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Procº nº 798/97 ACÓRDÃO N.º
617/98
1ª Secção Consº VITOR NUNES DE ALMEIDA
Acordam, na 1ª secção do Tribunal Constitucional:
I - RELATÓRIO:
1. – J..., intentou pelo Tribunal cível da Comarca de Lisboa, uma acção declarativa com processo comum na forma sumária contra ' S..., COMPANHIA DE SEGUROS, S.A.' pedindo a sua condenação no pagamento de diversa quantias em virtude de acidente de viação referenciado nos autos.
Por sentença de 17 de Março de 1995, o Tribunal julgou a acção improcedente logo no saneador, absolvendo a Ré dos pedidos formulados.
O Autor interpôs recurso desta decisão para o Tribunal da Relação de Lisboa que, por acórdão de 16 de Janeiro de 1996, julgou procedente o recurso, revogando a decisão recorrida e anulando todo o processado a partir do despacho saneador, para se elaborar a especificação e questionário e ulteriores termos processuais.
Cumprido o assim decidido, após julgamento, veio a proferir-se nova decisão que, de novo, julgou a acção inteiramente improcedente.
Inconformado com tal decisão, o Autor recorreu para a Relação que, por acórdão de 30 de Outubro de 1997, decidiu negar provimento ao recurso confirmando a decisão recorrida.
É desta decisão que vem interposto o presente recurso de constitucionalidade por J..., ao abrigo do preceituado na alínea b), do nº1, do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional (Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, alterada pela Lei nº 85/89, de 7 de Setembro), para apreciação da seguinte matéria: '(…)suscitou a inconstitucionalidade nomeadamente na conclusão 22ª, das alegações de recurso da sentença, de uma norma que identificou, referindo-se à interpretação dada pelas instâncias recorridas a preceito do C. da Estrada, suscitou ainda a inconstitucionalidade da aplicação das normas dos artºs 490º e
559º,nº3 do C.P.C. referindo-se à interpretação dada pela 1ª Instância, no despacho sentença e na organização da especificação e questionário, a esses preceitos , o que fez na alegações de recurso do despacho sentença proferido por ocasião do saneador, como se pode ver na conclusão 5ª'.
Convidado para esclarecer qual a interpretação em causa, o Autor e recorrente veio prestar o seguinte esclarecimento: 'a interpretação dada pela primeira instância e pela Relação à alínea v) do nº1 e do nº2 do artº
3º do Regulamento do Código da Estrada foi, sem excepções, a de que 'o condutor deve dar passagem a todos e quaisquer veículos que transitem na via que se aproxima (sinal 23)', isto é, uma interpretação literal que abstrai do disposto no nº1 do citado artº 3º do regulamento do Código da Estrada à data em vigor, e até do disposto no início da alínea v) - 'Estrada com prioridade' - e do conceito legal de prioridade'.
2. - O recorrente apresentou neste Tribunal as pertinentes alegações e aí formulou as seguintes conclusões:
'1º
O artigo 490º, nº1 do CPC na parte que se refere à tomada de posição definida e aos factos que não foram impugnados especificadamente contém uma norma, a que o julgador deve obediência, no sentido de avaliar se a contestação oferece iguais probabilidades de ser tomada em consideração como pressuposto da decisão sobre matéria de facto, norma essa que não foi a extraída pela decisão recorrida; norma essa que toma por base, sobretudo, a interpretação das expressões acima referidas destacadas em 'bold'.
2º O artº 490º nº2 do CPC, na sequência do nº1, e em obediência ao mesmo princípio de igualdade e ainda ao da legalidade, refere-se aos factos pessoais ou não pessoais e aos factos de que a parte deve ou não ter conhecimento; devendo entender-se, no caso dos autos, que a Ré deve dos factos ter conhecimento por lhe ter sido dada na lei a faculdade de obter da segurada as informações que necessite; ou a faculdade de chamá-la à demanda; neste último caso o que não foi feito.
3º
O artº 490º nº3 do CPC impede a contestação por negação; e, por isso o artº 490º nº5 ao admitir a simples menção dos números da petição inicial em que se narram os factos, implica o ónus de se negar em cada caso com referência a esses números.
4º
Mas o disposto no artº 490º nº1 e 2 ao referir-se à posição definida entendida de acordo com o Princípio Constitucional da Igualdade, implica que não se possa negar pura e simplesmente quando a negação implique o oferecimento de uma alternativa com iguais probabilidades de ser reconstituída e tomada em consideração como pressuposto da decisão sobre matéria de facto.
