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Proc. nº 320/97
1ª Secção Relatora: Cons.ª Maria Helena Brito
Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional I
1. C...,Lda, identificada nos autos, deduziu oposição à execução por dívida decorrente do não pagamento de taxas de comercialização cobradas pelo IROMA, invocando a ilegalidade e inconstitucionalidade de tais taxas.
A inconstitucionalidade encontrar-se-ia, na perspectiva da executada, em duas disposições legais:
- no artigo 13º do Decreto-Lei nº 15/87, de 9 de Janeiro, o qual, ao extinguir a Junta Nacional de Produtos Pecuários (=JNPP) e ao criar o Instituto Orientador e Regulador dos Mercados Agrícolas (=IROMA), transferindo para este todas as suas competências e obrigações, não foi precedido da autorização legislativa constitucionalmente devida. O Decreto-Lei nº 15/87 teria operado uma alteração do sujeito activo da relação jurídico-tributária sem que o Governo se tivesse munido da necessária autorização legislativa, exigível à luz dos artigos
106º, nº 2, 168º, nº 1, alínea i), 201º, nº 1, alínea b), e nº 3, todos da Constituição;
- no nº 1 do artigo 1º do Decreto-Lei nº 235/88, de 5 de Julho, através do qual o Governo ?legislou sobre cobrança coerciva das taxas do IROMA?
[...], ?matéria relativa a garantias dos contribuintes que também releva do
âmbito da reserva de lei formal da Assembleia da República atrás identificada?.
2. O Tribunal Tributário de 1ª Instância de Lisboa desatendeu a argumentação da executada:
'Efectivamente, a taxa de comercialização, quando foi criada, e, de acordo com o DL 354/78, a taxa de peste suína, eram liquidadas pela JNPP. Quando esta foi extinta pelo DL nº 15/87 de 9/1 ? art. 12º ? sucedeu-lhe uma outra pessoa colectiva de direito público, precisamente o IROMA (citado artigo do DL nº 15/87). Porém, este diploma não criou ou modificou qualquer imposto, não alterou a estrutura das ?taxas?. Criou apenas o IROMA. Ora a Lei nº 9/86, de 30/4, autorizou o Governo a «criar ou rever receitas a favor dos Organismos de Coordenação Económica ou dos que resultarem da sua reestruturação e a estabelecer a incidência, as taxas, as garantias, as penalidades e o regime de cobrança das mesmas».
É, portanto, de concluir que a determinação do Organismo a que ficavam afectas as receitas anteriormente atribuídas à JNPP e a quem cabia a respectiva cobrança cabe na competência dos poderes legislativos do Governo nos termos do art. 201 nº 1 als. a) e c) da CRP. O STA tem, aliás, reconhecido a validade do mecanismo de sucessão operado pela lei [...]. Assim e pelo exposto não há qualquer inconstitucionalidade no que respeita à atribuição das receitas da JNPP ao IROMA.?
A oposição foi assim julgada improcedente.
3. Inconformada, a executada recorreu da decisão para o Supremo Tribunal Administrativo, aditando, nas suas alegações, um outro fundamento de inconstitucionalidade: a desconformidade entre as taxas de comercialização e o artigo 8º da Constituição. Isto porque:
'[...] O artº 33º da Sexta Directiva do Conselho das Comunidades Europeias, de 17 de Maio de 1977 (Directiva nº 17/378/CEE), proíbe aos Estados membros manter impostos sobre o volume de vendas ? além do Imposto sobre o Valor Acrescentado
?, tendo entrado em vigor na ordem jurídica portuguesa em 1 de Janeiro de 1986. Com efeito, o artº 378 do Acto Anexo ao Tratado de Adesão de Portugal à CEE não faz qualquer ressalva à aplicação do referido preceito. Deste modo, a persistência das taxas de comercialização, para além deste período, viola o artigo 8º da CRP'.
4. O Supremo Tribunal Administrativo refutou os fundamentos da executada. Em primeiro lugar, no tocante à violação do artigo 8º da Constituição, entendeu que esta disposição não estaria em causa, pois ?apenas visa «regular a recepção do direito internacional e do direito das organizações internacionais na ordem jurídica interna» e não a cobrança de tributos'.
