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Proc. nº 133/91 Rel. Cons. Alves Correia
Acordam na 2ª Secção do Tribunal Constitucional:
I Relatório.
1. O Ministério Público deduziu acusação contra A., imputando-lhe a autoria de um crime previsto e punido pelo artigo 17º, nº 1, do Decreto-Lei nº 14/84, de 11 de Janeiro, e pelo artigo 388º, nºs 1 e 2, do Código Penal, e de um crime previsto e punido pelo nº
2 do artigo 17º daquele Decreto-Lei e pelo nº 3 do artigo 388º do mencionado Código.
E isto porque, apesar de lhe ter sido aplicada, por decisão do Banco de Portugal, a medida de restrição ao uso de cheque pelo período de oito meses, não só não devolveu os módulos de cheques em seu poder, como, no referido período, emitiu um cheque, que, apresentado a pagamento, foi devolvido por falta de provisão.
2. O Mmº Juiz do 3º Juízo Correccional de Lisboa, por despacho de 31 de Janeiro de 1991, invocando o Acórdão do Tribunal Constitucional nº 489/89 (publicado no Diário da República, II Série, nº 27, de 01-02-1990), recusou, no entanto, a aplicação, com fundamento em inconstitucionalidade orgânica, das normas dos artigos 10º, nº1, e
13º, nº 1, do Decreto-Lei nº 14/84, e, consequentemente, não recebeu a acusação, ordenando o arquivamento dos autos.
3. Daquele despacho interpôs o Ministério Público obrigatoriamente o presente recurso, nos termos das pertinentes disposições constitucionais e legais, cujo objecto consiste, assim, na questão da constitucionalidade das normas dos artigos 10º, nº 1, e
13º, nº 1, do Decreto- Lei nº 14/84.
4. Neste Tribunal, o Exmº Procurador-Geral Adjunto concluiu as suas alegações do seguinte modo:
lº. A medida de restrição ao uso do cheque tem natureza disciplinar administrativa;
2º. Não são organicamente inconstitucionais as normas dos artigos 10º, nº 1, e
13º, nº 1, do Decreto-Lei nº 14/84, de 11 de Janeiro, já que cabem na competência própria do Governo;
3º. Deve conceder-se provimento ao recurso, determinando-se a reforma da decisão recorrida em conformidade com o precedente juízo de não inconstitucionalidade.
5. Por sua vez, o recorrido concluiu as suas alegações do modo como segue:
a) A medida de restrição ao uso de cheque configura-se como uma medida de segurança.
b) As normas dos artigos 10º, nº 1, e 13º, nº 1, do Decreto-Lei nº 14/84, de 11 de Janeiro, são orgânica e materialmente inconstitucionais.
c) Deverá manter-se a recorrida decisão judicial de arquivamento.
6. Dispensados os vistos, cumpre então, apreciar e decidir a questão de saber se as normas dos artigos 10º e 13º, nº 1, do Decreto- Lei nº 14/84, de 11 de Janeiro, são (ou não) inconstitucionais.
Estas normas dispõem do modo como segue:
Artigo 10º. - 1. A medida de restrição ao uso de cheque a que o presente capítulo se refere é uma providência de natureza administrativa que envolve a proibição às pessoas a que for aplicada de movimentar por meio de cheques as contas de depósito de que sejam titulares em quaisquer instituições de crédito.
Artigo 13º - 1. Compete ao Banco de Portugal, por intermédio do seu conselho de administração, decidir sobre a aplicação da medida de restrição ao uso de cheque.
II Fundamentos:
7. Este Tribunal já teve ocasião de apreciar a questão da constitucionalidade das normas acima transcritas. Fê-lo, primeiro, pelo Acórdão da lª secção nº 489/89 ( publicado no Diário da República, II Série, nº 27, de 01-02-1990) e, mais recentemente, pelos Acórdãos da sua 2ª secção nºs 160/91, 183/91, 184/91 e 185/91 (ainda inéditos), tendo concluído em todos eles, embora com alguns votos discordantes, pela inconstitucionalidade orgânica daquelas normas.
É essa conclusão que agora o Tribunal reitera, limitando-se, para tanto, a recordar o essencial dos fundamentos dos mencionados arestos da 2ª secção - e não os do Acórdão nº
489/89, uma vez que os fundamentos deste não são coincidentes com os daqueles.
8. Elemento verdadeiramente determinante para a resolução do problema da constitucionalidade da 'medida de restrição ao uso de cheque', disciplinada nas normas desaplicadas, é o da definição da topologia daquela medida sancionatória no quadro mais geral das
'sanções de direito público'.
Em primeiro lugar, aqueles arestos colocam a questão de saber se a medida de restrição ao uso de cheque é
(ou não) uma sanção criminal - recte, se ela é (ou não) uma medida de segurança.
A resposta vem pronta e em sentido negativo.
'De facto, não é nenhuma das penas principais que o Código Penal prevê (cfr. o artigo 40º e ss.) ; e, não sendo aplicada para punir qualquer infracção criminal (não pressupõe, sequer, uma condenação criminal), também não pode tratar-se de uma pena acessória. A pena acessória só pode, na verdade, ser pronunciada numa sentença condenatória em conjunto com uma pena principal (cfr. artigos 66º e 69º do Código Penal)' (cfr. o citado Acórdão nº 160/91).
