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Proc. nº 606/98 TC - 1ª Secção Rel.: Consº Artur Maurício
Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional:
1 - N. C., com os sinais dos autos, foi condenado no Tribunal Judicial da Comarca de Peso da Régua, como autor de um crime de peculato de uso, p. e. p. nos artigos 425º nº 1 e 437º do Código Penal de 1982, na pena de sete meses de prisão, suspensa na sua execução pelo período de um ano.
O arguido recorreu da sentença condenatória para o Tribunal da Relação do Porto, formulando na respectiva motivação as seguintes conclusões:
'I. A sentença recorrida sobrevaloriza, totalitariamente, a prova produzida com base nos depoimentos de três testemunhas de acusação, agentes da PSP (entre oito por ela arroladas).
II. Por outro lado, desvaloriza e anula por completo toda a prova produzida pela defesa, sem argumentos que o possam, minimamente, justificar, afectando, irremediavelmente, as garantias constitucionais de defesa.
III. O certo é que, apesar de tidas por credíveis e idóneas, as referidas três testemunhas de acusação deixaram mais dúvidas do que certezas, sendo pouco específicas e concretas no que diziam, não se vislumbrando como podem ser suportadoras de uma acusação.
IV. Por outro lado, pese embora a desconsideração de que são alvo por parte da sentença recorrida, as testemunhas de defesa e as outras de acusação conseguiram, com os seus depoimentos, abalar a credibilidade das três mencionadas testemunhas de acusação e aumentar exponencialmente o espectro das dúvidas e incertezas.
V. O equilíbrio de armas e a descoberta da verdade material ficaram afectados com o tratamento incompreensivelmente desigual dado à prova apresentada e produzida pela defesa, numa clara concretização de um juízo de valor com dois pesos e duas medidas.
VI. Quanto mais não seja por falta de prova relevante e com base nas aludidas dúvidas inultrapassáveis, tudo aponta para que o recorrente não tenha cometido o crime em que a M.ma Juiz ?a quo? o condenou.
Não se tendo entendido e decidido em conformidade com o que alegámos, na douta sentença ora recorrida, não se terá feito a melhor interpretação e aplicação ao caso das pertinentes disposições legais, designadamente a do artigo 425º, nº 1 do C. Penal de 1982 e a do artigo 32º, nº
1 da CRP, bem como do princípio consagrado de direito criminal?.
Pelo seu acórdão, fotocopiado a fls. 28 e segs. o Tribunal da Relação do Porto negou provimento ao recurso.
Do aresto extrai-se, com interesse para a decisão da causa, o seguinte trecho:
' O art. 32º-nº 1, da CRP, determina que o ?processo criminal assegurará todas as garantias de defesa'. Não resulta, pois, da lei que se tenha de optar pela versão do agente do crime.
A motivação invoca a CRP na convicção de que a sentença a não respeitou, mas não enquanto tenha, eventualmente, dado cobertura ao art.
127º. Tanto é assim que nem sequer vislumbramos a sua citação expressa. Por tal via, fica prejudicada eventual futura invocação de inconstitucionalidade daquele normativo.
De qualquer maneira, sempre se recordará o Ac. 464/97, do TC, de 1-7, que decidiu não julgar inconstitucional o art. 127º, do CPP..
Positivamente, sustenta que 'o princípio da prova livre evidencia a dimensão «concreta» da justiça e reconhece que a procura da verdade material não pode prescindir da consideração das circunstâncias concretas do caso em que essa verdade se recorta'. Adiante: 'Esta justiça, que conta com o sistema da prova livre não se abre, de ser assim, ao «arbítrio», ao subjectivismo ou à emotividade. Esta justiça exige um processo intelectual ordenado que manifeste e articule os factos e o direito, a «lógica» e a regras da «experiência».
A opção pela versão do Arguido, essa sim, pelas razões que a sentença deduziu e pelas que aqui foram expendidas, constituiria um atropelo a todas as regras que se enunciaram.
