Imprimir acórdão
Proc. nº 165/97
1ª Secção Rel.: Consº Tavares da Costa
Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional
I
1. - F. C., identificado nos autos, foi condenado, por acórdão de 25 de Novembro de 1994, da 2ª Vara Criminal da comarca de Lisboa, pela prática de um crime de roubo, previsto e punido pelas disposições combinadas dos artigos 306º, nºs. 1 e 2, alínea a), e 5, e 297º, nº 2, alínea h), do Código Penal, na pena de quatro anos de prisão.
Inconformado, recorreu para o Supremo Tribunal de Justiça onde, por acórdão de 8 de Junho de 1995, obteve parcial provimento do recurso, na medida em que se determinou o reenvio do processo para novo julgamento, a ter lugar em ?tribunal de categoria e composição idênticas às do tribunal que proferiu a decisão recorrida, que se encontrar mais próximo - artigos 426º e 436º, ambos do C.P. Penal?.
Procedeu-se em conformidade, após o que, agora por acórdão de 31 de Outubro de 1995, da 10ª Vara Criminal da mesma comarca, foi o recorrente condenado pela prática de um crime de roubo previsto e punido pelo artigo 210º, nº 2, alínea b), com referência à alínea f) do nº 2 do artigo 204º, ambos do Código Penal (texto de 1995), na pena de quatro anos de prisão, declarando-se perdoado um ano de prisão, nos termos do artigo 8º, nº 1, alínea d), e com a condição do artigo 11º da Lei nº 15/94, de 11 de Maio (Processo nº
92/95, da 1ª Secção desta 10ª Vara).
Reagiu o arguido, recorrendo para o Supremo Tribunal de Justiça, o qual, por acórdão de 13 de Fevereiro de 1997 (fls. 455 e segs.) negou, na totalidade, provimento ao recurso e confirmou a decisão impugnada.
2. - É deste acórdão que o arguido interpôs recurso para o Tribunal Constitucional, ao abrigo da alínea b) do nº 1 do artigo 70º da Lei nº
28/82, de 15 Novembro, pretendendo ver apreciada a constitucionalidade do seguinte elenco de normas: I as dos artigos 342º, nº 2, 295º e 274º do Código de Processo Penal (CPP) e o artigo 13º do Decreto-Lei nº 39/83, de 25 de Janeiro; II a do artigo 127º do CPP; III as dos artigos 433º, 410º, nºs. 2 e 3, e 363º, conjugados com o artigo 374º, todos do CPP; IV a do artigo 374º, nº 2 (e, conjugadamente com esta, as dos artigos 372º, nº
3, 365º, nº 3, 368º e 369º) todos do CPP; V as dos artigos 8º, 9º, 48º, 53º e 360º, nº 1, todos do CPP, 'aplicados conjugadamente e com os artigos 205º e 221º da CRP'; VI as dos artigos 8º, 9º, nº 1 do CPP (em conjugação com o espírito dos artigos
39º a 47º do CPP) e os artigos 32º, nºs. 1 e 5, 205º e 206º da CRP
?indevidamente interpretados'; VII a do artigo 44º do CPP (no acórdão, certamente por lapso, escreveu-se 43º); VIII as dos artigos 72º, nº 1, do 'Código Penal de 1982' e 71º, nº 1, do ?Código Penal de 1995'.
3.1. - Nas alegações apresentadas o recorrente utilizou um procedimento menos ortodoxo e formal no que respeita à estrutura da motivação, mormente quanto ao encerramento da mesma, mediante a formulação autonomizada das conclusões.
No entanto e uma vez que, relativamente a cada grupo normativo, mencionou expressamente, de modo perceptível, as questões de constitucionalidade em discussão, as normas que reputa violadas e indicou as peças processuais onde alegadamente suscitou tais questões, não se fez reparo formal mais exigente quanto à metodologia utilizada (neste sentido, v.g., o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 11 de Julho de 1991, publicado no Boletim do Ministério da Justiça, nº 409, págs. 646 e segs.).
Assim, foi o recorrente condensando as suas teses discordantes da decisão recorrida do seguinte modo:
Grupo I supra mencionado: as normas aplicadas são as que resultam do artigo 342º, nºs. 2 e 3, do CPP (antes das alterações do Decreto-Lei nº 317/95, de 28 de Novembro) - a referência pontual a artigo 332º deve-se, por certo, a lapso - interpretado como foi pelo Supremo, no seu sentido literal, e dos artigos 274º e 295º do CPP e 13º do Decreto-Lei nº 39/83, ?interpretados como sendo permitido ao Tribunal (ou mesmo, devendo) juntar aos autos o certificado de registo criminal do arguido?.
