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Procº nº 392/96.
2ª Secção. Relator:- BRAVO SERRA.
I
1. Nos autos de inquérito pendentes pelo Tribunal de comarca de Vagos e à ordem dos quais o arguido A. se encontrava sujeito à medida de coacção de prisão preventiva determinada por despacho judicial de 19 de Abril de 1995 [por isso que se indiciava ter ele cometido um crime de burla agravada previsto e punível pelos artigos 313º, nº 1, e 314º, alínea c) - cometimento em co-autoria com um outro arguido, que desempenhava funções como presidente da Câmara Municipal de Vagos -, e um crime de corrupção activa, previsto e punível pelos artigos 423º, nº 1, e 437º, números 1, alínea c), e 2, este como os demais do Código Penal, na versão primitiva conferida pelo Decreto-Lei nº 400/82, de 23 de Setembro], o Ministério Público, a dado passo, solicitou ao Juiz o reexame dos pressupostos da decretada medida de coacção, sugerindo que tal medida se mantivesse.
Por despacho de 17 de Outubro de 1995, o Juiz do indicado Tribunal ordenou a soltura do arguido, sujeitando-o à medida de coacção de prestação de caução no montante de Esc. 5.000.000$00, porquanto, sendo a sua indiciada conduta punida, nos termos do artº 218º, nº 2, alínea a) do Código Penal, após as alterações introduzidas pelo Decreto-Lei nº 48/95, de 15 de Março, com uma pena cujo limite máximo era a de oito anos de prisão - e sendo que a tal arguido não poderia ser imposto o agravamento, decorrente do artº 5º da Lei nº 34/87, de 16 de Julho, já que se não tratava de um titular de cargo político -, não lhe era aplicável a regra constante do artº 209º do Código de Processo Penal.
Deste despacho recorreu o Ministério Público para o Tribunal da Relação de Coimbra, defendendo, inter alia, na motivação que apresentou, que ao arguido A. era, por via do nº 1 do artº 28º do Código Penal, comunicável a qualidade do seu co-arguido como presidente da Câmara Municipal de Vagos, pois que a ressalva estabelecida na parte final de tal disposição apenas se reportava aos 'chamados crimes de mão própria', razão pela qual se havia de considerar que a pena do imputado crime se deveria ter como passível da agravação cominada pelo artº 5º da Lei nº 34/87.
Na resposta à motivação, o arguido A., por entre o mais, sustentou que 'interpretar o citado artigo 5º ... no sentido de estender a agravação a quem não detiver a qualidade pessoal nela exigida - torna tal norma materialmente inconstitucional, por violação do disposto no artigo 29º, nº 1 da CRP'.
2. O Tribunal da Relação de Coimbra, por acórdão de 13 de Março de 1996, determinou a revogação do despacho impugnado e a sua substituição por outro que reapreciasse a situação do arguido, considerando a existência da comunicabilidade da ilicitude na comparticipação decorrente do artº 28º do Código Penal, e isso porque 'o regime cominado nos artigos 1, 2 e 5 da Lei 34/87' se não encontrava 'abrangido pela excepção consignada' da parte final do nº 1 daquele artº 28º, já que tal excepção se reportava aos 'crimes de mão própria', crimes que, como tal, não eram configurados os ilícitos previstos por aquela Lei.
É deste aresto que vem, pelo A., interposto o presente recurso, visando a apreciação das normas constantes dos 'artigos 1º, 2º e 5º da Lei nº 34/87, de 16/07 o artigo 28º do Código Penal, quando conjugados em termos
- que são os do acórdão recorrido - de possibilitarem a punição de cidadãos não titulares de cargos políticos assim se lhes imputando a co-autoria com pessoas passíveis de serem responsabilizáveis nos termos dos três primeiros preceitos citados'.
