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Proc. nº 363/97 TC ? 1ª Secção Rel. : Consº Artur Maurício
Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional:
1 - A..., com os sinais dos autos, recorre para este Tribunal do acórdão do STJ que, em acção de investigação de paternidade movida pelo Ministério Público e em que figura como réu, negou provimento ao recurso interposto do acórdão da Relação de Lisboa de fls. 236.
O recurso vem interposto ao abrigo da alínea b) do nº 1 do artigo
70º da LTC, pretendendo o recorrente que seja apreciada a alegada inconstitucionalidade das seguintes normas:
- artigos 203º nº 1 e 2, 204º, 205º, 206º nºs 1 e 2 da Organização Tutelar de Menores (OTM).
- artigo 519º nºs 1 e 2 do CPC, na sua anterior redacção.
- artigo 1801º do Código Civil. Nas suas alegações formula as seguintes conclusões:
'1. Deve ser declarada a inconstitucionalidade das normas constantes dos artºs 203º, nºs 1 e 2, 204º, 205º e 206º, nºs 1 e 2 da OTM (Dec. Lei nº
314/78, de 27 de Outubro) por violação dos artºs 20º, nºs 1 e 2 e 13º, conjugados com os artºs 17º e 18º, nºs 1, 2 e 3 da Constituição da República Portuguesa.
2. Deve ser declarado inconstitucional o entendimento perfilhado nas decisões recorridas da valoração negativa para efeitos probatórios da recusa da realização de exames de sangue, quer no processo de averiguação oficiosa, quer na subsequente acção de investigação de paternidade, já que a interpretação e aplicação que ali se faz das normas constantes do artº 519º nºs 1 e 2 do C.P.C. conjugado com o disposto no artº 1801º do C.C. padece de inconstitucionalidade material, por violar o direito de resistência conferido pelo artº 21º da Lei Fundamental exercido que foi em defesa dos direitos constitucionais igualmente violados pela citada interpretação , a saber, o direito de acesso à integridade física e moral, de reserva da esfera pessoal íntima e, em ultimo lugar, de acesso ao direito, nos termos e pelos fundamentos atrás expostos (artºs 20º,
25º, nº 1 da CRP).
Termos em que deve ser dado provimento ao presente recurso, declarando-se a inconstitucionalidade material das referidas normas, bem assim como do entendimento jurídico que das mesmas foi feito, com todas as legais consequências'.
Em contra-alegações o Ministério Público conclui:
'1º - A restrição ao contraditório, traduzida em não se admitir, no
âmbito do processo tutelar cível de averiguação oficiosa da paternidade, a intervenção como parte do pretenso pai, nomeadamente para o efeito de a este se reconhecer o direito de impugnação do despacho de viabilidade proferido (artigo
206º da OTM) é plenamente adequada à natureza e função de tal procedimento, que não visa a composição de um litígio mediante aplicação do direito a um caso concreto, mas a simples emissão de um juízo prudencial, preliminar à propositura de uma acção de estado, em que as partes gozarão plenamente dos direitos e garantias processuais.
2º - Na verdade, e apesar da restrição ao contraditório, o interesse do réu em não ser demandado em acção manifestamente infundada é aqui tutelado de forma substancialmente mais intensa do que em qualquer outra causa de natureza cível, em que vigora plenamente a admissibilidade de 'citação directa' dos demandados, bastando que o autor alegue, de forma minimamente concludente, os fundamentos da sua pretensão.
3º - Não é inconstitucional a interpretação das normas contidas nos artigos 519º do Código de Processo Civil e 1801º do Código Civil, em termos de caber no âmbito do dever de cooperação na administração da justiça a realização dos exames de sangue adequados e essenciais à verificação da existência do vínculo biológico de filiação, cabendo ao tribunal, em casos de recusa infundada
? e não sendo possível a realização forçada do exame - valorá-la livremente em termos probatórios.
4º - Termos em que deverá ser julgado improcedente o recurso'. Nas suas contra-alegações, o Ministério Público expressa ainda o seu entendimento sobre a delimitação do objecto do recurso que se deveria circunscrever às normas constantes dos artigos 203º nº 2 e 206º da OTM, 519º do CPC e 1801º do CC; isto porque nas alegações que o recorrente produzira no
âmbito do recurso de revista só, dessas normas ele curara.
Sustentou ainda que a norma do artigo 203º nº 2 da OTM, que impede a intervenção de mandatários judiciais na averiguação oficiosa de paternidade, não foi aplicada pelo acórdão recorrido, uma vez que, neste, remetendo-se para um outro acórdão do STJ, proferido na revista nº 81/97, se diz não ter sido solicitada e recusada, no caso, a intervenção de mandatário judicial. Corridos os vistos legais, cumpre decidir.