Com efeito, o Arguido, na obsessão de se furtar às responsabilidades, não se ficou pela negativa. Antes concebeu, positivamente, todo um conjunto de depoimentos, demonstrando, além do mais, escandalosa desconformidade com as funções que tem vindo a exercer'.
Deste acórdão o arguido recorreu para o Tribunal Constitucional, ao abrigo da alínea b) do nº 1 do artigo 70º da LTC, nos termos seguintes:
'1. Para dar como preenchidos os elementos do tipo do crime de peculato de uso, o Tribunal interpretou, valorou e aplicou a norma prevista no art. 425º, nº 1 do Código Penal de 1982 (art. 376º, nº 1 do C. Penal revisto) de forma que implica a inconstitucionalidade dessa disposição legal.
2. Na verdade, os elementos de natureza objectiva que integram o crime em causa foram 'descobertos' pelo acórdão recorrido desrespeitando princípios operativos suficientemente sedimentados do regime legal da prova.
3. Foi, assim, violada a norma constitucional do art.
32º, nº 1, não tendo sido asseguradas ao arguido todas as garantias de defesa, desprezando, completa e indevidamente, toda a prova a seu favor feita, fosse através de testemunhas por si apresentadas ou mesmo arroladas pela acusação.
4. Em causa está também a violação do sagrado princípio 'in dubio pro reo', que a sopesação da prova não deixou de ferir.
5. A situação exposta foi suscitada, expressamente, pelo arguido no recurso interposto e motivado da decisão de condenação em primeira instância'.
O recurso não foi admitido, por despacho de fls. 51, que se transcreve na íntegra:
'O requerimento de interposição de recurso para o Tribunal Constitucional é expresso, que tem por base o art. 70º-nº 1-b) da Lei nº 28/82, de 15-11.
Porém, conforme alega no presente requerimento e na motivação do recurso interposto da sentença proferida em 1ª instância, o a.
70º-nº 1-b) não foi minimamente afectado, ou seja, não foi na sentença recorrida, bem como no acórdão confirmatório, tomada qualquer decisão que possa ser ferida de inconstitucionalidade. Com efeito, o Recorrente não diz sequer qual a norma que considera inconstitucional. Vejamos melhor.
Ataca o recorrente o a. 425/1, do CP. 82. Mas não que seja inconstitucional. O que diz é que não foi respeitado o a. 32º-nº 1, do C.R.P., ao considerar-se que o Recorrente praticou os elementos factuais que, essencialmente, constituem o (...) em questão.
O que é muito diferente. Mas que não tem que ser apreciado pelo T.C. tudo conforme é previsto pelo a. 70º-nº 1 e por qualquer uma das suas alíneas.
Aliás, tão-pouco a motivação para o Tribunal da Relação, sobre a qual impende a obrigação de, nas conclusões, delimitar o âmbito do recurso, enuncia a questão de qualquer inconstitucionalidade sobre a qual o T.C. tivesse que se pronunciar. Como não tem o T. da R.. Daí que nem sequer venha arguir-se nulidade, por omissão de pronúncia.
Por tudo quanto se expende, nos termos e para os efeitos do art. 76º nºs 1 e 2, não admito o recurso?.
É deste despacho que vem apresentada a presente reclamação onde, nos passos que importam, se diz:
'1. O reclamante interpôs recurso para o Tribunal Constitucional ao abrigo do vertido no nº 1, al. b) do art. 70º da referida 'Lei do T.C.'.
2. Fê-lo na convicção, que deixou suficientemente expressa, de que a sentença em primeira instância que o condenou pelo cometimento do crime de peculato de uso, e o acórdão do T. da Relação do Porto que confirmou essa sentença exactamente com os seus contornos originais, haviam violado a Constituição, fosse relativamente a uma das suas normas, fosse em relação a um princípio geral de Direito de natureza mesmo pré-constitucional, sedimentado naquele mínimo comum às nações civilizadas.