Foram violadas as normas constitucionais dos artigos 2º, nºs. 1, 2, 5 e 6, 26º, nº 1, e 13º, o que o recorrente suscitou nas conclusões A a F e nos pontos 7º a 48º das motivações do recurso para o Supremo.
Grupo II: a norma do artigo 127º do CPP, interpretada
'no sentido de ser admissível uma condenação sem que qualquer dos meios de prova produzida em audiência permita sequer indiciar a culpa do arguido, quanto mais demonstrá-la efectivamente'.
Foram violadas as normas constitucionais do artigo 2º,
?que revela o princípio da culpa?, e 32º, nºs. 1, 2 e 5, questão suscitada nas conclusões G, H, e I das motivações do recurso para o Supremo, com desenvolvimento nos pontos 49 a 61.
Grupo III: relativo às normas dos artigos 433º, 410º, nºs. 2 e 3, e 363º, conjugados com o artigo 374º, todos do CPP, ?interpretados como não admitindo que o STJ ouça as cassettes que fizeram o registo audiográfico das declarações orais prestadas em audiência de julgamento, especialmente no contexto de um sistema processual penal em que é jurisprudência uniforme a não exigência legal de motivação da matéria de facto'.
A norma constitucional violada é a do artigo 32º, nº 1, e a questão foi alegadamente suscitada na conclusão J e no ponto 92 das motivações de recurso para o Supremo.
Grupo IV: respeita à norma do artigo 374º, nº 2, do CPP
(?secundado? pelos artigos 372º, nº 3, 365º, nº 3, 368º e 369º, todos do CPP), interpretado ?no sentido de não se exigir a motivação da matéria de facto dada como provada, bastando-se apenas com a indiciação dos meios de prova que serviram para formar a convicção do tribunal?.
Para o recorrente, essa interpretação viola o disposto nos artigos 208º e 114º da Constituição, pelo menos, questão que equacionou na conclusão L e nos pontos 93 e 99 das já mencionadas motivações.
Grupo V: a das normas dos artigos 8º, 9º, 48º, 53º e
360º, nº 1, do CPP, aplicados conjugadamente, na medida em que permitem que um tribunal condene o arguido ?quando o Ministério Público, único titular da acção penal, defenda a peça nas alegações finais e sua absolvição'.
Ocorre violação do disposto nos artigos 32º, nº 5, 205º e 221º das motivações do recurso para o Supremo.
Grupo VI: o das normas dos artigos 8º e 9º, nº 1, do CPP, em conjugação com o espírito dos artigos 39º a 47º do mesmo Código e os artigos 32º, nºs. 1 e 5, 205º e 206º da Constituição, 'indevidamente interpretados (ainda que aplicados directamente)'.
Viola o disposto nas normas constitucionais dos artigos
2º, 20º, 32º, nºs. 1 e 5, 205º, 206º, 218º e 219º uma interpretação que ?permite que o tribunal actue sistematicamente de uma forma não imparcial em desfavor do arguido?.
Questão levantada pelo arguido na conclusão N e no ponto
121 da peça processual já referenciada.
Grupo VII: pertinente ao artigo 44º do CPP.
Viola o disposto ao nº 1 do artigo 32º da Constituição - o que suscitou nos pontos 109 a 121 das motivações referidas - a interpretação pelo Supremo desta norma ?no sentido de o prazo para requerer a recusa do juiz, por suspeição adveniente de conduta não imparcial, não permitir que este incidente possa ser suscitado após a leitura da sentença (mesmo nos casos em que, como neste, vários dos factos que suportam o pedido de recusa tenham ocorrido ou chegado posteriormente ao conhecimento do arguido)?.
Grupo VIII: respeita à ?norma aplicada, revelada pelos artigos 72º, nº 1, do Código Penal de 1982 e 71º, nº 1, do Código Penal de 1995, interpretados no sentido de permitirem que o tribunal fixe a medida da pena atendendo (também) a critérios de prevenção geral'.
A norma constitucional violada é a que decorre do artigo
2º, questão suscitada na conclusão P e no ponto 129 das motivações de recurso para o Supremo.