2 - Importa, em primeiro lugar, delimitar o objecto do recurso. Como se deixou relatado, o recorrente pretende que o Tribunal aprecie a invocada inconstitucionalidade dos artigos 203º nºs 1 e 2, 204º, 205º e 206º nºs 1 e 2 da OTM, complexo normativo que regula a averiguação oficiosa de paternidade, na sua quase totalidade. Das alegações apresentadas pelo recorrente, no recurso interposto para o STJ de que resultou o acórdão ora impugnado, conclui-se, porém, que só foi suscitada a inconstitucionalidade das normas processuais contidas nos artigos 203º nº 2 e
206º da OTM (1.6 das Conclusões), não devendo ser considerada a também aí alegada inconstitucionalidade da ?averiguação oficiosa? por não ser 'forma idónea' de suscitação da questão em termos de permitir o seu conhecimento pelo tribunal. E será que o tribunal 'a quo' fez aplicação do artigo 203º nº 2 da OTM' A resposta é negativa. A norma - disse-se já - impede a intervenção de mandatários judiciais no processo. Ora, em trecho algum do acórdão recorrido se faz aplicação, explícita ou implícita, dessa norma. Na verdade, colocado perante a questão, o STJ, no acórdão recorrido, acentuando que lhe não competia a 'análise abstracta' da conformidade constitucional dos artigos 203º nº 2 e 206º da OTM, entendeu que no caso se não fizera funcionar em concreto, contra os interesses do recorrente, os dispositivos citados, pois os autos não revelavam que tivesse sido solicitada e recusada a intervenção de mandatário judicial. Fica, pois, claro que o acórdão recorrido não aplicou a norma constante do artigo 203º nº 2 da OTM. E não acontecerá o mesmo com a norma ínsita no artigo 206º da OTM, no ponto em que o acórdão recorrido a engloba, expressamente, naquele entendimento? Afigura-se que não.
É que o extracto da revista nº 81/97 para que remete o acórdão recorrido, e em que fundamenta a sua decisão, respeita apenas à intervenção do mandatário judicial na averiguação oficiosa e não à irrecorribilidade do despacho de viabilidade. E talvez por isso embora antecedido da frase 'De qualquer modo, afigura-se conveniente deixar feitos alguns esclarecimentos sobre a matéria(...)', - o que inculca a formulação de meras considerações adicionais -, o mesmo acórdão passa a apreciar 'expressis verbis' aquela questão, concluindo pela conformidade constitucional do artigo 206º da OTM; nesta medida, ele faz, pois, aplicação do preceito.
3 - O artigo 206º da OTM dispõe sobre o recurso da decisão final proferida no termo dos processos de averiguação oficiosa de maternidade ou paternidade ou para impugnação desta, regulados nos artigos 202º a 207º daquele diploma. Nos termos de tal preceito, em todos esses processos, o recurso restringe-se à matéria de direito (nº1) e só pode ser interposto pelo Ministério Público ou pelo impugnante nos processos de averiguação para impugnação de paternidade (nº
2). Interessa, no caso, apenas a norma que impede o presumido pai, em averiguação oficiosa de paternidade, de recorrer do referido despacho. O processo em causa inicia-se com a autuação da certidão de registo de nascimento do menor apenas com a maternidade estabelecida, certidão essa obrigatoriamente remetida ao tribunal pelo funcionário que lavrou o registo. Procede-se, então, à instrução do processo, a cargo do Ministério Público, tendente a averiguar a paternidade do menor. Conhecida pelo tribunal, através de declarações da mãe do menor ou de outros meios, a identidade do pretenso progenitor, será ele ouvido. Se for negada ou recusada a confirmação da paternidade, o Ministério Público procede a diligências probatórias, em instrução secreta, ' conduzida por forma a evitar ofensa ao pudor ou dignidade das pessoas'; as declarações prestadas no processo não implicam presunção de paternidade. Finda a instrução, o Ministério Público elabora parecer sobre a viabilidade da acção de investigação de paternidade; ao juiz compete proferir despacho final, ordenando o arquivamento do processo ou a sua remessa ao magistrado do Ministério Público junto do tribunal competente para que seja proposta a acção de investigação. Os traços essenciais do processo de averiguação oficiosa que se deixam enunciados resultam do disposto nos artigos 202º a 206º da OTM, 1811º a 1813º,
1864º, 1865º e 1868º do Código Civil. Deles claramente se colhe que se trata de um processo de carácter administrativo ou pré-judicial desenvolvido numa lógica inquisitorial, carácter esse que se ajusta à finalidade última do mesmo processo: habilitar o Ministério Público a intentar acção de investigação de paternidade viável. Joga-se aqui, fundamentalmente, um interesse público, ou colectivo, que legitima a intervenção do Ministério Público. A intervenção judicial no processo, mediante o despacho final (de arquivamento ou remessa ao Ministério Público para propositura da acção), visa, por seu turno, garantir que não sejam intentadas acções temerárias, tanto mais de evitar quanto o Ministério Público, em representação do Estado, prossegue aquele tipo de interesse, e elas põem em causa, em maior ou menor grau, o pudor ou a dignidade dos intervenientes directos.