5º
Assim seria uma alternativa credível negar pura e simplesmente o embate.
6º
Mas a reconhecer a verdade do embate haveria que oferecer uma alternativa, o que não foi feito, acerca de como, de que modo então, o acidente ocorreu. Porém,
7º
O que foi feito foi reconhecer uma parte do alegado pelo A. para a partir daí se concluir que isso era a prova de uma outra versão que acaba por se confessar foi concluída daí (fls. 173, fls.194 e fls. 199).
8º
Ao tê-la em consideração, para obrigar o A. a fazer a prova da sua, aplicou-se a norma que colocou as partes em desigualdades de circunstâncias, e que privilegiou a Ré por com tal norma lhe ter sido permitido nada 'impugnar', e com a dispensa desse ónus ter obrigado o A. com o ónus da prova no âmbito da fase instrutória, e da fase de audiência de julgamento.
9º
O mesmo se passa com a interpretação do artº 3º nº1 e 2 al. v) do Regulamento do Código da Estrada.
10º
Que é interpretado, sem obediência ao Princípio da Igualdade, como se explicou.
11º
Pois não tem em conta o conceito legal de 'prioridade', nem o disposto no nº1 do artigo 3º.
12º
Tê-los em conta implicava interpretar o disposto no nº1 como tendo em vista as situações normais de fluição de trânsito e não aquelas como a sub-judice em que o trânsito está condicionado pela existência de outro acidente na via em que segue o pesado, e se desloca a parar e a arrancar, isto é, em situação de igualdade para ambos os veículos, e o embate se dá quando estes se encontram na mesma via como resulta do que vem reconhecido como verdadeiro ao reconhecer-se como exacto o esboço de autoria das entidades policiais e as medições dele constantes; implicava ainda conjugar o nº1 do artº 3º do Regulamento do Código da Estrada com o DL 45299, de 4/10/1963, onde se prevêem os cuidados a ter perante um obstáculo como o que decorreu da existência de um outro acidente.'
A seguradora recorrida não alegou.
Corridos os vistos legais, cumpre apreciar.
II - FUNDAMENTOS:
3. - No requerimento de interposição do recurso, o recorrente pretende que o tribunal aprecie duas questões de constitucionalidade: por um lado, a inconstitucionalidade suscitada na conclusão 22ª das suas alegações para a Relação, relativamente à interpretação da norma do Regulamento do Código da Estrada ali referida e, por outro lado, a inconstitucionalidade da aplicação dos artigos 490º e 559º do Código de Processo Civil(adiante, CPC), quanto à forma de organização da especificação e do questionário, questão essa levantada, como refere, ' nas alegações do recurso do despacho sentença proferido por ocasião do saneador, como se pode ver na conclusão 5ª'
O Tribunal entende, como referiu ao notificar as partes para efeito de se pronunciarem ao abrigo do preceituado no artigo 3º, nº3, do CPC, não tomar conhecimento desta parte do recurso, por falta dos respectivos pressupostos de admissibilidade.
Vejamos.
Como o recorrente refere, esta questão foi suscitada no recurso da primeira decisão da 1ª Instância, que proferira uma decisão de mérito, para a Relação; só que, a Relação veio a revogar esta decisão e determinou que o processo prosseguisse para elaboração do despacho saneador, especificação e questionário. Portanto qualquer suscitação de constitucionalidade que tivesse ocorrido, estava ultrapassada e sem efeito.
Proferido nova decisão na 1ª Instância, após indeferimento da reclamação do despacho saneador, especificação e questionário e julgada a acção improcedente, o Autor e recorrente apelou de novo para a Relação de Lisboa, tendo nessas alegações impugnado o despacho que decidiu a reclamação contra o questionário e os factos que devem considerar-se provados, mas nessas alegações não suscita, quanto aos artigos 490º e 559º, nº3 do CPC, qualquer questão de inconstitucionalidade: limita-se a referir no nº20 das conclusões o seguinte:'Foram violados todos os normativos citados e nomeadamente os artigos
156º, nº1, última parte,264º, 456º,490º,511º,646º,nº4, 659º, nº3, todos do CPC; artº 9º, 334º, 356º nº1,358º nº1, 360º, todos do Código Civil; artº 13º da Constituição da República; artº 1º nº1 e 2, artº 6º, nº3, e artº 7º nº1, todos do Código da Estrada então vigente'.
Ora, isto não é suscitar qualquer questão de inconstitucionalidade normativa, além de que nem sequer vem referido o artigo
559º, nº3 do CPC.