3.2. - O Procurador-Geral Adjunto em exercício neste Tribunal, por sua vez, concluíu assim as suas alegações:
'1. Deve julgar-se inconstitucional a norma do artigo 342º, nº 2, do Código de Processo Penal, por violação do princípio das garantias de defesa consagrado no artigo 32º, da Constituição da República Portuguesa, e do direito
à reserva da intimidade da vida privada, protegida no artigo 26º, nº 1, também da lei fundamental, enquanto direito a impedir o acesso de estranhos a informações sobre tais antecedentes criminais.
2. Conforme a jurisprudência do Tribunal Constitucional, o sistema do actual Código de Processo Penal não enferma de qualquer inconstitucionalidade enquanto dele decorre que o registo da prova não tem a finalidade de permitir ao tribunal de recurso (no caso, ao Supremo Tribunal de Justiça) o controlo de julgamento do facto feito pelo tribunal recorrido, já que o registo das declarações produzidas oralmente na audiência de julgamento do tribunal colectivo é, antes, um meio de controlo da prova posto ao serviço desse mesmo tribunal.
3. O artigo 374º, nº 2, do Código de Processo Penal, foi interpretado pelo acórdão recorrido no sentido da exigência dos motivos que fundamentam a decisão em matéria de facto, pelo que tal interpretação não viola qualquer norma ou princípio constitucional.'
3.3. - No entanto, anteriormente a esta sua 'pronúncia', o magistrado tinha equacionado a questão relativa à delimitação do objecto do recurso, sendo de parecer não se dever conhecer do objecto do recurso quanto às normas seguintes, nos termos que se passam a transcrever:
'[...] por não terem sido suscitadas antes da decisão, podendo sê-lo, não deverá incluir-se no âmbito do recurso as normas constantes dos artigos 295º e 274º, do Código de Processo Penal (indicados em I); do artigo
127º, do Código de Processo Penal (indicada em II); dos artigos 8º, 9º, 48º, 53º e 360º, nº 1, do Código de Processo Penal (indicados em V); dos artigos 8º, 9º, nº 1 do Código de Processo Penal (indicados em VI); e dos artigos 72º, nº 1, do Código Penal de 1982 e 71º, nº 1, do Código Penal de 1995 (indicados em VIII), normas relativamente às quais não foi suscitada qualquer questão de constitucionalidade.
Não deverá também conhecer-se da questão de inconstitucionalidade do artigo 13º do Decreto-Lei nº 39/83, de 25 de Janeiro (indicado em I), por não ter sido aplicado pela decisão recorrida (como se reconhece na conclusão E do recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, em causa estava o despacho que mandou juntar aos autos o certificado de registo criminal do arguido).
O recorrente defende que o artigo 44º do Código de Processo Penal é inconstitucional, por violação do artigo 32º, nº 1, da Constituição da República Portuguesa, quando interpretado, como foi, no sentido de o prazo para requerer a recusa do juiz, por suspeição adveniente de conduta não imparcial, não permitir que o incidente possa ser suscitado após a leitura da sentença.
Acontece que, no recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, o recorrente arguiu a violação da imparcialidade do Tribunal, fazendo-o em via de recurso, por considerar ser o meio adequado, uma vez que já não podia usar o incidente processual de recurso do juiz, nem o de recurso extraordinário. Mas porque não pediu, em tempo oportuno, aquela recusa, entendeu-se no acórdão recorrido não poder conhecer-se do alegado.
Independentemente de se saber se, atento o contexto acabado de referir, houve ou não aplicação efectiva da norma impugnada, o certo é que, a conhecer-se do recurso de inconstitucionalidade, o seu eventual provimento não teria qualquer repercussão na decisão recorrida, exactamente porque o recorrente não requereu a recusa. Ora, sabido, como é, que o julgamento da questão de constitucionalidade desempenha sempre uma função instrumental, apenas se justificando que a ele se proceda se o mesmo tiver utilidade para a decisão da questão de fundo, deverá, nesta parte, julgar-se extinto o recurso por inutilidade superveniente.'
Ouvido sobre esta questão prévia, nada veio o recorrente dizer.
Corridos os vistos legais, cumpre decidir.
II
1. - A questão prévia do não conhecimento de parte do objecto do recurso.
1.1. - As normas dos artigos 295º e 274º do CPP ('Grupo I').