É, aliás, o melindre dos factos que nestas acções, quase inevitavelmente, se controvertem, que parece justificar a excepção - que constitui a averiguação oficiosa como procedimento prévio à acção de investigação - ao regime normal de
'citação directa' em processo civil, como bem adverte o Ministério Público nas suas alegações. Impor-se-ia, neste contexto, que o legislador ordinário facultasse ao pretenso progenitor direito ao recurso do despacho de viabilidade, sob pena de infracção ao disposto no artigo 20º nº 1 da CRP enquanto a todos assegura o direito de acesso aos tribunais para defesa dos seus direitos e interesses legítimos? Uma decisiva razão postula uma resposta negativa a esta questão: com o despacho jurisdicional de viabilidade da acção não são ofendidos os direitos e interesse legítimos do pretenso progenitor. Na verdade, esse despacho apenas habilita o Ministério Público a intentar acção de investigação de paternidade, não sendo, a todas as luzes, de reconhecer, a quem quer que seja, um direito ou interesse legítimo em não ser civilmente demandado. Não se vislumbraria, aliás, qualquer inconstitucionalidade, se o legislador ordinário, à semelhança do que acontece na generalidade das acções, não tivesse previsto o referido procedimento preliminar, competindo ao Ministério Público - e a ele só - formar, com inteira autonomia, a sua decisão, no sentido de propor, ou não, a acção de investigação. A averiguação oficiosa não deixa, assim, de representar um robustecimento das garantias de defesa do pretenso progenitor, garantias estas cuja tutela apenas se impõe, constitucionalmente, na acção de investigação de paternidade a intentar e em que aquele figura como parte. Mas, consagrando o artigo 206º nº 2 da OTM a legitimidade do Ministério Público para recorrer, não exigirá o artigo 13º da CRP que igual legitimidade seja conferida ao pretenso progenitor? Não bastará acentuar que o pretenso progenitor não é parte na averiguação oficiosa para fundamentar um juizo de não inconstitucionalidade da norma. Mas já é suficiente, na perspectiva do tratamento igualitário que o princípio constitucional impõe, o reconhecimento de que a diferença é materialmente fundada. Com efeito, ela decorre de uma distinção objectiva de situações, no ponto em que, para o Ministério Público, o despacho de arquivamento obsta à propositura da acção de investigação, cerceando assim um poder que a lei lhe confere, enquanto que, para o pretenso progenitor, o despacho de viabilidade não lesa ou afecta a sua esfera jurídica. A diferenciação em que se traduz a previsão de legitimidade do Ministério Público para o recurso, em contrário do que acontece com o pretenso progenitor, constitui, assim, uma medida necessária e adequada à satisfação do seu objectivo. Em suma, também nesta perspectiva, não enferma de inconstitucionalidade material o artigo 206º nº 2 da OTM.
4 - A segunda questão de constitucionalidade, que cumpre apreciar, reporta-se aos artigos 519º do CPC e 1801º do Código Civil. Segundo o recorrente, a exigência da realização de exame de sangue nos termos do artigo 1801º do Código Civil viola o artigo 25º da CRP (direito à integridade pessoal), pelo que o dever de colaboração das partes para a descoberta da verdade, imposto pelo artigo 519º do CPC, não integra o de sujeição àquele exame. Vejamos se é assim. Consagra o artigo 25º da CRP o direito à integridade pessoal, prescrevendo o nº
1 a inviolabilidade da integridade moral e física das pessoas e o nº 2 a proibição da tortura, tratos ou penas cruéis, degradantes ou desumanos. Trata-se, no ensinamento de Peces Barba ('Derechos fundamentales', p. 98), de um
'direito pessoalíssimo', um direito da pessoa, em si mesma, isto é com independência, sempre relativa, dos grupos sociais a que ela pertença (cfr. Ruiz Gimenez, 'El Concílio y los derechos del hombre', p. 108) e que respeita a um bem inerente à dignidade humana individual. Na vertente da integridade física - a que agora está em causa - o direito à integridade pessoal traduz-se no direito de não sofrer ofensas corporais. Sabido que as ofensas corporais se podem revestir de gravidade muito diversa, admite-se que se questione, desde logo, se o direito consagrado na CRP abriga o seu titular de todas as ofensas, qualquer que seja a sua gravidade, tendo em conta a natureza, particularmente gravosa, das que o nº 2 do mesmo artigo 25º enuncia. Parece, no entanto, inequívoco que este nº 2 apenas se limita a concretizar alguns casos especialmente reprováveis de ofensa à integridade física e moral, não esgotando, nem de longe nem de perto, as situações que, por força do nº 1 se devem julgar constitucionalmente censuradas. Vem isto ao caso, pela circunstância de a situação em causa se traduzir num mero exame de sangue (análise), ou seja aquilo que, nos dias de hoje, se pode considerar, na linguagem da Decisão de 4/12/78 da Comissão Europeia dos Direitos do Homem (in 'Decisions et Rapports' nº 16, p. 185), uma 'intervenção banal'. Aceita-se, contudo, na linha daquela 'Decisão', que o 'exame de sangue', contra a vontade do examinado, possa constituir, nos limites da protecção constitucional, uma ofensa à integridade física da pessoa. Mas o que o preceito constitucional veda é que, sem o consentimento do