Em segundo lugar, afastou a hipotética inconstitucionalidade do artigo 13º do Decreto-Lei nº 15/87, por entender tratar-se de matéria relativa à cobrança de impostos, situada ?fora da reserva parlamentar, muito embora dentro da reserva de lei'.
Em terceiro lugar, e a propósito da alegada inconstitucionalidade do artigo 1º, nº 1, do Decreto-Lei 235/88, o Supremo Tribunal Administrativo considerou que esta norma se relaciona com o sujeito activo da relação jurídica fiscal, não estando coberta pela reserva de lei constante dos artigos 106º, nº
2, e 168º, nº 1, alínea i), da Constituição.
O Supremo Tribunal Administrativo concluiu:
'Deste modo, o Governo, ao afectar as receitas até então cobradas pela J.N.P.P. ao IROMA, não necessitava de credencial parlamentar, pois que, para tanto, lhe bastava a competência que era conferida pelo art. 201º, nº 1, al. a) da C.R.P., ou seja, a de «fazer decretos-leis em matéria não reservada à Assembleia da República»'.
5. A executada, perante a recusa do Supremo Tribunal Administrativo em dar provimento à sua pretensão, recorreu para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do artigo 70º, nº 1, alínea b), da Lei do Tribunal Constitucional, pedindo a apreciação da constitucionalidade das normas dos artigos 11º e 13º do Decreto-Lei nº 15/87 e do artigo 1º, nº 1, do Decreto-Lei nº 235/88.
II
6. O Tribunal Constitucional foi já por diversas vezes chamado a pronunciar-se sobre as normas cuja inconstitucionalidade se invoca nos presentes autos.
7. Começando pelo artigo 13º do Decreto-Lei nº 15/87, de 9 de Janeiro, e confrontando-o com o artigo 168º, nº 1, alínea i), da Constituição, o Tribunal Constitucional, no acórdão nº 419/96 (in Diário da República, II, de 17 de Junho de 1996, p. 9758 ss), considerou que aquela disposição não padecia de inconstitucionalidade com fundamento em violação da reserva de lei da Assembleia da República. Afirmou o Tribunal que:
'[...] o mencionado artigo 13º não criou qualquer tributo, não lhe determinou a incidência, nem a taxa, nem dispôs inovatoriamente sobre o destino do produto de nenhuma daquelas taxas. Do que tão-só se tratou foi de cometer a um organismo da Administração (no caso, ao IROMA) o encargo de cobrar receitas que antes eram cobradas por outro organismo, entretanto extinto (no caso, a Junta Nacional de Produtos Pecuários). [...] Tratou-se, pois, tão-somente de um rearrumar de competências no interior da Administração, que se mostrou necessário por ter ocorrido a extinção de certas estruturas administrativas: no caso, atribuíram-se ao IROMA competências da Junta Nacional dos Produtos Pecuários, que foi extinta. Seja, pois, qual for a natureza da taxa da peste suína e a da taxa de comercialização (imposto ou taxa) ? questão que aqui não interessa decidir ? a norma do artigo 13º do Decreto-Lei nº 15/87, de 9 de Janeiro, não viola o artigo
168º, nº1, alínea i), da Constituição, que prescreve que é da exclusiva competência da Assembleia da República, salvo autorização ao Governo, legislar sobre a «criação de impostos e sistema fiscal». De facto, o Governo apenas carecia de autorização parlamentar para a definição e articulação do sistema fiscal em geral e, bem assim, para a criação de cada um dos impostos, incluindo o seu regime no que concerne à incidência, à taxa, aos benefícios fiscais e às garantias dos contribuintes.'
O Tribunal Constitucional tem mantido uma jurisprudência constante quanto a esta questão ? cfr. os acórdãos nºs 633/96 (ainda inédito), 800/96 (in Diário da República, II, de 31 de Março de 1998, p. 4197 ss) e 326/98 (in Diário da República, II, de 14 de Julho de 1998, p. 9745 ss).
8. No que se refere ao artigo 1º, nº 1, do Decreto-Lei nº 235/88, de 5 de Julho, também o Tribunal Constitucional teve já oportunidade de tomar posição.