Entende o Ministério Público que estas normas não devem constar do objecto do recurso uma vez que, relativamente a elas, não foi a apreciação da sua eventual inconstitucionalidade suscitada durante o processo, no sentido que a jurisprudência deste Tribunal vem concedendo à expressão, ou seja, que essa suscitação, como pressuposto de admissibilidade deste tipo de recurso, deve ser entendida não em sentido puramente formal (tal que a inconstitucionalidade pudesse ser suscitada até à extinção da instância) mas sim em sentido funcional (tal que essa invocação haverá de ter sido feita em momento em que o tribunal a quo ainda pudesse conhecer da questão).
As normas dos artigos 274º e 295º do CPP respeitam às certidões e certificados de registo, a primeira sistematicamente englobada nos actos de inquérito e a segunda nos de instrução.
De acordo com a primeira, são juntos aos autos as certidões e certificados de registo, nomeadamente o certificado de registo criminal do arguido, que se afigurem previsivelmente necessários ao inquérito ou
à instrução, ?ao julgamento que venham a ter lugar e à determinação da competência do tribunal?, enquanto a segunda permite essa junção na fase de instrução, ?se ainda não constarem dos autos? os documentos em causa, em termos análogos aos anteriormente estabelecidos.
Ora, se é certo que a decisão recorrida subentende que o Tribunal teve em linha de conta o certificado de registo criminal do arguido, não menos exacto é - como melhor veremos adiante - que a decisão foi, nesta parte, moldada essencialmente sobre a norma do nº 2 do artigo 432º do CPP.
A esta luz, sempre se poderia dizer que as normas em referência não foram aplicadas na decisão recorrida, ou, pelo menos, não foram decisivamente, a ponto de integrarem o fundamento da decisão.
De qualquer modo, e como observa o Ministério Público, a elas se não refere o recorrente em momento anterior ao acórdão do Supremo - podendo fazê-lo - o que, de resto, se compreende, uma vez que a norma em causa, substantiva e materialmente, é a do nº 2 do artigo 342º do CPP.
1.2. - A norma do artigo 13º do Decreto-Lei nº 39/83, de 25 de Janeiro.
Integrada em diploma respeitante ao registo criminal e ao acesso à informação criminal, o impugnado preceito dispõe sobre quem pode requisitar certificados de registo criminal e para que fins, no âmbito da investigação criminal, lato sensu entendida.
Ora, também esta norma não foi aplicada na decisão recorrida, pois - como se reconhece na alínea E) das conclusões da motivação para o Supremo - a pertinência da sua convocação só teria a ver com o despacho que mandou juntar aos autos o certificado do registo criminal do arguido, a semelhante norma não se referindo sequer o acórdão recorrido, de modo explícito ou até implicitamente.
1.3. - A norma do artigo 127º do Código de Processo Penal.
Diz-nos este preceito que, salvo quando a lei dispuser diferentemente, a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente.
Sustenta o recorrente não ser permitida uma interpretação normativa que permita ao julgador decidir segundo o seu livre arbítrio, de outro modo se ofendendo o Estado de Direito e o direito de defesa, que implica a existência de um sistema assente no princípio da culpa.
No entanto, contrariamente ao por si alegado, o recorrente não suscitou atempadamente a questão de inconstitucionalidade dessa norma: nas alegações de recurso para o Supremo, nomeadamente nos pontos 49 a 61 e nas conclusões G, H e I, onde pretende situar essa problemática, é a questão do eventual erro notório na apreciação da prova que está em causa e, com ela, o disposto no artigo 410º do CPC sobre os fundamentos do recurso.
De resto, nem o Supremo, no seu acórdão, se debruçou especificamente sobre este ponto.
1.4. - As normas dos artigos 8º, 9º, 48º, 53º e 360º, nº 1, do CPP na interpretação acolhida pela decisão que, perante o pedido de absolvição, nas alegações finais, feito pelo Ministério Público, estaria vinculada a absolver o arguido ou a declarar o arquivamento dos autos.
Também aqui, como nos casos anteriores, não ocorreu alegação tempestiva de inconstitucionalidade de qualquer dessas normas, como se retira, mais condensadamente, da conclusão M das alegações para o Supremo:
'O Ministério Público pediu absolvição nas alegações finais. Por este facto o tribunal teria obrigatoriamente de absolver o arguido ou declarar o arquivamento dos autos. Caso contrário, o Tribunal aplicou uma norma (que desconhecemos qual seja) violadora dos artigos 32º nº 5, 205º e 221º CRP, pois é ao MP que cabe exercer a acção penal.