3. Não se quis pôr em questão a inconstitucionalidade directa e incondicional da norma contida no artigo 425º, nº 1 do Código Penal de
1982. Desde que tudo tivesse sido feito de forma correcta no decurso do processo, nomeadamente em sede de julgamento e decisão, para dar como integrados os elementos objectivos constitutivos do crime de peculato de uso, documentado nessa norma penal, nada poderia ser ?criticado? em juízo de inconstitucionalidade.
4. O que se defende, e defendia, já no requerimento de interposição do recurso para o Tribunal Constitucional, é que a forma como o Tribunal havia interpretado, valorado e aplicado essa norma (art. 425º, nº 1) havia violado a norma constitucional do art. 32º, nº 1 e o 'sagrado princípio' in dubio pro reo.
5. Na verdade, ficando embora incólume tudo quanto aparece estatuído no referido art. 425º, nº 1 do C. Penal de 1982 (art. 376º, nº
1 do C. Penal revisto), o fundamento que se quer fazer valer em Recurso Constitucional é que para se ter concluído na sentença condenatória e no acórdão confirmatório que o arguido cometeu o crime que vinha acusado não foram suficientemente asseguradas as garantias mínimas de defesa, sendo mesmo visível um desprezo notório por tudo quanto podia favorecer a posição do arguido ou, pelo menos, levantar a dúvida relevante que, no respeito pelo dito princípio in dubio pro reo, o beneficiaria.
6. Não pode haver dúvida que este problema, enquadrado desta maneira, questionando a forma concreta como foi valorada e aplicada a norma do artº 425º, nº 1 do C.P. e não a norma em si mesma, foi levantando e fundamentado na motivação do recurso interposto da sentença em primeira instância para a Relação do Porto.
7. Mas se o desprezo pelas garantias constitucionais de defesa do arguido havia sido, na opinião do reclamante, absolutamente flagrante, tornou-se reforçado e ostensivo no acórdão que negou provimento ao recurso interposto para o T. da Relação do Porto.
8. Na verdade, outra coisa não se pode concluir do teor da apreciação da prova feita no dito acórdão, em que, sem nada que o justificasse, se chega mesmo a achincalhar as pessoas do arguido e de algumas testemunhas a este favoráveis, não apenas agora as desvalorizando, mas indo ao ponto de as aniquilar sob a carga do desprestígio e do ridículo, em juízos conclusivos de intenção e de valor despropositados e desajustados da realidade, ao ponto de o reclamante e mesmo, eventualmente, outras pessoas assim visadas e ofendidas não deixarem de reagir pelas formas adequadas, designadamente por queixa a apresentar ao Conselho Superior de Magistratura.
10. A razão do descontentamento do reclamante assenta, exactamente, na forma como se 'descobriram' os elementos constitutivos do tipo legal do crime de peculato de uso, em que foi condenado. Continua a pensar que é nitida a violação constitucional, como vimos reforçada através do acórdão da Relação do Porto.
11. O reclamante pensa que não podem ficar dúvidas de que, face a tudo quanto se disse, tem plena legitimidade e fundamento para recorrer para o Tribunal Constitucional, cumprindo todos os requisitos legais de que depende essa legitimidade'.
Neste Tribunal, o Exmo Magistrado do Ministério Público emite parecer no sentido do indeferimento da reclamação nos seguintes termos:
'É manifesto que o ora reclamante não suscitou, durante o processo, qualquer questão de inconstitucionalidade normativa que possa servir de base ao recurso que interpôs, com fundamento na alínea b) do nº 1 do artº. 70º da Lei nº
28/82: limitou-se, na verdade, na motivação que apresentou no recurso dirigido à Relação, a questionar a decisão proferida sobre a matéria de facto e a impugnar a valoração das provas operada no Tribunal de 1ª instância, afirmando (ponto 35, fl. 23) que a ponderação e a valoração da prova testemunhal produzida teria implicado postergação do princípio constitucional das garantias de defesa. Que,
é manifesto que tal questão, assim suscitada, se não configura como reportada à constitucionalidade de normas ou interpretações normativas, não constituindo objecto idóneo de um recurso de fiscalização concreta.
