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Procº 813/95 ACÓRDÃO Nº 234/97
Acordam na 2ª Secção do Tribunal Constitucional:
I. Relatório:
1. A. impugnou contenciosamente, no Tribunal Administrativo do Círculo de Lisboa, o acto de indeferimento do pedido de aprovação do projecto de construção que pretendia levar a cabo em prédios seus, sitos em Cascais (na Rua ....., nºs ....., um; e na Rua ........., nº ...., outro) - acto praticado pelo VEREADOR DO PELOURO DO URBANISMO DA CÂMARA MUNICIPAL DE CASCAIS, em ... de ........ de 1991.
Não tendo tido êxito, interpôs recurso da sentença para o Supremo Tribunal Administrativo, que, por acórdão de 3 de Outubro de 1995, lhe negou provimento.
2. É deste acórdão (de 3 de Outubro de 1995) que vem interposto o presente recurso ao abrigo da alínea b) do nº 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional, para apreciação da 'inconstitucionalidade de todas as normas constantes do Plano de Urbanização da Costa do Sol, aprovado pelo Decreto-Lei nº 37.251, de 28 de Dezembro de 1948, e do respectivo regulamento, aprovado por despacho do Ministro das Obras Públicas, de 15 de Fevereiro de 1959, e alterado por despacho de 14 de Dezembro de 1962, dessa entidade, ambos não publicados, por violação dos artigos 2º, 122º/1/h) e 290º da CRP e dos princípios da confiança e segurança integrantes do princípio do Estado de Direito Democrático'.
Neste Tribunal, a recorrente formulou as seguintes conclusões:
1ª. O PUCS e respectivo regulamento, tal como todos os planos de urbanização e respectivos regulamentos, tem carácter normativo, assumindo a natureza de regulamento administrativo (v. Pareceres PGR, nº 71/93, de 94.01.14, DR, 2ª Série, de 94.09.13, p.p. 9587; nº 10/91, de 91.03.21, DR, II Série, de 92.07.28, pág. 6960; nº 47/69, de 70.01.15, BMJ 199/95 e segs.; Ac. STA de 87.02.05, BMJ
364/605; de 85.06.08, Proc. 18277)
2ª. À data da aprovação do PUCS e seu regulamento, o art. 81º/9 da Constituição, na redacção da Lei nº 1885, de 35.03.23, o art. 17º do DL 22470, de 33.04.11, os arts. 18º e 30º do DL 33921, o art. 6º da Lei 1909, de 22 de Maio de 1935, e o art. 9º/b) do DL 26762, de 9 de Junho de 1936, que não foram nem podiam ter sido revogados pelo DL 37251, de 48.12.28, exigiam a publicação daquele instrumento de planeamento urbanístico e do respectivo regulamento no jornal oficial, determinando a falta daquela publicação a sua inexistência ou, pelo menos, a sua total ineficácia ab initio:
3ª. O art. 122º da CRP estabelece, como condição de eficácia dos actos normativos emanados do Governo e dos seus membros, a sua publicação no jornal oficial, só podendo aqueles actos normativos produzir efeitos a partir do momento em que efectivamente sejam publicados (v. Acs. TC nº 37/94, Acs. do TC
(1984), 3º vol., p.p. 69 e segs; nº59/84, Acs. do TC (1984), 3ºvol., p. p.309 e segs; nº 60/84, Acs. do TC (1984), 3º vol., p.p. 317 e segs.; nº 80/84, Acs. do RT (1984), 4º vol., p.p. 217 e segs.).