O Tribunal não parece ter tomado estes preceitos constitucionais em atenção, pelo que se mostra impraticável atribuir-lhe uma interpretação.
Estas normas devem ser interpretadas como atribuindo ao MP o exercício exclusivo da acção penal, donde resultará que um pedido de absolvição seja uma desistência daquela, o que deverá importar o arquivamento dos autos ou a absolvição do arguido.'
Para além disso, no caso concreto, nenhuma prova existe de que o Exmo . Magistrado do Ministério Público, como afirma o recorrente, tivesse pedido a absolvição do arguido nas suas alegações orais de julgamento, porque tal tipo de alegações , quer quando oriundas do Ministério Público, quer quando feitas pelos defensores dos arguidos, não são reduzidas a escrito
(precisamente porque têm a característica da oralidade), e, antes, tudo leva a crer que a afirmação não corresponderá totalmente à realidade, uma vez que o Ministério Público da primeira instância não interpôs recurso da decisão do colectivo, o que não seria natural se ele tivesse defendido a absolvição do arguido, como é dito por este último, e que, na sua contra-motivação, como já foi referido, pugnou, inclusivamente, pela manutenção do decidido.'
1.5. - As normas dos artigos 8º e 9º, nº 1, do CPP, interpretadas conjugadamente nos termos do complexo normativo incluído no Grupo VI.
Também aqui, face às normas apontadas isoladamente, em si mesmas consideradas, ou conjugadamente, como se alega, não se verifica a indispensável suscitação prévia, como decorre da conclusão N, onde o recorrente pretende incluir esta matéria:
'O tribunal teve antes, durante e depois do julgamento uma conduta que demonstra não ter actuado com a imparcialidade exigida a um julgador, pelo que deverá ser anulada a decisão e ordenada a repetição do julgamento. Foram violadas várias normas do CPP, nomeadamente os artigos 39º a 42º, donde se retira que o Tribunal terá de ser imparcial. Foram ainda violados os artigos 2º,
20º, 32º nº 1 e 5, 205º, 206º, 218º e 219º todos da CRP, onde se manifesta a mesma necessidade de imparcialidade a que o julgador está adstrito.'
1.6. - A norma do artigo 44º do CPP.
Pretende-se violada a norma deste preceito na interpretação dada pelo acórdão recorrido segundo a qual ?o prazo para requerer a recusa do juiz, por suspeição adveniente de conduta não imparcial, não permite que este incidente possa ser suscitado após a leitura da sentença?.
Com efeito, o Supremo, debruçando-se sobre esta matéria, ponderou:
'O recorrente, sem apoio em qualquer elemento de prova constante dos autos, e, nomeadamente, da acta de julgamento, que é o local estabelecido pela lei para a consignação de factos dessa natureza, vem defender que o Tribunal não demonstrou no julgamento imparcialmente para com o arguido, e que, por isso, o julgamento deve ser anulado.
Defende que a demonstração dessa parcialidade resulta das gravações do julgamento, do que foi invocado nos três recursos interlocutórios por si interpostos, dos quais um foi, por este Supremo, mandado processar pelo Tribunal da Relação, e de que os dois restantes foram rejeitados por serem manifestamente improcedentes (cfr. fls. 435 a 436 v.).
E vem, também, fazer a grave afirmação de que tem dúvidas sobre a imparcialidade de dois dos Exmos. Juízes que fizeram parte do colectivo que julgou o arguido, por terem intervindo num outro processo anterior contra si, e terem proferido uma decisão condenatória, que veio a ser anulada por este Supremo, e substituída por uma absolvição, na consequente repetição do julgamento, mas, ao mesmo tempo, reconhece que não pediu, em tempo oportuno, a recusa desses dois Magistrados.
Quanto a este último aspecto, a conduta do recorrente impede que se possa tomar conhecimento do que por si é alegado, uma vez que, embora o pedido de recusa de um Juiz tenha carácter facultativo (artigo 43º nºs. 1 e 2 do Código do Processo Penal), tal pedido tem de ser formulado até ao início dos actos judiciais, como a audiência e outros, e pode excepcionalmente sê-lo até à sentença ou à decisão instrutória quando os factos que o possam justificar ocorram posteriormente ao início de tais actos processuais.
O arguido não veio pedir a recusa desses dois Exmos. Juízes até ser proferida a decisão, e, por tal motivo, deixou de poder invocar qualquer motivo que pudesse fundamentar a sua pretensão de recusa dos mesmos.