3. Na alegação que produziu, formulou o recorrente as seguintes conclusões:-
'(1) o artigo 28º do Código Penal consagra regime excepcional, ditado por razões pragmáticas de política criminal, sujeito embora à limitação de justiça da reserva de lei quanto à não extensão do sistema e da reserva judicial correctiva dos seus efeitos punitivos;
(2) tal regime implica que se propague e comunique em matérias de crimes próprios a ilicitude e a variação da mesma aos comparticipan- tes em sentido amplo - abrangendo também co-autores, autoria mediata e cúmplices - que não detenham as qualidades ou as relações especiais que fundamentam a ilicitude ou a graduam;
(3) a excepção prevista na parte final do nº 1 do artigo 28º do Código Penal está ditada por razões de tutela de valores constitucionais fundamentais de justiça e não se circunscreve aos chamados crimes de mão própria, antes a todos os casos em que o legislador haja dado indicações nos tipos incriminadores ou nos tipos dele complementa- res de que não desejou no caso tal comparticipação no ilícito próprio;
(4) analisando os artigos 1º, 2º, 5º, 7º a 27º da Lei nº 34/87 conclui-se que o legislador neles deixou claras indicações de que pretendia regular exclusivamente a responsabilidade criminal dos titulares de cargos políticos por actos praticados no exercício de funções, pontualmente se prevendo a responsabilidade de terceiras pessoas, mas sempre enunciando regime processual próprio para os políticos e sem que houvesse comunicação a não políticos da ilicitude ou variação da mesma referente aos políticos;
(5) o sistema do artigo 28º do Código Penal e a excepção nele prevista em favor da reserva de lei - e que normas especiais determinadoras da não extensão regulam - traduzem uma extensão subjectiva do tipo incriminador referente a crimes próprios a pessoas que não detêm as qualidades ou relações do sujeito activo por elas qualificado, o que o torna uma cláusula geral de extensão de incriminação sujeita à regra da legalidade incriminatória prevista no artigo 29º, nº 1 da Constituição;
(6) interpretar o artigo 28º, nº 1 parte final em termos de restringir a sua aplicação aos crimes de mão própria e interpretar todo o artigo
28º e as normas dos artigos 1º, 2º e 5º da Lei nº 34/87 em termos de poder haver extensão aos comparticipantes não titulares de cargos políticos do regime punitivo a estes aplicável, desrespeitando o facto de o legislador haver determinado o contrário, é estender a incriminação para além do consentido no artigo 29º, nº 1 da Constituição, no qual se enuncia a regra da tipicidade como um dos elementos do princípio da legalidade'
De seu lado, o Ex.mo Representante do Ministério Público junto deste Tribunal concluiu a sua alegação propugnando pelo não conhecimento do objecto do recurso, justamente com base na consideração de que aquilo que o recorrente, em verdade, questiona, é a interpretação, levada a cabo pelo acórdão impugnado, das normas constantes do artº 28º do Código Penal e dos artigos 1º,
2º e 5º, estes da Lei nº 34/87, e não, assim, a sua validade constitucional.
Notificado o recorrente da questão prévia deduzida pelo Ministério Público, veio ele unicamente dizer 'que o que está em causa é a declaração de inconstitucionalidade material das normas constantes dos artigos
1º, 2º, 5º da Lei nº 34/87, 16.07 e do artigo 28º do Código Penal, quando conjugados em termos de possibilitarem a extensão da punição a cidadãos não titulares de cargos políticos e não mera questão de interpretação dos preceitos em apreço'.
Cumpre decidir, impondo-se, desde logo, enfrentar a questão do não conhecimento do recurso suscitada pelo Ministério Público.
II
1. Do relato acima efectuado torna-se claro que o recorrente, antes da prolação do acórdão em censura, não obstante a posição defendida pelo Ministério Público na motivação que apresentou para a Relação de Coimbra relativamente à sua discordância com o despacho proferido pelo Juiz do Tribunal de comarca de Vagos, unicamente, no que ora releva, veio referir, de um lado, 'que o artº 5º da Lei nº 34/87 prevê uma agravante modificativa referente a crimes tipificados na lei penal geral e cometidos por titulares de cargos políticos' e, por outro, que interpretar tal artigo 'no sentido de estender a agravação a quem não detiver a qualidade pessoal nela exigida - torna tal norma materialmente inconstitucional, por violação do disposto no artigo 29º, nº 1 da CRP'.
Significa isto, pois, que o recorrente, antes de tirado o acórdão da Relação de Coimbra, somente veio questionar, do ponto de vista da sua conformidade constitucional, a norma que se contêm no citado artº 5º da Lei nº 34/87, e isto, repete-se, não obstante não ter sido essa a posição que, anteriormente a esse questionar, foi defendida nos autos pelo Ministério Público e que o levou a impugnar a decisão de 1ª instância, ou seja, a posição segundo a qual a excepção consagrada na parte final do nº 1 do artº 28º do Código Penal unicamente se reportava aos denominados «crimes de mão própria», pelo que não havia, no caso, que aplicar esta excepção, de onde a agravação estatuída naquele artº 5º relativamente às penas aplicáveis aos crimes previstos na lei penal geral cometidos pelos titulares de cargos políticos no exercício das suas funções dever ser comunicável ao arguido.
Só após o acórdão sub iudicio, é que o recorrente vem impugnar perante este Tribunal, uma interpretação incidente sobre o artº 28º, nº
1, do Código Penal.
