pelos princípios fundamentais do regime geral'. E, dentro destes princípios conta--se 'seguramente o regime do contrato e da sua cessação, bem como os direitos e deveres das partes'. (cfr. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 3ª ed., Coimbra, 1993, pp. 673 e
674).
Pronunciando-se sobre o sentido e alcance da reserva de legislação parlamentar estabelecida naquele preceito, o Tribunal Constitucional teve ensejo de definir a seguinte doutrina:
'Refere-se ele ao 'regime geral do arrendamento rural e urbano' - numa fórmula que encontra paralelo na das alíneas d) e e) do mesmo artigo (ambas tratando igualmente de regime geral), e é diferente da das alíneas f), g) ou n), por exemplo, as quais incluem na reserva apenas as 'bases' dos correspondentes regimes.
Ora, logo este ponto de partida textual mostra que a reserva em causa não se limita à definição dos 'princípios', 'directivas' ou standards fundamentais em matéria de arrendamento (é dizer, das 'bases' respectivas), mas desce ao nível das próprias 'normas' integradoras do regime desse contrato e modeladoras do seu perfil. Circunscrito o âmbito da reserva pela noção de
'arrendamento rural e urbano', nela se incluirão, pois, as regras relativas à celebração de tais contratos e às suas condições de validade, definidoras
(imperativa ou supletivamente) das relações (direitos e deveres) dos contraentes durante a sua vigência e definidoras, bem assim, das condições e causas da sua extinção - pois tudo isso é 'regime jurídico' dessa figura negocial. Por outra palavras, e em suma: cabe reservadamente ao legislador parlamentar definir os pressupostos, as condições e os limites do exercício da autonomia privada no
âmbito contratual em causa.' (cfr. acórdão nº 77//88, Diário da República, I Série, de 28 de Abril de 1988).
Ora, tendo em atenção o sentido e alcance da reserva parlamentar assim definidos - 'regras relativas à celebração de tais contratos e às suas condições de validade, definidoras (imperativa ou supletivamente) das relações
(direitos e deveres) dos contraentes durante a sua vigência e definidoras, bem assim, das condições e causas da sua extinção' (sublinhado acrescentado)-, impõe-se concluir que nela se hão-de integrar as alterações introduzidas pelo Decreto-Lei nº 278/93, na norma do artigo 89º e o acrescentamento trazido ao RAU pela norma do artigo 89º-D.
Ambas, com efeito, se traduzem em modificações de fundo, acarretando uma inovação substancial no modo de transmissão mortis causa da posição de arrendatário. Passou a exigir-se com tais normas, contrariamente ao regime anterior, 'uma aceitação ou confirmação (em sentido não técnico) por parte do beneficiário - aceitação que deve ocorrer em determinado prazo e com sujeição a determinadas formalidades - tendo efeitos retroactivos à data da morte do arrendatário' (cfr. Januário Gomes, Arrendamentos Para Habitação, Coimbra, 1994, p. 179).
Mas, adianta-se desde já, o legislador delegado, face ao sentido e extensão da autorização legislativa contida na Lei nº
14/93, não dispunha de competência para editar normação com aquele conteúdo.
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5 - Procurando justificar-se o sentido das alterações trazidas pela nova redacção do artigo 89º e o acrescentamento do artigo 89º-D, na exposição preambular do Decreto-Lei nº 278/93, escreveu-se assim:
'Em contratos tão sensíveis como o arrendamento, o exercício dos direitos de cada parte importa muitas vezes um sacrifício para os interesses da outra. Nestes termos, é razoável que as situações não permaneçam indefinidas, estabelecendo-se prazos não muito largos para o exercício desses direitos e prevendo-se a caducidade dos que neles não sejam exercidos naturalmente sem prejuízo da sua renovação quando for o caso.'
Todavia, esta retórica argumentativa não dispõe de suporte bastante em qualquer das alíneas do artigo 2º da Lei nº 14/93, ao abrigo da qual aquele diploma foi já editado.
Tal como se escreveu no Acórdão nº 1019/96 (Diário da República, II Série, de 14 de Dezembro de 1996), que se tem acompanhado de perto e decidiu sobre uma questão em todo idêntica à que nestes autos se prefigura, 'as alíneas a), b) e c) dispõem para situações específicas que nada têm que ver com a matéria aqui em causa; a alínea d) - 'Proceder às adaptações técnico-
-legislativas necessárias à coerência e à harmonização sistemática da legislação do arrendamento em vigor' - não pode assim ser entendida, sob pena de o
'objecto' e o 'sentido' da autorização referidos no nº 2 do artigo 168º da Constituição perderem qualquer significado e a lei de autorização se assumir como um verdadeiro 'cheque em branco' a preencher pelo legislador autorizado'.
As normas das leis delegantes, incidindo sobre matéria inscrita no
âmbito da competência reservada da Assembleia da República, condicionam duplamente a acção legislativa do Governo, dependente não só da autorização enquanto tal, mas também das directivas e critérios que estas hão-de conter. O Decreto-Lei autorizado representará assim, obrigatoriamente, uma tradução material daquelas directivas, em termos de se poder afirmar que os seus enunciados essenciais (os que respeitem à competência reservada do Parlamento) se acham predefinidos no texto autorizador.
Ora, a eliminação do nº 3 do artigo 89º do RAU e as consequências dela derivadas sobre o modo de transmissão mortis causa da posição de arrendatário, não dispõe de qualquer suporte material em termos de 'sentido e extensão' na Lei nº 14/93, e daí a sua inarredável inconstitucionalidade orgânica.
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III - A decisão
Nestes termos, decide-se:
a) Julgar inconstitucional, por violação do disposto no artigo 168º, nº 1, alínea h) da Constituição, a norma do artigo 1º do Decreto-Lei nº 278/93, de 10 de Agosto, na parte em que elimina o nº 3 do artigo 89º do Regime do Arrendamento Urbano, aprovado pelo Decreto-Lei nº 321-B/90, de 15 de Outubro;
b) Negar, consequentemente, provimento ao recurso, confirmando-se, no que à questão de constitucionalidade respeita, a sentença recorrida.
Lisboa, 23 de Janeiro de 1997 Antero Alves Monteiro diniz Maria da Assunção Esteves Maria Fernanda Palma Vitor Nunes de Almeida Armindo Ribeiro Mendes Alberto Tavares da Costa José Manuel Cardoso da Costa