Significa isto que, relativamente a este aspecto, a sua alegação de parcialidade do Tribunal não pode ser atendida e nem sequer considerada, embora a sua conduta, quanto a este ponto, deva ser comunicada ao respectivo Órgão disciplinar da Ordem dos Advogados.
A pretendida comprovação do que se terá passado na audiência de julgamento através das gravações efectuadas, porque respeita a matéria de apuramento dos factos, excluída, como já se disse da competência deste Supremo Tribunal, não é admissível à luz do nosso direito.
E aquilo que possa resultar da decisão do recurso interlocutório que foi mandado apreciar pelo Tribunal competente, que é o da Relação e não este Supremo, só poderá ter interesse para os autos, na fase em que se encontram, se o respectivo recurso já tiver sido apreciado por aquele Tribunal, o que não se verifica.'
Ora, o certo é que, contrariamente ao que sustenta, o arguido, designadamente nos pontos 109 a 121 das suas alegações para o Supremo, dedicados ao que intitula ?falta de imparcialidade do tribunal?, nunca suscitou a questão da constitucionalidade da norma em referência, limitando-se a alegar
?violação da imparcialidade exigida ao Tribunal, constante das normas da CRP
(artigos 2º, 20º, 32º, nºs. 1 e 5, 205º, 206º, 218º e 219º) e do CPP (artigos
39º a 42º), formulação genérica, não concretizada nem normativamente direccionada.
Também aqui, por conseguinte, não há que conhecer do recurso.
1.7. - As normas dos artigos 72º, nº 1, do ?Código Penal de 1982? e 71º, nº 1, do ?Código Penal de 1995?.
Alega o recorrente, nesta área, que a interpretação normativa das decisões recorridas (só se compreende a menção à redacção anterior
à do Decreto-Lei nº 48/95, de 15 de Março, se é extensível o juízo de censura à decisão de 1ª instância), na medida em que ponderou exclusivamente as finalidades de prevenção geral na avaliação da medida concreta da pena, não teve em conta as finalidades retributivas ou as de prevenção especial.
Para o efeito, alicerça-se especificamente numa passagem do acórdão da 10ª Vara Criminal onde se pondera, após análise do regime penal mais favorável ao arguido, pela aplicação do novo texto como mais benévolo para este, e se acrescenta (fls. 221-v.): ?Na medida concreta da pena terá, igualmente, que se ter em atenção as necessidades de prevenção geral que este tipo de crime impõe, em primeira linha pelos bens jurídicos em crise e também pela frequência com que vem sendo praticado [...]'.
O certo é que o acórdão da 1ª instância não pode ser agora impugnado, não constitui objecto do recurso e foi substituído na ordem jurídica pelo do Supremo, que é a decisão em apreço.
A este respeito, observa-se nesta última:
'Na determinação da medida da pena, o Tribunal deve, dentro dos limites estabelecidos na Lei, atender à culpa do agente e as exigências de prevenção de futuros crimes (artigos 72º, nº 1 do Código Penal de 1982 e 71º nº
1 do de 1995).
A fixação da pena do arguido atendeu aos requisitos indicados nesses artigos, entre os quais se contam, como acaba de ser referido, as exigências de prevenção, exigências estas que englobam não apenas a prevenção especial, mas também a prevenção penal.
Desta conformidade com as exigências legais resulta que o arguido, mais uma vez, não tenha razão quanto à primeira parte desta sua oposição ao decidido.
E, no que respeita à medida da pena, que o arguido considera exagerada, não pode deixar de se concluir que a mesma se mostra perfeitamente ajustada à personalidade do arguido e à gravidade dos actos praticados, e foi fixada em harmonia com os preceitos dos artigos 72º e 71º acima referidos, motivo pelo qual a mesma deve ser mantida.'
Ora, independentemente de ser duvidoso tratar-se de matéria da competência fiscalizadora concreta de constitucionalidade - na medida em que se aponta para uma crítica à decisão em si e não a uma interpretação normativa, o que nem sempre facilmente se distingue -, ainda aqui não foi equacionado, clara e inequivocamente, um problema de constitucionalidade daquelas normas, só nas alegações para o Tribunal Constitucional se tendo convocado o artigo 2º da Constituição para se argumentar com uma hipotética violação sua, 'a medida em que da noção de Estado de Direito resulta à imposição do princípio da culpa, nos termos do qual o arguido só poderá ser punido por pena cujo limite não ultrapasse a medida da culpa concreta do agente, decorrendo ainda que só se poderão ponderar em desfavor do arguido elementos atinentes ao facto e ao próprio agente, nunca a terceiros'
Tal como no tocante às demais normas citadas, a questão de constitucionalidade podia e devia ter sido equacionada perante o tribunal recorrido, pelo que também desta norma não se conhecerá.