E fá-lo defendendo, de uma banda, que as disposições constantes dos artigos 1º, 2º, 5º e 7º a 27º da Lei nº 34/87 foram, inquestionavelmente, gizadas pelo legislador como regulação exclusiva da responsabilidade criminal dos titulares de cargos políticos por actos praticados no exercício de funções, sendo que interpretação contrária seria um desrespeito
àquele legislador; e, de outra, que, em face dessas normas, se se interpretasse o nº 1 do artº 28º do Código Penal de tal sorte que o que toca à incriminação e
à agravação constante de tais normas havia de ser comunicável a quem não fosse titular de cargo político, isso corresponderia a uma interpretação inconstitucional deste último preceito tendo em vista o que se consagra no nº 1 do artigo 29º da Lei Fundamental.
2. Sendo assim, como é, então há que reconhecer que, in casu, se nos depara o seguinte circunstancionalismo:-
- antes do aresto sub specie, o recorrente nunca questionou, do ponto de vista da sua compatibilidade constitucional, a norma do nº 1 do artº 28º do Código Penal, maxime, a excepção constante da sua parte final, pelo menos ao ser tal excepção interpretada como se referindo unicamente aos designados «crimes de mão própria», antes tendo sustentado que, de harmonia com aquela norma, nunca a agravação 'modificativa referente a crimes tipificados na lei penal geral e cometidos por titulares de cargos políticos' se podia, 'nos termos do artigo 28º do Código Penal de 1982', 'propagar ou estender a comparticipantes' que não detivessem 'essa qualidade pessoal de titular de cargo político';
- sempre defendeu, antes e após a prolação do aludido aresto, que a normação constante da Lei nº 34/87, designadamente o seu artº 5º, não podiam comportar uma interpretação que a levasse a estender a incriminação ou a agravação aos arguidos que não fossem titulares de cargos políticos, sob pena de, a fazer-se interpretação contrária, se desrespeitar 'o facto de o legislador haver determinado o contrário';
- era do seu conhecimento que o Ministério Público defendia que a ressalva da parte final do nº 1 do mencionado artº 28º dizia respeito unicamente aos «delitos de mão própria», tese que, afinal, veio a ser acolhida pela Relação de Coimbra e, apesar desse conhecimento, nunca veio equacionar a questão da inconstitucionalidade normativa que decorreria da defesa de um entendimento tal como o seguido pelo representante da magistratura à qual incumbe o exercício da acção penal.
3. Perante a corte de circunstâncias sumulada no ponto anterior, há que concluir, desde logo, que, situando-nos, como nos situamos, perante um recurso fundado na alínea b) do nº 1 do artº 70º da Lei nº 28/82, de
15 de Novembro - forma de impugnação para a qual é exigido, por entre outros requisitos, o ónus de suscitação da questão de inconstitucionalidade tocantemente à norma cuja apreciação se intenta vir a ser levada a efeito por este Tribunal - então nunca seria possível a este órgão de fiscalização concentrada da constitucionalidade normativa debruçar-se sobre as normas ínsitas nos artigos 1º e 2º da Lei nº 34/87 e 28º, nº 1, do Código Penal.
E isto pela simples razão de, concernentemente a estes normativos, ou a uma dada forma de interpretação dos mesmos, nunca ter o recorrente colocado qualquer suspeita de conflito com as normas ou princípios decorrentes do Diploma Básico.
Logo por aqui havia, indubitavelmente, que rejeitar o recurso no que aos ditos normativos diz respeito ou, pelo menos, se porventura houvesse, no caso, de conhecer de qualquer outro [o que pressuporia que em relação a ele se verificava a ocorrência de todos os requisitos condicionadores do recurso previsto na citada alínea b) do nº 1 do artº 70º], de delimitar o respectivo âmbito por forma a dele excluir os indicados artigos 1º e 2º da Lei nº 34/87 e 28º, nº 1, do Código Penal.
3.1. Resta-nos, assim, o artº 5º da Lei nº 34/87.
Mas será que, quanto a ele, é possível conhecer do mérito?
Adianta-se desde já que não.
Efectivamente, a norma constante daquele preceito, estatui:-
Artigo 5.º
Agravação especial
A pena aplicável aos crimes previstos na lei penal que tenham sido cometidos por titular de cargo político no exercício das suas funções e qualificados como crimes de responsabilidade nos termos da presente lei será agravada de um quarto dos seus limites mínimo e máximo.
Ora, em face da letra do preceito, e talqualmente refere o Ex.mo Procurador-Geral Adjunto em exercício junto deste Tribunal, poder-se-á concluir pela «inoquidade» da sua prescrição quanto à questão de saber se a pena em abstracto a impôr a alguém que, não sendo titular de um cargo político, pratica, em conjunto com alguém que é titular daquele cargo, factos qualificáveis como crime pela lei penal e que, nos termos da Lei nº 34/87, também são qualificados como delitos criminais de responsabilidade, é susceptível de sofrer a agravação especial ali cominada.