Não é também uma medida de segurança, uma vez que 'a função das medidas de segurança é de pura defesa social; não possuem, pois, carácter de reprovação como as penas, nem têm como elas fundamento ético-jurídico. Por esse lado, as medidas de segurança aproximam-se das medidas administrativas; mas, contrariamente a estas, pressupõem o cometimento pelo agente de um facto objectivamente criminoso, que, não sendo, embora, a sua razão de ser, nem tão-pouco o critério da sua medida, serve-lhes, no entanto, de prova e de valor sintomático (cfr. artigos 91º e 97º do Código Penal; cfr. também Eduardo Correia, Direito Criminal, 1963, p. 33; Cavaleiro de Ferreira, Lições de Direito Penal, Parte Geral II, Penas e Medidas de Segurança, ano lectivo de 1987/1988, p. 59 e sg.; e Jorge Figueiredo Dias, Direito Penal 2, lições ao 5º ano da Faculdade de Direito, 1988, p.27)'.
Ora, 'a aplicação da medida de restrição ao uso de cheque não tem como pressuposto - ao menos em todos os casos - a prática de um facto objectivamente criminoso [no caso, a prática de um crime de emissão de cheque sem cobertura, previsto e punível pelos artigos 23º e 24º do Decreto nº 13.004, de 12 de Janeiro de 1927 (o último, na redacção da Lei nº 25/81, de 21 de Agosto, e do Decreto-Lei nº 400/82, de 23 de Setembro]'.
'Não revestindo a medida de restrição ao uso de cheque a natureza de sanção criminal - recte, de medida de segurança - pode ela ser aplicada em 1ª instância pela Administração. Ao que acresce que o Governo, ao legislar sobre a matéria, não invadiu a reserva parlamentar que tem por objecto a 'definição dos crimes, penas, medidas de segurança e respectivos pressupostos', constante da alínea c) do nº 1 do artigo
168º'.
Assim sendo, terá de concluir-se que as normas dos artigos 10º, nºs 1 e 2 , 13º, nº 1, e 17º, nº 1, do Decreto-Lei nº 14/84 não violam os artigos 168º, nº 1, alínea c), e 205º, nºs 1 e 2, da Constituição (cfr. o Acórdão nº 160/91).
9. A medida de restrição ao uso do cheque é, antes, uma medida administrativa.
Não é, porém, uma medida administrativa de natureza disciplinar.
'É que, as pessoas a quem tal medida é aplicável - sacadores de cheques e titulares de contas bancárias - sofrem a medida em causa nessa específica qualidade, e não enquanto gente que exerça uma actividade ou profissão que, pelo seu 'especial interesse público', pela sua 'perigosidade' ou por 'supor uma relação funcional com a Administração', deva ficar sujeita a uma 'especial vigilância' desta, com vista a assegurar o seu regular funcionamento. Tais pessoas são, antes, usuárias de um sistema - o sistema que inclui os cheques entre os meios de pagamento e, por isso, os emite - , mas um tal sistema não se apresenta organizado sob a forma de um serviço público [sobre o conceito de serviço público, cfr. Freitas do Amaral
(Curso de Direito Administrativo, I, Coimbra, 1988, p. 616 e ss.)]'(cfr. o mencionado Acórdão nº 160/91).
Acrescente-se, no entanto, que, ainda que se estivesse em presença de uma sanção disciplinar, não ficaria ressalvada a constitucionalidade da norma que prevê a medida aqui em causa , ou seja, a norma do artigo 10º , nºs 1 e 2 . Com efeito, como refere o Acórdão nº
160/91, 'sendo reservado à Assembleia da República legislar sobre o 'regime geral de punição das infracções disciplinares', não se vê que a medida de restrição do uso de cheque possa identificar-se com qualquer das sanções previstas nesse 'regime geral'. Inconstitucionalidade só não existiria, então, na norma que atribui ao Banco de Portugal competência para aplicar tal medida, ou seja, no artigo 13º, nº 1, pois se está fora da reserva do juiz '.
10. A medida de restrição ao uso de cheque não pode também ser qualificada como uma medida de polícia, uma vez que esta tem uma função de garantia da legalidade em geral, da ordem pública, da segurança interna e dos direitos dos cidadãos (crf. o artigo 272º, nº 1, da Constituição), assumindo, pois, uma natureza preventiva e não sancionatória, ao passo que aquela é inequivocamente uma medida sancionatória.
Assim sendo, 'poderia dizer-se, desde logo, que da Constituição parece extrair-se a conclusão de que o direito público sancionatório se esgota numa das categorias seguintes: ilícito penal (entendida esta expressão em sentido amplo por forma a abarcar a categoria residual das contravenções), ilícito disciplinar e ilícito de mera ordenação social [cfr. artigos 27º, nºs 2 e 3, 29º, 30º, 37º, nº 3, 168º, nº 1, alíneas c) e d), e 269º, nº 3, da Constituição].