Nestes termos - e por faltarem, de forma ostensiva, os pressupostos de admissibilidade do recurso interposto - deverá a presente reclamação ser julgada improcedente'.
2 - Independentemente de vistos, dada a simplicidade da questão, vêm os autos à conferência para decisão sumária, nos termos dos artigos 77º nºs 1 e
3 da LTC.
O recurso foi, como se disse, interposto ao abrigo da alínea b) do nº 1 do artigo 70º da LTC.
Objecto deste recurso é a questão de inconstitucionalidade de norma efectivamente aplicada pela decisão recorrida, inconstitucionalidade essa suscitada pelo recorrente durante o processo.
O vício de inconstitucionalidade há-de ser, pois, imputado a uma norma e não à decisão judicial que a aplique.
No caso em apreço, o recorrente indicou como norma arguida de inconstitucionalidade a que flui do artigo 425º nº 1 do Código Penal de 1982.
E não se levantam dúvidas sérias sobre o facto de o recorrente ter suscitado, expressamente, na motivação do recurso interposto da sentença condenatória de 1ª instância para a relação, a inconstitucionalidade daquela norma, reportada ao artigo 32º nº 1 da CRP.
Mas se formalmente assim sucedeu, já o mesmo se não poderá dizer se se atender aos termos em que a questão de inconstitucionalidade foi suscitada ? e estes deverão sempre prevalecer sobre a mera invocação formal, para ajuizar do pressuposto de admissibilidade do recurso em causa.
Na verdade, o próprio recorrente o não oculta quando afirma que 'não se quis pôr em questão a inconstitucionalidade directa e incondicional da norma contida no artigo 425º nº 1 do Código penal de 1982. Desde que tudo tivesse sido feito de forma correcta no decurso do processo, nomeadamente em sede de julgamento e decisão, para dar como integrados os elementos objectivos constitutivos do crime de peculato de uso, documentado nessa norma penal, nada poderia ser 'criticado' em juízo de inconstitucionalidade'.
É que o recorrente questionou, sempre, não a constitucionalidade daquela norma, mas os julgados de 1ª instância e da Relação do Porto em matéria de apreciação e valoração da prova produzida, que conduziram, em ambas as instâncias, a entender verificados todos os elementos constitutivos do crime de peculato de uso.
A crítica do recorrente dirigiu-se, deste modo, não à norma referida ou a uma sua interpretação supostamente efectuada nos tribunais de 1ª e 2ª instância, mas às próprias decisões que, em matéria de facto, apreciaram segundo as regras da experiência e a livre convicção do julgador (artigo 127º do Código de Processo Penal) a prova produzida.
E também a questão da constitucionalidade da norma ínsita neste
último artigo não foi equacionada pelo reclamante, como logo no acórdão recorrido assim se advertiu:
'A motivação invoca a CRP na convicção de que a sentença a não respeitou, mas não enquanto tenha, eventualmente, dado cobertura ao artº 127º. Tanto é assim que nem sequer vislumbramos a sua citação expressa. Por tal via, fica prejudicada eventual futura invocação da inconstitucionalidade daquele normativo'.
Não foi, em suma suscitada, substancialmente, a questão de constitucionalidade de qualquer norma, designadamente a que consta do artigo
425º nº 1 do Código Penal, pelo que se não verifica um dos pressupostos de admissibilidade do recurso.
Bem decidiu, pois, o despacho reclamado ao não admitir o recurso.
3 - Decisão
Pelo exposto e em conclusão, decide-se indeferir a reclamação.
Custas pelo reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 15 Ucs.
Lisboa, 21 de Outubro de 1998 Artur Mauricio Luis Nunes de Almeida José Manuel Cardoso da Costa