1.8. - O bloco normativo relativo à fundamentação do acórdão recorrido.
Incluem-se neste ponto as normas supra mencionadas como integrando os Grupos III e IV.
A tese professada imputa ao acórdão vício de fundamentação, quer pela não utilização, pelo Supremo, do material de registo audiográfico relativo à audiência de julgamento na 1ª instância, quer pela suficiência de uma singela indicação dos meios de prova em que o Tribunal assentou a sua convicção, como precipitação concreta de uma dominante tendência jurisprudencial que se basta com essa indicação, pondo em crise a coerência e a eficácia do sistema vigente.
Independentemente de qualquer juízo sobre a pertinência da argumentação convocável a propósito, designadamente no tocante à constitucionalidade do sistema de ?revista ampliada? para reapreciação da decisão da 1ª instância, entende-se que o recorrente, com o fio discursivo utilizado, reporta-se à decisão judicial, em si mesma considerada, e não ao seu controlo normativo, como pressuposto de admissibilidade do recurso de constitucionalidade.
Com efeito, seja ao expressar o seu desacordo pela não audição do registo da prova por banda do Supremo, seja ao discordar do modo como esse Alto Tribunal entendeu que o arguido é o autor dos factos dados como provados, o recorrente situa-se numa área que não tem a ver com uma apreciação normativa, mesmo que em dada vertente interpretativa, antes respeita à apreciação de constitucionalidade da decisão judicial propriamente dita, o que está fora do âmbito do recurso de constitucionalidade, como tal do seu objecto igualmente não se podendo, nesta parte, conhecer.
Designadamente, na motivação de recurso para o Supremo afirma o recorrente que o acórdão do Colectivo violou os artigos 374º, nº 2, do CPP e 208º da CR, sem ter atribuído, no entanto, ao artigo 374º, nº 2, citado, violação da norma constitucional invocada.
1.9. - Resta, assim, como única questão de constitucionalidade, a tomar em consideração, a da norma do artigo 342º, nº 2, do CPP (redacção anterior à do Decreto-Lei nº 317/95, de 28 de Novembro).
2. - A norma do nº 2 do artigo 342º do CPP.
2.1. - No requerimento de interposição do recurso de constitucionalidade - que é o momento processual adequado para a fixação do seu objecto - o arguido pede a apreciação da constitucionalidade do nº 2 do artigo
342º do CPP.
No entanto, se bem que tenha recorrido em plena vigência da redacção actual do preceito - que o Decreto-Lei nº 317/95, de 28 de Novembro, lhe deu - resulta dos autos que pretende questionar a conformidade constitucional do primitivo nº 2 desse artigo - que aquele diploma revogou, passando o anterior nº 3 a ser o actual nº 2 - nos termos do qual o arguido era obrigado a responder às perguntas feitas pelo presidente do tribunal sobre os seus antecedentes criminais.
Para o arguido, vários são os vícios de inconstitucionalidade de que padece essa norma:
a) restringe as garantias de defesa que, no mínimo, consagram o direito a permanecer calado e a faltar à verdade, bem como o direito a decidir sobre a própria estratégia de defesa, do mesmo passo que consubstancia violação do princípio da presunção de inocência - nºs. 1 e 2 do artigo 32º da CR;
b) consistindo em elementos obtidos mediante coacção, obrigando o arguido a publicitar em audiência elementos que o poderão prejudicar, viola, nessa medida, o nº 6 do citado artigo 32º;
c) o princípio do acusatório, expresso no nº 5 do artigo
32º, constitui o arguido no direito a ser sujeito do processo e não objecto do mesmo, pelo que não pode ser chamado a colaborar coactivamente na produção da prova;
d) impondo-se ao arguido a revelação de dados íntimos do seu passado, viola-se a reserva de intimidade da vida privada e o direito ao bom nome e reputação, constitucionalmente tutelados pelo nº 1 do artigo 26º da CR;
e) coloca também o arguido em situação de desigualdade consubstanciadora de violação do disposto no artigo 13º do mesmo texto.