No acórdão nº 268/97 (in Diário da República, II, de 22 de Maio de
1997, p. 5936 ss), o Tribunal Constitucional considerou que a norma do artigo
1º, nº 1, do Decreto-Lei nº 235/88, de 9 de Janeiro, padecia de inconstitucionalidade por violação do artigo 168º, nº 1, alínea q), da Constituição: a norma em causa, ao proceder a uma redistribuição da competência para a apreciação dos processos de execução fiscal por dívidas ao IROMA, retirando-a da esfera dos tribunais judiciais e atribuindo-a aos tribunais fiscais, deveria ter assentado em autorização legislativa, o que não aconteceu.
No entanto, no acórdão nº 500/97 (in Diário da República, II, de 12 de Janeiro de 1998, p. 499 ss), o Tribunal Constitucional viria rever a sua posição, afirmando:
'[...] deve entender-se que a norma desaplicada [a do nº 1 do artigo 1º do DL
235/88] não viola o disposto na alínea q) do nº 1 do artigo 168º da Constituição, discordando-se, assim, da solução sufragada pelo referido acórdão nº 268/97. Esta conclusão será, desde logo, perfilhada por quem ? na linha da solução adoptada pelo Parecer nº 6/77 da Comissão Constitucional (publicado in Pareceres da Comissão Constitucional, 1º Volume, págs. 101 e seguintes) e da tese propugnada pelo Exmº Procurador-Geral Adjunto nas suas alegações ? entenda que não constitui verdadeira inovação legislativa «o simples preenchimento e concretização das cláusulas abertas e conceitos indeterminados usados pelo Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais e pelo Código de Processo Tributário (em estrita consonância com o que estava já presente no Código de Processo das Contribuições e Impostos) na determinação da competência executiva dos tribunais tributários de 1ª instância [...], sendo perfeitamente lícito ao legislador governamental determinar que a cobrança coerciva de créditos de que seja titular um instituto público se integre na competência dos tribunais fiscais, equiparando tal tipo de créditos aos créditos do Estado (cfr. art. 62º, nº 1, alínea c) do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, Decreto-Lei nº 129/84, de 27 de Abril; cfr. ainda arts. 1º, 9º e 233º, nº 2, alíneas b) e c) do Código de Processo Tributário). Mas idêntica conclusão será ainda perfilhada por quem adopte uma interpretação mais exigente do disposto na alínea q) do nº 1 do art. 168º da Constituição, à semelhança do que se fez no citado acórdão nº 268/97. De facto, neste aresto partiu-se do entendimento de que a medida legislativa constante da norma desaplicada «? para além de mandar observar o processo de execução fiscal para a cobrança coerciva da taxa de peste suína africana e da taxa de comercialização, devidas ao IROMA ? havia transferido para os tribunais fiscais uma competência que, então, era dos tribunais judiciais».
[...] Simplesmente este entendimento não teve em conta a existência de legislação pré-constitucional que já havia integrado na competência dos tribunais tributários a cobrança coerciva de receitas dos antigos organismos de coordenação económica.
[...] Havia, assim, lei pré-constitucional a atribuir competência à Justiça Fiscal para a cobrança coerciva das taxas de peste suína e de comercialização, circunstância que elimina o carácter inovador à norma do art. 1º, nº 1, do Decreto-Lei nº 235/88, de 5 de Julho, o qual manteve o regime de cobrança anteriormente utilizado para os créditos da Junta Nacional de Produtos Pecuários. Não houve, assim, alteração da distribuição de competências pré-estabelecida, pressuposto de que partiu o citado acórdão nº 268/97'.
O Tribunal Constitucional decidiu então que a norma do artigo 1º, nº
1, do Decreto-Lei nº 235/88, de 5 de Julho, não padece de inconstitucionalidade com os fundamentos invocados, nomeadamente, não desrespeita o artigo 168º, nº 1, alínea q), da Constituição (versão de 1982).
Em acórdãos posteriores foram reafirmadas estas conclusões e confirmando o sentido da decisão ? não inconstitucionalidade do nº 1 do artigo
1º do Decreto-Lei nº 235/88, de 5 de Julho (desde logo, nos acórdãos nºs 501/97,
605/97, 685/97 e 326/98, publicados in Diário da República, II, de 13 de Janeiro de 1998, p. 561 ss; Diário da República, II, de 10 de Dezembro de 1997, p. 15119 ss; Diário da República, II, de 16 de Março de 1998, p. 3362 ss; Diário da República, II, de 14 de Julho de 1998, p. 9745 ss, respectivamente, e ainda nos acórdãos nºs 108/98 e 468/98, ainda inéditos). É essa jurisprudência que aqui se reitera.