4ª. Com a entrada em vigor da actual Constituição, o PUCS e o seu regulamento deixaram em absoluto de poder constituir um instrumento de planeamento urbanístico válido e eficaz, ex vi do art. 290º da CRP (art. 293º na sua versão originária), pois nunca tendo sido publicados, violam frontalmente o princípio constitucional da publicidade dos actos normativos, consagrado no art. 122º da CRP, devendo ser rejeitada a sua aplicação in casu (v. art. 207º da CRP);
5ª. A falta de publicação das normas dos PUCS e respectivo regulamento no jornal oficial obsta ao seu conhecimento pelos seus destinatários em geral, que assim ficam impedidos de prever as actuações que as entidades públicas poderão levar a efeito perante eles, não garantindo um mínimo de certeza e de segurança nos seus direitos e nas expectativas que lhes são juridicamente criadas (v. Ac. TC nº
365/91, DR, II Série, de 91.08.27; nº 303/90, DR, I Série, de 90.12.26, p.p.
5220; Ac. STA de 85.11.26, AD 299/1364);
6ª. A eventual publicidade das normas em causa através 'dos meios habituais de publicitação dos comandos normativos emanados dos entes autárquicos' (v. fls.
211 dos autos), sempre seria absolutamente irrelevante, pois, além de se não ter verificado (v. art. 348º do C. Civil), o PUCS e o seu regulamento foram aprovados por actos normativos emanados do Governo, pelo que a sua eficácia sempre dependeria da sua publicação no jornal oficial (v. arts. 81º/9 da Constituição de 1933 e art. 122º da CRP);
7ª. As normas dos PUCS e do seu regulamento, a terem alguma vez sido válidas e eficazes, caducaram com a entrada em vigor da actual Lei Fundamental, ex vi do art. 290º da CRP, pois sendo aplicadas sem que alguma vez tenham sido publicadas no jornal oficial, violam frontalmente os princípios constitucionais da segurança e da confiança, integrantes do princípio do Estado de Direito Democrático;
8ª O aliás douto acórdão recorrido violou assim frontalmente, além do mais, os arts. 2º, 9º/b), 122º e 290º da CRP, e os princípios constitucionais da publicidade dos actos normativos, da segurança, da confiança e do Estado de Direito Democrático.
Nestes termos, deve ser dado provimento ao presente recurso, declarando-se a inconstitucionalidade das normas do PUCS e do seu regulamento, com as legais consequências.
3. Corridos os vistos, cumpre decidir.
II. Fundamentos:
4. O objecto do recurso
O recurso da alínea b) do nº 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional pressupõe, entre o mais, que o recorrente tenha suscitado perante o tribunal recorrido a inconstitucionalidade de determinada norma jurídica, durante o processo, e que, não obstante essa acusação de ilegitimidade constitucional, aquele a tenha aplicado - ou seja: que a tenha utilizado como ratio decidendi do julgamento feito.
Ora, no caso, a recorrente, perante o Supremo Tribunal Administrativo, apenas suscitou a inconstitucionalidade das normas do Plano de Urbanização da Costa do Sol (PUCS), aprovado pelo Decreto-Lei nº 37.251, de 28 de Dezembro de 1948 - e não também as 'do respectivo regulamento, aprovado por despacho do Ministro das Obras Públicas, de 15 de Fevereiro de 1959, e alterado pelo despacho de 19 de Dezembro de 1962, dessa entidade' (cf. conclusões 13ª e
14ª das alegações apresentadas naquele Supremo Tribunal). E, por isso, o acórdão recorrido só decidiu a questão de constitucionalidade tendo por objecto as normas de tal Plano de Urbanização [cf. o que se escreveu no trecho B), sob a rubrica 'Quanto à ineficácia por falta de publicação do PUCS', fls. 209 a 212].
Assim sendo, objecto do recurso, são apenas as normas do dito Plano de Urbanização, e não também as do respectivo regulamento, aprovado
(e alterado) pelos referidos despachos.
Da constitucionalidade destas últimas normas não vai, pois, conhecer-se.