A prestação de declarações sobre os antecedentes criminais, com o seu carácter impositivo, que o nº 2 do artigo 342º do Código, na sua versão originária, acolhia, foi, como se viu, eliminada do ordenamento jurídico nacional. No entanto, nem por isso deixa de interessar conhecer a questão da sua constitucionalidade, uma vez que, no caso concreto, a mesma teve lugar ainda na vigência da redacção anterior e, como tal, foi tida em consideração pelo tribunal.
2.2. - Ora, o Tribunal Constitucional, no seu acórdão nº 695/95, publicado no Diário da República, II Série, de 24 de Abril de 1996, julgou esta norma inconstitucional, por violação do princípio das garantias de defesa,
ínsito no artigo 32º da Constituição da República.
Na verdade, ponderou-se nesse aresto que o princípio constitucional de que o processo criminal assegurará todas as garantias de defesa tem como conteúdo essencial a exigência de que o arguido seja tratado como sujeito, e não como objecto do procedimento criminal, garantindo-lhe a Constituição, com essa finalidade, não só um direito de defesa, a que a lei confere efectividade através de direitos processuais autónomos a exercer durante o processo e que lhe permitem conformar a decisão final do processo, mas também a presunção de inocência até ao trânsito em julgado da condenação, elemento fundamental naquela perspectiva.
Na sequência lógica deste fio discursivo, ?o Tribunal entendeu que a imposição ao arguido do dever de responder às perguntas sobre os seus antecedentes criminais formulada no início da audiência de julgamento viola o direito ao silêncio, enquanto direito que integra as garantias de defesa do arguido.
Como se referiu, o conteúdo essencial do direito de defesa do arguido assenta em que este deve ser considerado como «sujeito» do processo e não como objecto; ora, a obrigatoriedade de declarar, no início da audiência de julgamento, os antecedentes criminais do arguido e, bem assim, informar sobre processos pendentes implica a transformação do arguido de sujeito em objecto do processo.
Com efeito, ao arguido fica retirada a possibilidade de prestar as suas declarações no momento que mais lhe convier, tendo de as prestar numa altura em que não se iniciaram sequer as diligências probatórias, ou seja, sem qualquer possibilidade de o arguido poder evitar eventual irradiação daquelas declarações sobre o objecto do processo.
Acresce que, em tal fase do procedimento penal, tal como está entre nós estruturado, estão já em princípio juntos aos autos elementos documentais oficiais relativos a tais antecedentes criminais, o que tornaria a exigência legal do nº 2 do artigo 342º do CPP excessiva e irrazoável perante as garantias de defesa do arguido.
Tem, assim, de se concluir pela violação do princípio constitucional das garantias de defesa pela norma do nº 2 do artigo 342º do CPP, enquanto impõe ao arguido o dever de responder às perguntas do presidente do tribunal no início da audiência de julgamento sobre os seus antecedentes criminais e sobre outro processo penal que contra ele corra nesse momento?.
Este entendimento, que o citado acórdão nº 695/95 veiculou, é agora reiterado.
Poderá, observar-se que, no caso concreto, o conhecimento em audiência do passado criminal do arguido, através das declarações por este prestadas, por imperativo do questionado artigo 342º, nº 2, não influenciou a decisão na medida da pena, já que essas declarações tiveram como único efeito a solicitação de informação sobre o estado do processo, a data desde a qual o arguido estava preso e o tribunal à ordem do qual o mesmo se encontrava nessa situação, o que, de resto, só muito posteriormente veio a conhecer-se.
Não obstante, subsiste a validade das demais razões que levaram o Tribunal, no citado acórdão nº 695/95, ao julgamento de inconstitucionalidade dessa norma e que aqui se dão por reproduzidas.
III
Em face do exposto, decide-se: a) conhecer recurso apenas quanto à norma do nº 2 do artigo 342º do Código de Processo Penal (redacção originária, anterior à do Decreto-Lei nº
317/95, de 28 de Novembro), julgando-a inconstitucional, por violação do princípio das garantias de defesa ínsito no artigo 32º da Constituição da República Portuguesa; b) em consequência, conceder, nessa parte, provimento ao recurso, determinando-se a reformulação do acórdão recorrido em conformidade com o decidido em matéria de constitucionalidade.
Lisboa,3 de Novembro de 1998 Alberto Tavares da Costa Vitor Nunes de Almeida Maria Fernanda palma Paulo Mota Pinto Artur Mauricio Maria Helena Brito Luis Nunes de Almeida