9. Quanto ao artigo 11º do Decreto-Lei nº 15/87 ? a terceira disposição que a recorrente refere no requerimento de interposição do recurso ? não pode constituir objecto do presente recurso, uma vez que não se encontram preenchidos os requisitos exigidos pelo artigo 70º, nº 1, alínea b), da Lei do Tribunal Constitucional. Na verdade a inconstitucionalidade de tal norma não foi suscitada durante o processo nas duas instâncias precedentes.
10. Resta acrescentar que o conhecimento da ?dupla violação das normas comunitárias?, que ocorreria, na perspectiva da recorrente, pela manutenção das taxas de comercialização cobradas pelo IROMA contra o previsto na Directiva do Conselho nº 17/378/CEE, de 17 de Maio de 1977 (e não ressalvada pelo artigo 378º do Acto de Adesão de Portugal às Comunidades) e que implicaria uma violação do artigo 8º, nºs 1 e 2, do artigo 8º da Constituição, não cabe na competência do Tribunal Constitucional.
Com efeito, o confronto entre normas de direito interno e normas comunitárias dispõe de um mecanismo jurisdicional específico ? o processo de questões prejudiciais, habitualmente designado ?reenvio prejudicial? (cfr. artigo 177º do Tratado da Comunidade Europeia) ? da competência do Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias. A necessidade de interpretação e aplicação uniforme do Direito Comunitário levou à construção desse importante instrumento de colaboração entre a ordem jurisdicional interna e as instâncias jurisdicionais comunitárias e reservou ao Tribunal das Comunidades o papel de intérprete último da vontade das instituições comunitárias, vertida nas normas de direito derivado.
11. Assim, e seguindo a exposição de José Manuel Cardoso da Costa (O Tribunal Constitucional português e o Tribunal de Justiça das Comunidades europeias, in
?Ab Uno Ad Omnes, 75 anos da Coimbra Editora, 1920 - 1995?, Coimbra, 1998, p.
1363 ss, 1371), é de rejeitar a ?qualificação da incompatibilidade do direito interno com o direito comunitário como uma situação de «inconstitucionalidade» que ao Tribunal Constitucional caiba apreciar?.
Isto porque, segundo o autor citado, ?diferentemente (ou para além) do que sucede na recepção interna do direito internacional convencional em geral, a recepção do direito comunitário envolve (ou envolveu) também a dos mecanismos institucionais que visam especificamente garantir a sua aplicação. Ora, compreendendo a ordem jurídica comunitária ? recebida nesses termos
«compreensivos» e globais pelo direito português, logo por via de uma cláusula da própria Constituição ? uma instância jurisdicional precipuamente vocacionada para a sua mesma tutela (e não só no plano das relações interestaduais ou intergovernamentais), e concentrando ela nessa instância a competência para velar pela aplicação uniforme e pela prevalência das suas normas, seria algo incongruente que se fizesse intervir para o mesmo efeito, e no plano interno, uma outra instância do mesmo ou semelhante tipo (como seria o Tribunal Constitucional)?.
Em sentido semelhante se pronunciou o Tribunal Constitucional no acórdão nº 326/98, ainda inédito.
III
12. Em face do exposto, o Tribunal Constitucional decide: a) Não julgar inconstitucional o artigo 13º do Decreto-Lei nº 15/87, de 9 de Janeiro, por não haver desconformidade entre esta disposição e os artigos
106º, nº 2, e 168º, nº 1, alínea i), da Constituição (versão de 1982); b) Não julgar inconstitucional o nº 1 do artigo 1º do Decreto-Lei nº
235/88, de 5 de Julho, por considerar não haver violação do artigo 168º, nº 1, alínea q), da Constituição (versão de 1982); c) Não tomar conhecimento do pedido de apreciação da constitucionalidade do artigo 11º do Decreto-Lei nº 15/87, de 9 de Janeiro; d) Negar provimento ao recurso, confirmando o acórdão recorrido, no que refere à matéria de constitucionalidade.
Lisboa, 3 de Novembro de 1998 Maria Helena Brito Vitor Nunes de Almeida Maria Fernanda Palma Alberto Tavares da Costa Paulo Mota Pinto Artur Mauricio Luis Nunes de Almeida