5. A questão da constitucionalidade das normas do PUCS:
5.1. Sustenta a recorrente que, por força do disposto no artigo 81º, nº 9, da Constituição de 1933 (na redacção da Lei nº 1885, de 23 de Março de 1935, em vigor à data da sua aprovação), o Plano de Urbanização da Costa do Sol devia ter sido publicado no jornal oficial e, não o tendo sido, é ele inexistente ou, pelo menos, ineficaz ab initio. E acrescenta que, como o artigo 122º da actual Constituição exige a publicação dos actos normativos no jornal oficial, com a sua entrada em vigor, o dito Plano - ex vi do disposto no artigo 290º da Constituição (correspondente ao artigo 293º na versão originária)
- deixou 'em absoluto de poder constituir um instrumento de planeamento urbanístico válido e eficaz'; e, se, acaso, alguma vez, foi válido e eficaz, caducou ele com a entrada em vigor da actual Lei Fundamental, pois que as suas normas, 'sendo aplicadas sem que alguma vez tenham sido publicadas no jornal oficial, violam frontalmente os princípios constitucionais da segurança e da confiança, integrantes do princípio do Estado de Direito Democrático', pois que a falta de publicação 'obsta ao seu conhecimento pelos seus destinatários em geral, que assim ficam impedidos de prever as actuações que as entidades públicas poderão levar a efeito perante eles'.
5.2. Antes de mais, há que dizer que a eventual desconformidade das normas do Plano de Urbanização com o artigo 81º, nº 9º, da Constituição de 1933 (recte, a falta de publicação das suas normas, suposto que ela era exigida por este preceito constitucional) não constitui uma questão de inconstitucionalidade de que este Tribunal possa conhecer (cf., neste sentido, o acórdão nº 266/92, publicado no Diário da República, II série, de 23 de Novembro de 1992). Acresce que o artigo 122º da Constituição da República - que exige a publicação no jornal oficial dos actos indicados nas alíneas a) a i) do seu nº 1 e de outros actos 'de conteúdo genérico dos órgãos de soberania, das regiões autónomas e do poder local'; e que, à falta dessa publicação, liga a consequência da ineficácia jurídica (cf. o nº 2 do mesmo artigo 122º) - não é parâmetro de aferição da validade constitucional das normas do referido Plano de Urbanização. E não o é, pela singela razão de que, sendo as normas deste Plano anteriores à Constituição de 1976, não pode a sua validade formal e orgânica ser ajuizada à luz dos preceitos deste texto constitucional.
O sentido do artigo 290º, nº 2, da Constituição - que dispõe que o direito ordinário anterior à entrada em vigor da Constituição mantém-se, desde que não seja contrário à Constituição ou aos princípios nela consignados (cf. artigo 293º, nº 1, na redacção original) - é o de que todo o direito ordinário anterior, vigente à data da entrada em vigor da Constituição, se mantém, desde que o seu conteúdo não seja materialmente compatível com as normas ou princípios da nova Constituição. E isso, independentemente da sua conformidade ou desconformidade com a ordem constitucional anterior e independentemente também da sua conformidade ou desconformidade com as novas normas constitucionais relativas à forma e à competência dos actos normativos.
Estas últimas normas (as normas da Constituição de 1976 relativas à forma e à competência dos actos normativos) apenas se aplicam para futuro (isto é, aos actos normativos produzidos no período de vigência da Constituição de 1976): cf., neste sentido, o acórdão nº 332/94 (Diário da República, II série, de 30 de Agosto de 1994); cf. também J.J. GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA (Constituição da República Portuguesa Anotada, 3ª edição, Coimbra, 1993, página 1073).
Assim, não faz nenhum sentido averiguar se, à luz do artigo 122º da Constituição da República, as normas do mencionado Plano de Urbanização deviam ou não ser publicadas no Diário da República para serem válidas e eficazes.
O artigo 122º, no que respeita aos actos normativos, é, com efeito, uma norma relativa à sua publicidade - ou seja: a um requisito formal (e, assim, relativo ainda à sua forma), que não à sua substância ou conteúdo. Por isso, não vale ele para o direito pré-constitucional.