Sendo o presente recurso interposto ao abrigo do artigo
70º, nº1, alínea b), da Lei do Tribunal Constitucional (Lei nº28/82, de 15 de Novembro, alterada pela Lei nº 85/89, de 7 de Setembro e pela Lei nº 13-A/98, de
26 de Fevereiro), para ser admitido tem de respeitar, pelo menos, o seguinte requisito: a decisão recorrida deverá ter aplicado norma cuja constitucionalidade tenha sido questionada durante o processo.
É jurisprudência uniforme deste Tribunal que a suscitação durante o processo tem de ser entendida de modo funcional, isto é, antes da decisão final, sendo certo que a suscitação tem de ser feita de modo adequado e perceptível, ou seja, de tal modo que o tribunal «ad quem» não possa deixar de sobre ela se pronunciar. Ora, a indicação de que a decisão recorrida viola uma dada norma não é forma adequada para suscitar de maneira perceptível qualquer questão de constitucionalidade.
Assim sendo, embora o recorrente se tenha pronunciado no sentido contrário, o Tribunal Constitucional entende que não pode tomar conhecimento do recurso relativo aos artigos 490º e 559º, nº3 do CPC, uma vez que tal questão só foi de facto suscitada no requerimento de interposição do recurso, que não é já um momento adequado para tal suscitação.
4. - Quanto à questão da constitucionalidade da interpretação do artigo 3º, nºs 1 e 2, alínea v) do Regulamento do Código da Estrada, no sentido de que o condutor deve dar passagem a todos e quaisquer veículos que transitem na via que se aproxima (sinal 23), foi ela suscitada, de facto, nas alegações de recurso para o Tribunal da Relação de Lisboa.
Segundo o recorrente, uma tal interpretação viola o princípio da igualdade constante do artigo 13º da Constituição.
Será assim?
Antes de mais, importa fixar o teor das normas em causa.
'Artigo 3º
(Sinais de Perigo)
1- Os sinais de perigo indicam a existência ou possibilidade de aparecimento de condições particularmente perigosas para o trânsito, que imponham especial atenção e prudência do condutor.
2.[ …] . alínea v) – Estrada com prioridade: indicação de que o condutor deve dar passagem a todos e quaisquer veículos que transitem na via de que se aproxima
(sinal 23).'
Segundo o recorrente, a decisão de 1ª Instância e da Relação interpretaram a norma literalmente, abstraindo 'do disposto no nº1 do citado artigo 3º do regulamento do Código da Estrada à data em vigor e até do disposto no início da alínea v) - 'Estrada com prioridade' - e do conceito legal de prioridade'.
Escreve o recorrente na resposta ao convite para esclarecer o sentido da interpretação que considera inconstitucional
(fls.320/321) o seguinte:
'Ora a alusão a 'prioridade' remete-nos para o artigo 8º do Código da Estrada no seu nº1 em cuja fattispecie está incluída a seguinte expressão 'uma vez tomadas as indispensáveis precauções'.
Por outro lado, abstrai, como se disse, do disposto no nº1 do preceito citado porquanto este se refere aos sinais de perigo - entre os quais o nº23, referido no nº2 - indicando a existência ou possibilidade de existência de aparecimento de condições particularmente perigosas para o trânsito, que imponham especial atenção e prudência do condutor.
Isto é, refere-se aos sinais de perigo a remeter para o aparecimento de condições determinadas como condição para o funcionamento das normas previstas no nº2 e portanto admitindo que poderá haver excepções ao aparecimento dessas condições previstas, tais como as existentes que constam dos autos, em que a norma não funciona.
É a situação anormal de um engarrafamento em que o trânsito segue a passo de peão, a excluir os perigos previstos no nº1 do artº 3º do Regulamento do Código da Estrada.
Atentos os critérios subjacentes ao Princípio da Igualdade e ao disposto no artº 20 da Constituição da República Portuguesa, uma tal interpretação das decisões recorridas, por errónea, é inconstitucional; e daí a interposição do presente recurso.
Por outras palavras, prevendo a própria norma as condições em que deve ser aplicada em termos de considerar igual aquilo que é igual e diferente aquilo que é diferente não pode o julgador aplicá-la como se ela abrangesse situações que não pretende abranger, em que todos os condutores estão num plano de igualdade, em termos de perigosidade, perante uma situação anormal, de engarrafamento, sem violar o princípio da igualdade.'