A ser assim, então, ao legislador não seria ilícito criar ilícitos administrativos atípicos.
Ora, no caso, pode entender-se que o que o Governo fez foi, justamente, criar um ilícito administrativo atípico, pois que não é ele um ilícito disciplinar e também não se vê que possa reconduzir-se ao conceito de contra-ordenação. Contra-ordenação
é, na verdade, apenas o 'facto ilícito e censurável que preencha um tipo legal no qual se comine uma coima', como se diz no artigo 1º da respectiva lei-quadro
(Decreto-Lei nº 433/82, de 27 de Outubro), e a medida de restrição ao uso de cheque não é identificável com qualquer das 'coimas' previstas nos artigos 17º e
21º da referida lei-quadro.
Se assim for - isto é, se o legislador não puder criar ilícitos administrativos diferentes do ilícito disciplinar e do ilícito contra-ordenacional - então terá ele violado o
'programa constitucional' relativo ao direito público sancionatório.
Mas, ainda que assim não deva entender-se - isto é, ainda que haja de ter-se por constitucionalmente admissível a criação de ilícitos administrativos para além do ilícito disciplinar e do ilícito contra-ordenacional - uma coisa é certa: só a Assembleia da República ou o Governo por ela autorizado hão-de poder criar tal tipo de ilícito e definir-lhe o respectivo regime, sob pena de se defraudar o sentido da reserva parlamentar.
Com efeito, para subtrair a matéria à intervenção parlamentar, bastaria dar às sanções cominadas designações diferentes das que correspondem àqueles tipos de ilícito.
Daí a inconstitucionalidade das normas em questão.
Admitindo, porém, que se está em face de um ilícito contra-ordenacional, então, haverá de concluir-se que as normas sub iudicio (directamente, a do artigo 10º, nº 1 e 2, e, consequentemente, as dos artigos 13º, nº 1, e 17º, nº 1) violam o artigo 168º, nº 1, alínea d), da Constituição, que reserva à Assembleia da República a legislação sobre o 'regime geral de punição [...] dos ilícitos de mera ordenação social e do respectivo processo'.
Na verdade, embora o Governo possa, no exercício da competência legislativa concorrente, definir concretos ilícitos contra-ordenacionais e as coimas que cabem a cada infracção, ao fazê-lo há-de mover-se dentro da moldura sancionatória da respectiva lei-quadro (cfr., neste sentido, por último, o Acórdão nº 88/90, DR ,II,
17.09.90), não podendo,designadamente (salvo munido de autorização legislativa), criar sanções que não se reconduzam a qualquer dos tipos de
'coima' previstos naquela lei-quadro (previstos, por conseguinte, nos artigos
17º e 21º do Decreto-Lei nº 433/82, de 27 de Outubro).
Pois bem: de um lado, a medida de restrição ao uso do cheque não é, como se disse já, identificável com qualquer das 'coimas' previstas nos mencionados artigos 17º e 21º do Decreto-Lei nº 433/82; e, de outro, o Governo não dispunha de autorização legislativa para a criar, como bem decorre do ...sentido das autorizações legislativas invocadas para a edição do Decreto-Lei nº 14/84,de 11 de Janeiro' (o art.3º da Lei nº
12/83,de 24 de Agosto,e o art.1º da Lei nº 27/83, de 8 de Setembro).
'As normas em apreciação violam, pois, o artigo 168º, nº 1, alínea d), da Constituição; só, porém, as normas dos nºs. 1 e 2 do artigo 10º do Decreto-Lei nº 14/84 violam directamente tal preceito constitucional, pois é aí que se prevê e recorta a medida de restrição ao uso do cheque. Quanto às normas dos artigos 13º, nº 1, e 17º, nº 1, a inconstitucionalidade é, como se disse, tão-só consequencial.
Na verdade, atribuindo-se, no nº 1 do artigo 13º, competência ao Banco de Portugal para 'decidir sobre a aplicação da medida de restrição ao uso do cheque', a sua inconstitucionalidade decorre da inconstitucionalidade do artigo 10º, nºs 1 e 2, onde se contém a previsão e desenho de tal medida. E identicamente se passam as coisas quanto ao artigo 17º, nº 1, pois que aí se prevêem dois crimes de desobediência, cujos elementos constitutivos são, quanto a um deles, o achar-se abrangido pela medida de restrição ao uso do cheque e o não devolver às instituições de crédito os módulos de cheques que tiver em seu poder, como se impõe no artigo 10º, nº 2' ( cfr. o Acórdão nº 160/91).
III Decisão :
11. Nos termos e pelos fundamentos expostos, nega-se provimento ao recurso e, em consequência, confirma-se a decisão recorrida quanto ao julgamento da questão de inconstitucionalidade.
Lisboa, 3 de Julho de 1991
Fernando Alves Correia Messias Bento Luís Nunes de Almeida Mário de Brito José de Sousa e Brito (vencido, nos termos da minha declaração de voto junta ao Acórdão nº 155/91) Bravo Serra (vencido, pelas fundamentações constantes das declarações de voto que apus nos Acs. nºs. 155/91 e 160/91) José Manuel Cardoso da Costa