Se, como acaba de ver-se, a questão não pode ser colocada em sede de constitucionalidade formal, já o pode ser em sede de constitucionalidade material, pois que o princípio do Estado de Direito
(consagrado no artigo 2º da Constituição) prevalece sobre o direito ordinário anterior que com ele seja incompatível (cf. o citado artigo 293º, nº 2, da Constituição).
Pergunta-se, então: as normas do referido Plano de Urbanização violarão, como pretende a recorrente, os princípios da segurança e da protecção da confiança, integrantes do princípio do Estado de Direito?
Do princípio do Estado de Direito, consagrado no artigo
2º da Constituição, decorre, com efeito, um direito dos cidadãos à 'protecção da confiança na previsibilidade do direito, como forma de orientação de vida' (cf. acórdão nº 330/90, publicado no Diário da República, II série, de 8 de Julho de
1991).
Os cidadãos têm direito a um mínimo de certeza e de segurança quanto aos direitos e expectativas que, legitimamente, forem criando no desenvolvimento das relações jurídicas.
Por isso - como se sublinhou no acórdão nº 365/91
(Diário da República, II série, de 27 de Agosto de 1991) - com base no princípio da protecção da confiança, pode afirmar-se que 'não é consentida uma normação tal que afecte, de forma inadmissível, intolerável, arbitrária ou desproporcionadamente onerosa, aqueles mínimos de segurança que as pessoas, a comunidade e o direito têm de respeitar'.
No presente caso, porém, o que - segundo a recorrente - afectou o que designa por 'mínimo de certeza e de segurança nos seus direitos e
[...] expectativas' não foi a disciplina introduzida pelas normas do referido Plano de Urbanização. Dizendo de outro modo: não foi uma alteração normativa desfavorável com que a recorrente não pudesse contar que veio afectar, 'de forma inadmissível, intolerável, arbitrária ou desproporcionadamente onerosa', os seus direitos e expectativas. O que, segundo a própria recorrente, lhe criou incerteza e insegurança foi a não publicação do referido Plano de Urbanização no jornal oficial. Isso é que terá feito com que, segundo diz, ficasse impedida 'de prever as actuações que as entidades públicas' vieram a levar a efeito, afectando os seus direitos.
A questão assim colocada tendo, embora, a ver com o princípio da protecção da confiança, com cuja afirmação se visa pôr em relevo um limite que - pese, embora a inexistência de uma proibição geral de retroactividade da lei - o poder de revisibilidade, próprio da função legislativa, não pode deixar de ter, tem que ser examinada, tendo em conta, desde logo, as circunstâncias temporais do diploma legal que aprovou o plano de urbanização. A questão respeita ao princípio da publicidade dos actos de conteúdo genérico dos órgãos de soberania, das regiões autónomas ou do poder local.
Este princípio - o princípio da publicidade - é, também ele, uma exigência material, e não apenas formal, do Estado de Direito: neste, os cidadãos têm, de facto, o direito de conhecer facilmente o ordenamento jurídico que regula a vida em sociedade.
Só que, neste caso, o Decreto-Lei nº 37.251, de 28 de Dezembro de 1948, que aprovou o Plano de Urbanização da Costa do Sol, foi publicado no Diário do Governo; e, na época, só a publicação do diploma legal de aprovação do plano, e não também a deste, era habitual.
Assim sendo, dado o tempo já decorrido e sabendo os interessados, pela publicação daquele decreto-lei, que o Plano tinha sido aprovado, não pode dizer-se que a confiança dos cidadãos na ordem jurídica tenha sido intoleravelmente afectada.
III. Decisão: Pelos fundamentos expostos, nega-se provimento ao recurso.
Lisboa, 12 de Março de 1997 Messias Bento Guilherme da Fonseca Bravo Serra José de Sousa e Brito Luís Nunes de Almeida