'ofendido', se imponha coactivamente, à força, a intervenção no corpo da pessoa
- e não é, manifestamente, o caso. Na verdade, o artigo 1801º do Código Civil limita-se a prever, como meio probatório, nas acções de investigação, o exame de sangue, não prescrevendo nem legitimando o uso da força para a sua execução, em caso de recusa - só com o consentimento do R. o exame de sangue se efectua. Objectar-se-á, no entanto, que, não sendo embora imposto o exame de sangue, se a sua recusa for qualificada - como foi - violação do dever de colaboração das partes na averiguação da verdade, com os efeitos decorrentes da segunda parte do nº 2 do artigo 519º do CPC, isso constrangerá o R. com tal intensidade que o artigo 25º nº 1 da CRP resulta, mesmo assim, infringido. Mas sem razão. Antes do mais, porque a referida segunda parte do nº 2 do artigo 519º do CPC não vincula o tribunal a qualquer tipo de julgamento em matéria de prova, antes, remetendo para a livre convicção do julgador o valor da recusa para efeitos probatórios.
É certo que, no caso, o tribunal deu como provados determinados factos alegados pelo Ministério Público, fundamentando o seu julgamento na recusa do R. em se sujeitar ao exame de sangue. Fê-lo, no entanto, não só em conjugação com outros elementos probatórios, como também pelo facto de a recusa do R. não ter sido justificada, já que a razão então apresentada ( note-se que, só nas alegações para o STJ, o R. ora recorrente apelou para a ofensa à sua integridade física) assentara exclusivamente na invocação de uma pretensa extemporaneidade do requerimento do Ministério Público que se julgou improcedente. Por outro lado, mesmo pressupondo aquele constrangimento, dos citados normativos do Código Civil e do CPC sempre resultaria um adequado equilíbrio, constitucionalmente admissível, na tutela dos direitos em presença.
É notório o valor probatório, em acções de investigação de paternidade, dos exames de sangue, cujos resultados - saliente-se - tanto podem ser favoráveis ao A. como ao R. pretenso progenitor. Presente no caso o direito do R. à sua integridade física, não deixa de estar igualmente em causa, naquelas acções, um outro direito fundamental - o direito do menor à identidade pessoal, consagrado no artigo 26º nº 1 da CRP. No ensinamento de Gomes Canotilho e Vital Moreira, o sentido deste último direito 'é o de garantir aquilo que identifica cada pessoa como indivíduo, singular e irredutível (abrangendo) seguramente, além do direito ao nome, um direito à 'historicidade pessoal' ('Constituição da República Anotada', anotação II ao artigo 26º). E mais adiante dizem os mesmos autores:
'O direito à historicidade pessoal designa o direito ao conhecimento da identidade dos progenitores, podendo fundamentar um direito à investigação da paternidade ou da maternidade'. E nem se diga que, sendo a acção intentada pelo Ministério Público, precedida de averiguação oficiosa, esse direito não releva, pois o que aquela traduz, relativamente às demais é, ainda, a presença de um interesse colectivo no mesmo sentido, que justifica a intervenção do Ministério Público, em representação do Estado. Ora, neste confronto de direitos e interesse, a normação ordinária pertinente não se afiguraria arbitrária ou gratuita se se entendesse limitado o direito do R. à sua integridade física, tendo muito especialmente em conta, por um lado, o objectivo da norma que admitiu o exame de sangue como meio probatório na acção de investigação de paternidade e os efeitos, em sede probatória, da recusa em efectuá-lo e, por outro, o grau mínimo de ofensa corporal em que se traduz esse mesmo exame. Violado não é, assim, o artigo 25º da CRP pelos artigos 1801º do Código Civil e
519º nº 2 da CPC.
5 - Decisão:
Pelo exposto e em conclusão, decide-se negar provimento ao recurso.
Lisboa, 21 de Outubro de 1998 Artur Mauricio Vitor Nunes de Almeida Luis Nunes de Almeida José Manuel Cardoso da Costa