Significa isto que não é por via de tal preceito que se há-de dar resposta à indicada questão. Essa resposta, segundo a decisão ora pretendida impugnar, há-de ser ancorada no nº 1 do artº 28º do Código Penal, que
é, enfim, a norma que giza as regras da ilicitude na comparticipação (definindo uma regra geral - primeira parte - e uma excepção a ela - parte final - ).
Por outras palavras: no vertente caso, foi o preceituado no nº 1 daquele artº 28º - e foi com base nisso que o Ministério Público impugnou o despacho do Juiz da 1ª instância, posição que foi acolhida pela Relação de Coimbra - que levou à consideração de que a pena a impôr em abstracto aos crimes (previstos na lei penal geral) cujo cometimento se indiciava ser de imputar ao arguido, ora recorrente, haveria de sofrer a agravação do artº 5º da Lei nº 34/87, e não o comando que directamente se extrai deste preceito, já que, na óptica daquele Tribunal de 2ª instância (que, no ponto, repete-se, mais não fez do que acolher a mesma perspectiva do Ministério Público recorrente do despacho do Juiz do Tribunal de comarca de Vagos), a excepção da parte final do citado nº 1 do artº 28º se reporta, e só, aos denominados «crimes de mão própria».
Esta, pois, a razão jurídica ou, se se quiser, o suporte normativo do decidido.
Simplesmente, e não obstante ter tido ampla oportunidade processual para tanto, o recorrente, antes do acórdão de 13 de Março de 1996, não questionou a validade constitucional de uma tal postura interpretativa, que era a seguida pelo então impugnante do despacho proferido em 1ª instância, isto
é, o Ministério Público.
Vale isto por dizer que, no caso, a norma suporte da decisão agora pretendida pôr sob censura (ou, mais rigorosamente, uma dada forma da respectiva interpretação) não foi, no que respeita à sua desconformidade constitucional, posta em causa por parte de quem, posteriormente àquela decisão, a intentou impugnar estribado na alínea b) do nº 1 do artº 70º da Lei nº 28/82.
Por último, sempre se dirá que, verdadeiramente, o recorrente, na alegação que formulou no Tribunal Constitucional (e ainda que, por mera hipótese de raciocínio, pudesse este órgão jurisdicional atender e, por isso, conhecer, da globalidade das normas da Lei nº 34/87 nessa peça processual arguidas de inconstitucionalidade - o que já vimos não ser possível -) não pôs em causa a validade das mesmas em face da Lei Fundamental. A atestá-lo está a mera circunstância de, como se disse já, ter referido que a possibilidade da sua
'extensão aos comparticipantes não titulares de cargos políticos do regime punitivo a estes aplicável' configurar um desrespeito do determinado pelo legislador.
Essa posição demonstra, de um lado, que o recorrente reconhece que aquelas normas, em si, não contêm vício constitucional, porquanto o que o legislador quis foi estabelecer incriminação e agravação punitiva somente em relação aos titulares de cargos políticos que, no exercício das suas funções, praticaram actos subsumíveis a crimes previstos na lei penal geral, pelo que interpretação ou, mais precisamente, aplicação contrária a um tal entendimento traduziria erro de interpretação no ponto em que se «desrespeitou» a vontade do legislador.
Ora, sendo assim, o que mais se poderia dizer é que, então, se não postava aqui qualquer problema de inconstitucionalidade, ou seja
(e para utilizar as palavras do Acórdão nº 2/96), um 'problema de determinação dos conteúdos constitucionalmente possíveis' daquelas normas, mas sim uma questão de impugnação da lógica interna do mérito da interpretação que levou a Relação de Coimbra a decidir do modo como decidiu.
Por outro lado, demostra também que, em verdade, a ter sido descortinado pelo recorrente qualquer vício, residiria ele na interpretação da excepção consignada na parte final do nº 1 do artº 28º do Código Penal, o que, como vimos, não pode, porque só colocada essa questão após a prolação do aresto em crise, abrir a via do recurso de constitucionalidade previsto na já por várias vezes mencionada alínea b) do nº 1 do artº 70º da Lei nº 28/82.
III
Termos em que se não toma conhecimento do recurso, condenando-se o impugnante nas custas processuais, fixando a taxa de justiça em cinco unidades de conta. Lisboa, 18 de Março de 1997 Bravo Serra José de Sousa e Brito Messias Bento Guilherme da Fonseca Luís Nunes de Almeida