De acordo com o que fica atrás referido, o recorrente entende que há violação do princípio da igualdade quando o aplicador do direito, perante uma norma que ela própria prevê as condições de aplicabilidade, a vai utilizar para regular situações de anormalidade em termos de perigosidade e em que todos os condutores estão num plano de igualdade (engarrafamento).
5. - A admitir-se que a situação explanada integra uma questão de constitucionalidade, existirá aqui uma violação do princípio da igualdade?
A resposta não pode deixar de ser negativa.
Efectivamente, de acordo com o preceituado no artigo 13º da Constituição, 'todos os cidadão têm a mesma dignidade social e são iguais perante a lei' (nº1), não podendo ninguém ser privilegiado, beneficiado, prejudicado, privado de qualquer direito ou isento de qualquer dever em razão da ascendência, sexo, raça, língua, território de origem, religião, convicções políticas ou ideológicas, instrução, situação económica ou social (nº2).
O princípio da igualdade assenta na igual dignidade social de todos os cidadãos decorrente da igual dignidade da pessoa humana. Esta igualdade tem de reflectir-se desde logo na criação do direito: o legislador deve criar um direito igual para todos os cidadãos, tal como deve exigir-se igualdade na aplicação do direito.
Porém, o princípio da igualdade não exige uma parificação absoluta no tratamento das situações, mas apenas impõe que situações iguais entre si sejam tratadas por igual e situações desiguais sejam desigualmente tratadas, de modo que a disciplina jurídica seja igual quando sejam uniformes as condições objectivas das previsões reguladas e desigual quando inexista tal uniformidade.
Por outro lado, o princípio da igualdade admite diferenciações de tratamento de situações aparentemente iguais, desde que tais diferenças assentem num fundamento material razoável, baseado em critérios objectivos constitucionalmente relevantes e não sendo meramente arbitrárias ou discriminatórias (contrárias à justiça).
Assim, princípio da igualdade, quando entendido como limite objectivo da discricionariedade legislativa, não veda à lei, como se disse, a adopção de medidas que estabeleçam distinções. Todavia, não só proíbe a criação de medidas que estabeleçam distinções discriminatórias, isto é, desigualdades de tratamento materialmente não fundadas ou sem qualquer fundamentação razoável, objectiva e racional, como também impede que o operador e aplicador do direito não trate indivíduos ou situações iguais, arbitrariamente, por forma desiguais. De facto, o princípio da igualdade enquanto princípio vinculativo da lei, traduz-se, em regra, numa ideia geral de proibição do arbítrio (cf., quanto ao princípio da igualdade, entre outros, os Acórdãos nºs 186/90,187/90,188/90,1186/96,1188/96, publicados in 'Diário da República', respectivamente, de 12 de Setembro de 1990,12 de Fevereiro de 1997, e o último, ainda inédito).
A interpretação feita na decisão recorrida da norma complexa resultante do artigo 3º, nºs 1 e 2, alínea V) do Regulamento do Código da Estrada e que vem questionada pelo recorrente viola o princípio da igualdade assim entendido?
Como já se referiu antes, a resposta tem de ser negativa.
Efectivamente, no caso dos autos, inexiste qualquer violação do princípio da igualdade, em qualquer das suas vertentes. O Tribunal da Relação de Lisboa entendeu que a norma do artigo 3º, nºs 1 e 2, alínea v), ao estabelecerem que os sinais de perigo indicam a existência ou possibilidade de aparecimento de condições particularmente perigosas para o trânsito que imponham uma particular atenção e prudência ao condutor e que o sinal 23 indica a aproximação de estrada com prioridade, indicação essa que implica que o condutor deve dar passagem a todos e quaisquer veículos que transitem na via que se aproxima é uma norma também aplicável em situações de engarrafamento, de «pára e arranca», situações em que o apelo à prudência e à atenção do condutor mais premente se torna.
Com esta interpretação, não se está a confrontar o princípio da igualdade, pois não se está a tratar por forma idêntica situações desiguais ou a fazer diferenciações de tratamento de situações aparentemente iguais: em termos de observância de um sinal de perigo, que impunha 'especial atenção e prudência do condutor', as situações eram iguais e como tal foram juridicamente tratadas.
Tem, pois, de improceder o presente recurso de constitucionalidade. III - DECISÃO:
Nos termos do exposto, o Tribunal Constitucional decide negar provimento ao recurso e, em consequência, confirmar a decisão recorrida na parte impugnada.
Lisboa, 21 de Outubro de 1998 Vítor Nunes de Almeida Artur Maurício Luís Nunes de Almeida José Manuel Cardoso da Costa